O título é de uma matéria-entrevista com a professora da UFF e da PUC-Rio, Carla Rodrigues com a antropóloga Ida Susser da Universidade de Nova York que trata dos investimentos apra grandes eventos e suas reprecussão para as cidades-sede e seu povo. Ela está publicada no excelente caderno Eu & Fim de Semana do jornal Valor deste final de semana e que republico abaixo:
"O jogo não é para todos"
"Cidades feridas" é um termo com o qual a antropóloga americana Ida
Susser, da Universidade da Cidade de Nova York, trabalha há uma década e
dá título a um de seus livros. Sob essa denominação, está em questão a
combinação entre crise e direcionamento de investimentos de forma
pouco democrática. "Pânico e ameaças são pretextos para que o setor
público se abra a investimentos privados e limite a participação da
sociedade", afirma Ida. O resultado seria uma reestruturação urbana
pouco comprometida com a população local e muito orientada pelos
interesses do capital. É sobre esse tema que Ida fez sua apresentação,
Deslocamentos para o espetáculo global: remodelar a "cidade ferida", no
seminário internacional Deslocamentos, Desigualdades e Direitos
Humanos, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
neste mês.
De interesse dos brasileiros, em geral, e dos paulistanos e
cariocas, em particular, Ida Susser estuda as transformações urbanas
orientadas pelos investimentos em megaeventos esportivos, como a Copa
do Mundo e a Olimpíada. Nesta entrevista, ela critica a maneira como
governos dão prioridade a investimentos em áreas turísticas e relegam
comunidades pobres à invisibilidade, numa agenda pautada pelos
interesses do capital privado que descaracteriza o ambiente urbano: "A
realização de grandes eventos é útil para o capital, mas não é
necessária do ponto de vista do interesse público". Leia trechos a
seguir.
Valor: Muitas das grandes cidades estão em transformação, sejam
impulsionadas pelo aporte de dinheiro para megaeventos, sejam
empurradas pela crise econômica. Quais são os principais resultados de
suas pesquisas nas cidades que já sediaram grandes eventos mundiais,
como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos?
Ida Susser: Em Atlanta, que sediou os Jogos Olímpicos de 1996, a
consequência foi o deslocamento da população urbana pobre,
historicamente afro-americana, para a construção dos estádios. Alguns
aspectos da crise financeira na Grécia de hoje e a ameaça às finanças da
zona do euro resultam das enormes dívidas contraídas para o
cumprimento dos requisitos da construção dos estádios para sediar os
Jogos Olímpicos de lá. Na Cidade do Cabo, em Durban, em Joanesburgo e
em outros lugares, os principais estádios foram construídos para
atender às necessidades da Fifa, em detrimento de áreas históricas.
Durante os jogos, havia policiamento extra, ônibus e todos os serviços
municipais foram dedicados ao futebol, a um custo grande para a cidade.
De fato, os estádios são magníficas criações arquitetônicas, que
serviram ao seu propósito, e milhões de fãs assistiram aos jogos e
gostaram deles. A África do Sul provou ter qualidade e competência para
sediar um evento mundial, mas, apesar de os recursos sul-africanos
terem sido dedicados a essa competição, possivelmente aumentando o
turismo, não está claro se isso trará mudanças a longo prazo. Os 40%
dos pobres e desempregados na África do Sul não tinham acesso aos
lugares nos estádios, e recursos que poderiam ter ido para habitação e
saúde foram usados no espetáculo global. Desde então, a desigualdade na
África do Sul tem permanecido a mesma ou até aumentado.
Valor: Existe algum tipo de legado que os investimentos em um grande evento podem deixar para uma cidade?
Ida: Grandes estádios vazios, deslocamento de população do centro
para as margens e a invisibilidade dos pobres. A realização de grandes
eventos é útil para o capital, mas não necessária do ponto de vista do
interesse público. Repito o argumento de Paul Krugman em seu livro mais
recente ["End This Depression Now!"]: mesmo sem os grandes eventos,
pode-se facilmente investir em obras públicas para crescer, uma regra
simples da economia keynesiana.
Valor: Sua pesquisa faz referência aos investimentos de Nova York na
candidatura a sede da Olimpíada de 2012, que ocorre agora em Londres.
Em que medida uma cidade pode aprofundar as desigualdades econômicas a
partir do direcionamento dos recursos para um evento como a Olimpíada?
Ida: No Brooklyn, a possibilidade de sediar os Jogos Olímpicos deu
ao prefeito a legitimidade e o apoio corporativo para fazer novo
zoneamento de uma área urbana ocupada por trabalhadores, principalmente
por uma minoria pobre e latino-hispânica. Eles foram deslocados para a
construção de novas moradias voltadas para pessoas que ganham mais de
US$ 200 mil por ano. Na verdade, esse é o critério para o investimento
em locação de imóveis. Houve uma coalizão da comunidade que lutou por
habitação a preços acessíveis e pelos que reivindicaram acesso ao rio e
a construção de novos parques públicos, o que acabou por reverter um
pouco dessa tendência.
Valor: Além da Copa do Mundo, o Brasil vai receber a Olimpíada de
2016, que será realizada na segunda maior cidade do país, o Rio, já
particularmente marcada por desigualdades sociais e econômicas. Que
tipo de dinâmica urbana leva ao aprofundamento dessas desigualdades?
Ida: A ideia neoliberal de que investir em privatização e nos
interesses corporativos para, de algum modo, ajudar os pobres, já está
muito desacreditada por economistas como Krugman e Joseph Stiglitz. Há
pouco benefício para os pobres em tais investimentos, que são
deslocados para áreas mais distantes, e há ainda uma recusa em
financiar os serviços públicos, que são privatizados.
Valor: De que maneira um grande evento pode descaracterizar uma cidade?
Ida: Na Cidade do Cabo, foi construído um belo estádio novo. Em
torno da cidade foram construídos também um surpreendente parque
público e jardins botânicos. Tudo isso é uma contribuição importante
para a cidade, mas foi feito na área mais rica, à qual só pessoas de
alto poder aquisitivo têm acesso. O estádio em si é muito grande para a
realização de atividades desportivas nacionais e, desde a Copa,
raramente foi usado. No Brooklyn, uma pitoresca vizinhança que tinha
atraído artistas, escritores, teatros off-Broadway e muitos bares com
música ao vivo agora está parcialmente alterada para dar lugar a uma
série de arranha-céus com apartamentos voltados para o rio, obstruindo a
vista do público. A habitação a preços acessíveis foi deslocada para a
parte de trás, como senzalas do século XIX. Os teatros e a atividade
cultural foram deslocados, assim como a comunidade latina, os
imigrantes poloneses e outros grupos de trabalhadores.
Valor: A partir do que constatou na África do Sul, é possível fazer
prognósticos para o Brasil, onde dez cidades estão sendo preparadas
para os jogos?
Ida: Não tenho certeza do que prever para o Brasil. A Copa atrai
investimentos estrangeiros, mas uma grande quantidade dos lucros desses
eventos vai para grandes corporações internacionais, donas dos
principais hotéis. Na África do Sul era assim, não sei se isso também
vale para o Brasil. No caso do futebol, a Fifa também fica com parte
importante dos lucros das vendas.
Carla Rodrigues, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF)
e da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio), é doutora em
filosofia e pesquisadora do CNPq
65 anos, professor titular "sênior" do IFF (ex-CEFET-Campos, RJ) e engenheiro. Pesquisador atuante nos temas: Capitalismo de Plataformas; Espaço-Economia e Financeirização no Capitalismo Contemporâneo; Circuito Econômico Petróleo-Porto; Geopolítica da Energia. Membro da Rede Latinoamericana de Investigadores em Espaço-Economia: Geografia Econômica e Economia Política (ReLAEE). Espaço para apresentar e debater questões e opiniões sobre política e economia. Blog criado em 10 agosto de 2004.
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