domingo, agosto 05, 2012

"O jogo não é para todos"

O título é de uma matéria-entrevista com a professora da UFF e da PUC-Rio, Carla Rodrigues com a antropóloga Ida Susser da Universidade de Nova York que trata dos investimentos apra grandes eventos e suas reprecussão para as cidades-sede e seu povo. Ela está publicada no excelente caderno Eu & Fim de Semana do jornal Valor deste final de semana e que republico abaixo:

"O jogo não é para todos"
"Cidades feridas" é um termo com o qual a antropóloga americana Ida Susser, da Universidade da Cidade de Nova York, trabalha há uma década e dá título a um de seus livros. Sob essa denominação, está em questão a combinação entre crise e direcionamento de investimentos de forma pouco democrática. "Pânico e ameaças são pretextos para que o setor público se abra a investimentos privados e limite a participação da sociedade", afirma Ida. O resultado seria uma reestruturação urbana pouco comprometida com a população local e muito orientada pelos interesses do capital. É sobre esse tema que Ida fez sua apresentação, Deslocamentos para o espetáculo global: remodelar a "cidade ferida", no seminário internacional Deslocamentos, Desigualdades e Direitos Humanos, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) neste mês.

De interesse dos brasileiros, em geral, e dos paulistanos e cariocas, em particular, Ida Susser estuda as transformações urbanas orientadas pelos investimentos em megaeventos esportivos, como a Copa do Mundo e a Olimpíada. Nesta entrevista, ela critica a maneira como governos dão prioridade a investimentos em áreas turísticas e relegam comunidades pobres à invisibilidade, numa agenda pautada pelos interesses do capital privado que descaracteriza o ambiente urbano: "A realização de grandes eventos é útil para o capital, mas não é necessária do ponto de vista do interesse público". Leia trechos a seguir.

Valor: Muitas das grandes cidades estão em transformação, sejam impulsionadas pelo aporte de dinheiro para megaeventos, sejam empurradas pela crise econômica. Quais são os principais resultados de suas pesquisas nas cidades que já sediaram grandes eventos mundiais, como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos?
Ida Susser: Em Atlanta, que sediou os Jogos Olímpicos de 1996, a consequência foi o deslocamento da população urbana pobre, historicamente afro-americana, para a construção dos estádios. Alguns aspectos da crise financeira na Grécia de hoje e a ameaça às finanças da zona do euro resultam das enormes dívidas contraídas para o cumprimento dos requisitos da construção dos estádios para sediar os Jogos Olímpicos de lá. Na Cidade do Cabo, em Durban, em Joanesburgo e em outros lugares, os principais estádios foram construídos para atender às necessidades da Fifa, em detrimento de áreas históricas. Durante os jogos, havia policiamento extra, ônibus e todos os serviços municipais foram dedicados ao futebol, a um custo grande para a cidade. De fato, os estádios são magníficas criações arquitetônicas, que serviram ao seu propósito, e milhões de fãs assistiram aos jogos e gostaram deles. A África do Sul provou ter qualidade e competência para sediar um evento mundial, mas, apesar de os recursos sul-africanos terem sido dedicados a essa competição, possivelmente aumentando o turismo, não está claro se isso trará mudanças a longo prazo. Os 40% dos pobres e desempregados na África do Sul não tinham acesso aos lugares nos estádios, e recursos que poderiam ter ido para habitação e saúde foram usados no espetáculo global. Desde então, a desigualdade na África do Sul tem permanecido a mesma ou até aumentado.

Valor: Existe algum tipo de legado que os investimentos em um grande evento podem deixar para uma cidade?
Ida: Grandes estádios vazios, deslocamento de população do centro para as margens e a invisibilidade dos pobres. A realização de grandes eventos é útil para o capital, mas não necessária do ponto de vista do interesse público. Repito o argumento de Paul Krugman em seu livro mais recente ["End This Depression Now!"]: mesmo sem os grandes eventos, pode-se facilmente investir em obras públicas para crescer, uma regra simples da economia keynesiana.

Valor: Sua pesquisa faz referência aos investimentos de Nova York na candidatura a sede da Olimpíada de 2012, que ocorre agora em Londres. Em que medida uma cidade pode aprofundar as desigualdades econômicas a partir do direcionamento dos recursos para um evento como a Olimpíada?
Ida: No Brooklyn, a possibilidade de sediar os Jogos Olímpicos deu ao prefeito a legitimidade e o apoio corporativo para fazer novo zoneamento de uma área urbana ocupada por trabalhadores, principalmente por uma minoria pobre e latino-hispânica. Eles foram deslocados para a construção de novas moradias voltadas para pessoas que ganham mais de US$ 200 mil por ano. Na verdade, esse é o critério para o investimento em locação de imóveis. Houve uma coalizão da comunidade que lutou por habitação a preços acessíveis e pelos que reivindicaram acesso ao rio e a construção de novos parques públicos, o que acabou por reverter um pouco dessa tendência.

Valor: Além da Copa do Mundo, o Brasil vai receber a Olimpíada de 2016, que será realizada na segunda maior cidade do país, o Rio, já particularmente marcada por desigualdades sociais e econômicas. Que tipo de dinâmica urbana leva ao aprofundamento dessas desigualdades?
Ida: A ideia neoliberal de que investir em privatização e nos interesses corporativos para, de algum modo, ajudar os pobres, já está muito desacreditada por economistas como Krugman e Joseph Stiglitz. Há pouco benefício para os pobres em tais investimentos, que são deslocados para áreas mais distantes, e há ainda uma recusa em financiar os serviços públicos, que são privatizados.

Valor: De que maneira um grande evento pode descaracterizar uma cidade?
Ida: Na Cidade do Cabo, foi construído um belo estádio novo. Em torno da cidade foram construídos também um surpreendente parque público e jardins botânicos. Tudo isso é uma contribuição importante para a cidade, mas foi feito na área mais rica, à qual só pessoas de alto poder aquisitivo têm acesso. O estádio em si é muito grande para a realização de atividades desportivas nacionais e, desde a Copa, raramente foi usado. No Brooklyn, uma pitoresca vizinhança que tinha atraído artistas, escritores, teatros off-Broadway e muitos bares com música ao vivo agora está parcialmente alterada para dar lugar a uma série de arranha-céus com apartamentos voltados para o rio, obstruindo a vista do público. A habitação a preços acessíveis foi deslocada para a parte de trás, como senzalas do século XIX. Os teatros e a atividade cultural foram deslocados, assim como a comunidade latina, os imigrantes poloneses e outros grupos de trabalhadores.

Valor: A partir do que constatou na África do Sul, é possível fazer prognósticos para o Brasil, onde dez cidades estão sendo preparadas para os jogos?
Ida: Não tenho certeza do que prever para o Brasil. A Copa atrai investimentos estrangeiros, mas uma grande quantidade dos lucros desses eventos vai para grandes corporações internacionais, donas dos principais hotéis. Na África do Sul era assim, não sei se isso também vale para o Brasil. No caso do futebol, a Fifa também fica com parte importante dos lucros das vendas.

Carla Rodrigues, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio), é doutora em filosofia e pesquisadora do CNPq



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