Ela foi publicada na edição do excelente caderno semanal "Eu & Fim de Semana" do jornal Valor. De autoria do bom jornalista Diego Viana, o entrevistado, o professor, pesquisador, historiador e cientista político, Luiz Felipe de Alencastro, titular de cátedra de história do Brasil na Universidade de Sorbonne, Paris 4.
Alencastro oferece abordagens distintas sobre o atual momento de nossa política. Identifica na atual judicialização da política brasileira, brechas deixadas, na antes elogiada Constituinte de 1988. Enxerga, por incrível que possa parecer, virtudes no nosso sistema político, considerado, único e em construção. Confira a entrevista republicada abaixo:
"Rumo à nova política federal"
Autor(es): Por Diego Viana | De São Paulo |
Valor Econômico - 21/12/2012 |
"O destaque do Judiciário no cenário político brasileiro de 2012 tem raízes mais antigas, que remetem à redemocratização do país, na década de 1980. Segundo o historiador e cientista político Luiz Felipe de Alencastro, o Congresso saiu enfraquecido da Assembleia Constituinte, em 1988, criando impasses cuja resolução dependeu da atuação da Suprema Corte. Assim, o conflito entre parlamentares e juízes, que estourou no fim de 2012, vem sendo fomentado há 25 anos.
Titular da cátedra de história do Brasil da Universidade Paris 4 (Paris-Sorbonne), Alencastro analisa os fatos do ano que termina a partir de sua inserção histórica. As eleições municipais, que sublinharam a ascensão de uma nova geração de políticos - Fernando Haddad (São Paulo), Eduardo Paes (Rio), ACM Neto (Salvador), entre outros -, são o indicativo de uma mudança gradual no equilíbrio regional da política brasileira. À medida que a hegemonia econômica de São Paulo é diluída e a abertura para o Pacífico desenvolve os Estados do Oeste, observa Alencastro, o Brasil tende a reforçar seu caráter federalista. Ainda assim, o historiador considera exagerada a aposta na ascensão do governador pernambucano Eduardo Campos a personagem político de envergadura nacional, em virtude de suas alianças pouco sólidas e dificuldade de penetração nas regiões mais decisivas do país.
No plano internacional, o historiador analisa a sobrevivência da moeda única europeia, após meses em que a possível implosão da zona do euro esteve em pauta, pelo esforço das autoridades do continente para manter um projeto político de longo prazo. Iniciativas como o plano de salvamento à Grécia e a paulatina integração bancária não são excepcionais: enquanto puderem, as forças políticas europeias farão todo o necessário para não retornar à fragmentação de outrora.
Valor: Neste ano, o STF esteve muito em evidência, não só por causa do julgamento da Ação Penal 470, mas também o voto das cotas, a união homoafetiva, o aborto de anencéfalos. Para alguns, a preeminência da Suprema Corte representa uma nova etapa da democracia brasileira. Como o senhor avalia o destaque do STF?
Luiz Felipe de Alencastro: Eu vincularia parte disso à paralisia do Congresso na saída da Constituinte. O Supremo tinha sido dotado de mais poderes. Já no fim da ditadura o sistema jurídico começou uma resistência à arbitrariedade. O STF passou a ser chamado pra arbitrar impasses que o Congresso não resolvia. Em alguns pontos, como as cotas, o STF avança. Noutros, é tomado por decisões contraditórias. Há coisas surpreendentes, como a crítica feroz do ministro [Carlos] Ayres Britto às coalizões.
Valor: O presidencialismo de coalizão é frequentemente responsabilizado pela dificuldade em fazer reformas, como a tributária e a política.
Alencastro: Quando se fala em reforma política, o tema das coalizões aparece sempre. Na declaração do ministro, a coalizão aparece como nefasta. Mas o Brasil é o único país do mundo com uma estrutura multipartidária, eleição presidencial de dois turnos e federalismo. Essa característica foi construída aos poucos e deu estabilidade política ao país, uma estabilidade que depende das coalizões. A evolução ocorreu assim e, veja só, funciona.
Valor: Falando em paralisia do Congresso, o ano termina com conflitos entre o STF e o Legislativo, tanto no caso da cassação dos deputados condenados quanto nos royalties do pré-sal. Teremos disputas entre poderes no próximo ano?
Alencastro: De repente, o país acorda para o fato de que tem mais de 3 mil vetos presidenciais parados no Congresso. Talvez o lado bom desse conflito seja expor a inércia do Congresso, que não toma iniciativa legislativa, só reage a atos do Executivo. Não há uma dinâmica parlamentar capaz de avançar na consolidação institucional. Grande parte do problema da paralisia advém do famigerado plebiscito do regime de governo, em 1993. Desde 1988, com o fim da Constituinte, o país ficou paralisado com esse debate inútil, e não estava claro quais seriam as atribuições de cada Poder, já que poderíamos ter parlamentarismo ou presidencialismo, até monarquia. Foi um desastre, como a rodovia Transamazônica, um projeto faraônico cujas consequências sofremos até hoje.
Valor: E quanto ao julgamento da AP 470? Foi o processo mais longo da história do tribunal, ocupando cinco meses de trabalho. Envolveu a condenação de líderes políticos e a introdução de teorias jurídicas que surpreenderam as defesas.
Alencastro: Nas questões que abordei até agora, o que eu quis dizer é que o STF não é um saco de gatos, que age ao sabor das circunstâncias. O mesmo vale para o julgamento do mensalão, que foi um assunto muito complexo e tenso. Mas as decisões foram tomadas com toda transparência. As sessões foram acompanhadas pelo público. Não sou especialista, mas o que me deixa desconfortável é o fato de o tribunal agir em primeira e última instância, ou seja, não ter espaço para recursos. É o paradoxo do foro privilegiado: o réu é julgado só uma vez.
Valor: E do ponto de vista político? Não foi um evento trivial. Afinal, há quem interprete o caso como um ataque ao PT, como há quem considere que pela primeira vez a corrupção nas altas esferas está sendo combatida de fato no Brasil.
Alencastro: Basta ressaltar a postura da presidente. É a reação que todo governante deveria ter. Dizer: "Eu acato a decisão; sentença não se discute; os poderes constituídos têm que respeitar a autonomia do Judiciário". Nesta semana, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, reforçou essa afirmativa, a respeito da cassação dos deputados. Mas só para fazer uma nuance: essa reação ainda é um pouco inaudível, não foi francamente assumida pelo governo como um todo. Outra leitura importante foi esboçada pela ministra Gleisi Hoffmann, ao dizer que não se põe mais a corrupção debaixo do tapete. Até então, o governo estava na defensiva. Mas parece ter notado que tem mais a ganhar, e o país também, se assumir que os ministros indicados pelos governantes do PT para o STF são capazes de votar contra o partido. E que a Polícia Federal invade e faz apreensões no gabinete da Presidência. Nesse ponto, entre os Brics, o Brasil dá de dez. Na Índia, nada disso acontece; na Rússia e na China, menos ainda.
Valor: Agora que as acusações atingem Lula diretamente, com o caso de Rosemary Noronha e as declarações de Marcos Valério para procuradores, a presidente parece ter partido para a ofensiva. O ministro Gilberto Carvalho, aliás, chamou a militância para ir às ruas.
Alencastro: A função de Carvalho é um pouco simbólica. Vamos ver se o PT vai insistir nisso, mas já adianto que acho improvável. Afinal, até agora não foi a posição oficial do partido. Quando, no congresso do PT, avançaram uma iniciativa de fazer uma moção de solidariedade aos condenados pelo STF, o presidente do partido, Rui Falcão neutralizou. O próprio Lula não endossou isso.
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Mas de Paris ele deu a entender que vai reagir e pode se candidatar novamente...
Alencastro: Essa foi uma sacada política. Diria que tem a ver com certo maquiavelismo político de Lula, um sentido profundo que ele tem de como a política funciona. Ao dizer que vai voltar a se candidatar, o debate muda. Deixa de ser uma questão criminal, de abstração jurídica e moral. Torna-se um debate entre um líder político que é candidato e uma oposição que se estrutura para combatê-lo. Essa manobra passou despercebida, por algum motivo.
Valor: Neste ano, a presidente tentou resgatar a economia com a redução da Selic, corte nas contas de luz, planos para investimento e assim por diante. O governo Dilma lhe parece uma guinada muito grande em relação à era Lula?
Alencastro: Sem dúvida. Lula, quando assumiu, não quis mexer na política econômica. Pôs Henrique Meirelles no Banco Central e Antonio Palocci para negociar com o empresariado. O governo Lula está na linha de um debate interno que havia no MDB, depois no PSDB, em que se dizia que Serra era o homem da Fiesp e Fernando Henrique, da Febraban. Lula se propôs a ser ambos. Deu certo enquanto o mercado interno esteve em expansão. Dilma toma posse em outro contexto. Se conseguir consolidar a política de juros, pode ficar na história como a presidente que acabou com o juro alto, como Fernando Henrique é o presidente do real.
Valor: Em 2010, o senhor preferiu não falar da candidata Dilma, porque ela não era conhecida. Com dois anos de governo, qual é sua avaliação?
Alencastro: Em 2009, participei de uma reunião em que Lula apresentou sua candidata para cerca de 80 pessoas, jornalistas, empresários, intelectuais. Dei minha opinião de que a vitória seria difícil. Ela não era conhecida e, pior, nunca tinha perdido uma eleição. É na queda que se vê como uma pessoa se articula, atravessa a transição, as lições que tira. Ela desenvolveu, como mostram as eleições municipais, uma capacidade de articulação política impressionante. Outro aspecto é que o preconceito da classe média, que desserviu Lula, não existe com ela.
Valor: Mas é a presidente petista que interfere na economia; usa bancos públicos para obrigar os privados a baixar juros e propõe alterações de legislação econômica. Não é o tipo de atitude que deixa confortável a parcela conservadora.
Alencastro: Ainda assim, ela circula na classe média, que a vê como uma senhora diplomada, com a filha e o neto discretos; ela fala português como a classe média ensina os filhos a falar. Ou seja, Dilma faz o contrapeso à personalidade política de Lula, que provoca a paranoia udenista da classe média. Lembre-se de Jango discursando na Central do Brasil para os sindicatos. Um ponto grave da crise do mensalão, em 2005, era saber se Lula suscitaria uma mobilização popular para defender o governo, no estilo chavista, ou como faz Cristina Kirchner. A mobilização das massas criaria uma situação em que o equilíbrio democrático seria posto em questão. O diploma de economia, o fato de ser avó, isso tranquilizou a parte da opinião pública que temia a dimensão de liderança sindical de Lula. O espectro do trabalhismo. Lembre-se de Getúlio, a política do rádio, os comícios.
Valor: A imagem dela é bastante estruturada na ideia da gestora e comandante da economia, mas a economia não parece obedecer a seus estímulos. Sua imagem pode acabar trincando por causa do pouco crescimento?
Alencastro: É preciso lembrar que o crescimento está bastante decepcionante, mas a economia continua quase em pleno emprego, o déficit nominal é relativamente baixo, a relação dívida pública/PIB está em baixa. Pleno emprego, no mundo atual, não é pouca coisa. O balanço econômico de Dilma não é tão ruim assim. É claro que, se o país não crescer em 2013 e 2014, tudo muda e conversamos de novo.
"O Supremo Tribunal Federal não é um saco de gatos, que age ao sabor das circunstâncias", afirma Luiz Felipe de Alencastro
Valor: A presidente lamenta que suas iniciativas para incentivar o empresariado não encontrem eco no próprio empresariado...
Alencastro: Vejo uma fronda de rentistas que rompem com o concerto Fiesp e Febraban de que falei sobre Lula. Quem passou décadas ganhando dinheiro com aplicações em títulos públicos não está satisfeito, está no prejuízo pela primeira vez em 40 anos, pelo menos. A Fiesp, sozinha, talvez não seja apoio suficiente, embora o presidente da entidade, Paulo Skaf, tenha afirmado que, se o dólar continuar acima de R$ 2, talvez seja possível reconstituir o tecido industrial. Ainda assim, no ano passado só se falava em desindustrialização, que a indústria brasileira era um tigre de Bengala, irremediavelmente extinta. Algo está mudando. Veja como todos estão tirando dinheiro de fundos conservadores e buscando outros ativos.
Valor: Sobre as eleições deste ano, o senhor já mencionou que o caso de São Paulo é de particular interesse. Em que sentido?
Alencastro: A política paulista sempre foi um fator de instabilidade nacional. É um grande Estado tanto industrial quanto agrícola. Sempre teve uma proporção importante de candidatos à Presidência e partidos originados no Estado, como o PSD. O Brasil vive um processo determinante de descentralização. Está entrando em um novo federalismo, mas ainda não se achou. O Brasil e os EUA são os únicos países realmente federais nas Américas. Na Argentina e no México, o federalismo está só no nome. No Brasil, São Paulo ainda tem hegemonia, mas o Centro-Oeste é dinâmico; a capital é Brasília; o Rio é uma capital importante. Não temos a tríplice função exercida pela capital na Argentina e no México, que truncam o federalismo. Está se desenhando um quadro novo no Brasil.
Valor: Que traços tem esse quadro?
Alencastro: Do ponto de vista partidário, ele ainda não está definido. O que será o novo federalismo, a composição de forças de um país mais povoado, com comunicações mais integradas, interesses mais espalhados, vai depender de como as coisas se darão nos próximos anos. É importante frisar que vai haver uma abertura para o Pacífico, que realça a importância do Oeste. É provável que em dez anos a cara da política brasileira seja bastante diferente.
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Essa evolução é perceptível na ascensão da nova geração de políticos, como Eduardo Campos, Aécio Neves, Fernando Haddad? Pode significar o fim da polaridade entre PSDB e PT?
Alencastro: No horizonte, acho que os partidos se mobilizam para renovar os quadros. No PT, surgiu Dilma, agora surge Haddad. Isso incentivou também Fernando Henrique a aceitar que deve haver uma renovação, o partido não pode se reunir só para as eleições. Fernando Henrique empurrou Aécio no meio da roda da política ao lançá-lo candidato para 2014. Essa iniciativa deveria ter vindo do próprio Aécio, que aliás já contemporizou.
Valor: Esses movimentos estão no contexto da descentralização de que o senhor falou?
Alencastro: A mudança está ocorrendo e, por enquanto, os nomes são esses. Outros ainda vão aparecer, é claro. Falando como historiador, vejo reflexos, nesse processo, do problema que havia na política ao fim da ditadura. Quando veio a anistia, duas gerações de políticos trombaram. A geração de Fernando Henrique teve de disputar espaço com a de Ulysses Guimarães. Esses últimos eram políticos de grande atuação no período pré-ditadura, mas ainda em atividade, porque na ditadura havia pouco espaço para a geração seguinte exercer política. Depois da geração de Leonel Brizola e Miguel Arraes, vinha outra, principalmente depois da eleição para o senado em 1974, que elegeu Marcos Freire, Pedro Simon, Orestes Quércia.
Valor: E o que caracteriza essa nova geração?
Alencastro: Ela não teve a perspectiva de um golpe. Mesmo Campos, que estava com a família no exílio. Em 1984, Aécio e Haddad tinham cerca de 20 anos. O que conheceram da ditadura foi a euforia do fim. Quem viveu essa época tinha esperança com a política brasileira, mesmo se depois veio o impeachment de [Fernando] Collor. Até porque o impeachment foi uma vitória da mobilização social e da imprensa. Não é a ascensão da ditadura, que a geração de Dilma e Lula viveu, quando parecia que o mundo estava se fechando, que não tinha válvula de escape. Era um golpe atrás de outro na América Latina. Aliás, acho que a ascensão de Eduardo Campos é muito superestimada. Ele tem alianças muito disparatadas e sua presença no Centro-Sul, onde se ganha ou perde eleição, é nula.
Valor: Ele não pode ascender a ser uma figura de envergadura nacional?
Alencastro: Acho muito difícil.
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Alencastro: É uma geração para a qual a consolidação democrática é um fato. Por mais antigovernista que seja, nenhum grupo político vai embarcar nos arroubos que aparecem aqui e ali, por exemplo, no Clube Militar. Penso também na instalação da Comissão da Verdade. Quero chamar atenção para o simbolismo de quando a presidente lançou a comissão chamando todos os presidentes eleitos. Eles foram - Collor, Sarney, Lula, Fernando Henrique - e tiraram foto.
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Campos e Aécio já eram figuras do xadrez político. Agora, com a eleição para prefeito de São Paulo, surge também Haddad. Que lição tiramos dessa eleição?
Alencastro: Seria interessante saber em que medida o ProUni, invenção de Haddad, teve impacto nas periferias, onde sua vitória foi esmagadora. Fala-se nas cotas, mas o ProUni criou possibilidades de ensino superior para milhões de pessoas. O eleitorado negro votou em Lula sempre e em Dilma também. Isso tem um sentido histórico: esse eleitorado votava em Getúlio, por causa dos concursos públicos. Getúlio definiu a carreira no serviço federal, Correios, Banco do Brasil, Rede Ferroviária Federal. Com isso, abriu espaço para uma parte dos negros, pequena, mas existente, com diploma e qualificação profissional. Quando passaram nos concursos, estabeleceram uma pequena camada, com estabilidade econômica, que os estudiosos do movimento negro chamam de "velhos negros urbanos". O mesmo acontece com o PT, que implanta políticas afirmativas.
Valor: Essas políticas são definitivas? Uma grande vitória conservadora poderia revogá-las?
Alencastro: A batalha ainda está para ser vencida, mas veio para ficar. A estrutura social do Brasil continua muito desequilibrada, mas houve uma ascensão social nítida da população negra. Acho que não há como voltar atrás em qualquer governo. Veja como o governador [Geraldo] Alckmin, contra a vontade dos reitores das universidades estaduais, está propondo cotas na USP, na Unicamp e na Unesp. Isso mostra que a ação afirmativa veio para ficar.
Valor: A Europa começou o ano com um risco iminente de implosão da moeda comum. Com os pacotes para a Grécia e a intervenção do Banco Central Europeu, o euro não corre mais risco?
Alencastro: O euro, como a União Europeia, foi uma decisão política. Os dirigentes do continente vão se esforçar por manter a moeda comum enquanto puderem. O euro nasceu do acordo entre [o chanceler alemão Helmut] Kohl e [o presidente francês François] Mitterrand, quando a Alemanha se reunificava e precisava do aval francês. A Espanha entrou para a União Europeia ao cair a ditadura de Franco. O presidente Adolfo Suárez [1976-1981] deu grande autonomia para as províncias, por causa das pressões de bascos e catalães. Mesmo para províncias que não reivindicavam autonomia. Com isso, as caixas de financiamento regionais abriram demais a bolsa. A origem política do euro não pode ser esquecida. A crise atual pode ser o preço a pagar pela integração.
Valor: O euro continua sendo o fator de união no continente?
Alencastro: Continua. A tal ponto que hoje, na Alemanha, os socialistas, social-democratas e verdes votam com o governo conservador de [Angela] Merkel o aumento do crédito para a Grécia. É uma questão política, mas a situação política também evolui. O governo socialista francês, que acaba de assumir, é favorável aos eurobônus. Os social-democratas alemães também. Em setembro, a Alemanha terá eleições. Merkel é muito popular, mas sua coalizão está perdendo eleição depois de eleição. Talvez em setembro tenhamos um quadro político muito diferente na Europa, porque os social-democratas podem estar governando a Alemanha. Então, eurobônus podem se tornar viáveis.
Valor: A alternativa para o crescimento após a crise de 2008 parecia estar nos emergentes, sobretudo os Brics: Brasil, Rússia, Índia, China e, agora, África do Sul. Esboçou-se uma coordenação entre esses países, mas agora as economias estão desacelerando e as conversas murcharam. O acrônimo continua tendo interesse?
Alencastro: Jim O"Neill, que cunhou o termo, disse que o crescimento rápido não era determinante. O Brasil tem vantagens nesse grupo, como não ter arma atômica, não ter inimigo por perto. Isso habilita o país a uma política propositiva no Atlântico Sul, na África, em particular. Índia e Paquistão, Índia e China, Israel e Irã, não temos um quadro parecido e devemos tirar vantagem disso. Os Brics não conseguiram se impor como grupo internacional. O"Neill era contra incluir a África do Sul, que entrou por iniciativa do grupo, para dar dimensão geopolítica. Ela só tem 50 milhões de habitantes. Falta a dimensão fundamental dos Brics.
Valor: Parte da vitória eleitoral de Obama foi atribuída ao "voto demográfico": negros, latinos, mulheres, homossexuais, contra os republicanos vistos como representantes do "homem branco heterossexual e protestante". Há uma transformação demográfica mudando a face do mundo?
Alencastro: Quando Obama declarou que era favorável ao casamento igualitário, tinha acabado de sair uma pesquisa mostrando que 52% dos americanos eram dessa opinião. Os latinos, que votavam com os conservadores, começaram a votar democrata há pouco, porque os republicanos foram muito para a direita. Bush, no primeiro mandato, teve o voto latino, porque não era hostil à imigração. Os EUA estão se tornando um país mais liberal. Pelas "sitcoms", vemos que a ideia da família americana mudou ao longo das décadas. Por outro lado, a população está envelhecendo e as pessoas mais velhas são conservadoras. O eleitorado jovem vai diminuir progressivamente e os eleitores acima de 60 anos vão votar nos republicanos.
Valor: O furor das revoluções no mundo árabe parece ter amainado, dando lugar a uma guerra civil na Síria e uma disputa política intensa no Egito. É o fim da Primavera Árabe?
Alencastro: O dado importante é o fim histórico da política secular árabe, que vinha do [presidente egípcio Gamal Abdel] Nasser e outros. Há um retorno da dimensão religiosa nesses movimentos árabes. Países como o Egito tinham um problema de coesão nacional, e estavam sacudidos pela reintrodução da dimensão religiosa - que, por sinal, tem muito a ver com a crise interminável na Palestina. A Guerra Fria tinha consolidado o secularismo árabe. Depois, voltou o aspecto religioso.
Valor: O voto que deu à Palestina o status de observador na ONU foi saudado como uma grande inflexão. Que efeito prático pode ter?
Alencastro: Bibi Netanyahu está diante de uma eleição em que a extrema direita está bem ativa. O governo está sendo guiado por uma dinâmica de radicalização, inclusive porque Israel está em crise econômica. O voto em favor da Palestina é uma grande derrota diplomática dos EUA. A França votou a favor. A Alemanha e o Reino Unido se abstiveram. Talvez os EUA tenham de revisar sua diplomacia. Algo importante ocorreu. Os europeus, que têm mais experiência na região que os EUA, acham que a situação atual não pode continuar.
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2 comentários:
Continuação da postagem anterior..
Num sistema igualitário – como o que eles defendem -, a propriedade privada seria abolida e, assim sendo, as pessoas não teriam mais por que ambicionar riquezas. E muito menos por que buscar obtê-las por meios escusos.
Apresentada assim, até parece uma boa ideia… Só que existe um porém.
Todas as pessoas nascem iguais, é verdade. Mas os seus anseios, os seus talentos e os seus esforços acabam por torná-las diferentes. Nivelá-las, todas, por baixo, novamente, é algo que requer coerção e arbitrariedade. E a História nos ensina que sempre que a coerção e a arbitrariedade se apresentam à porta é a democracia que foge pela janela.
Não é à toa, portanto, que os petistas pregam o “controle social da mídia”. É uma forma, digamos educada de dizer que eles pretendem tolher o nosso direito de discordar. Não, não se trata de censura à imprensa, alegam. É apenas, talvez, uma pequena limitação do que a imprensa pode publicar…
Pessoalmente, eu sempre duvidei daqueles que acreditam saber julgar, melhor do que o povo, aquilo que o povo realmente quer e precisa.
Como Deus não revelou a sua Verdade a ninguém, como a nenhum partido político é concedido o direito de se arvorar em concessionário exclusivo da virtude e das boas intenções, o mais seguro para todos é preservar a liberdade. E a liberdade só se consuma por meio do pleno exercício de eleger e poder ser eleito, da alternância no poder, da segurança de poder discordar, da sacralidade dos direitos humanos, da justiça igual para todos, do respeito às prerrogativas de cada um. E, por fim, do direito, assegurado aos indivíduos, de cada um poder ser feliz à sua própria maneira.
E quanto ao povo em geral? É justo viver na miséria? É legítimo morrer de fome? Não existiriam, também, “direitos sociais” para ele?
Sem dúvida. Mas é preciso compreender que o povo que deseja o pão é o mesmo que exige honestidade. As pessoas, que são quase todas elas decentes, não admitem que os políticos não o sejam.
É por isso que Dilma faz sucesso. E é por isso, também, que o PT não faz.
Muito boa a entrevista, Roberto! Confirma mais uma vez a minha especulação de que Lula se parece cada vez mais com Getúlio. Quem sabe esse seja o maior problema que ele enfrenta com as elites brasileiras.
Abraços,
Helinho
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