PS.: Atualizado às 07:28: Corrigindo a informação sobre onde, atualmente, Pablo Ghetti está desempenhando suas funções diplomáticas. Desde o início deste ano ele está na embaixada do Marrocos (Rabat-capital). Ele esteve em Damasco até o final de 2012 e foi transferido após a embaixada da Síria ter sido desativada pelos conflitos que se agravaram.
"Política
e Polícia: Reflexão sobre reformas urgentes da nossa República"
Considerando que a política
e a polícia estão no centro dos debates sobre o movimento de protestos em
curso, vale a pena refletir sobre as oportunidades que se abrem neste momento
para pensar e implementar as reformas dessas duas esferas fundamentais da
democracia. Num registro abstrato, a política é o espaço adequado para a
negociação e a irrupção do novo (de novas normas republicanas em particular),
com discurso e paixão, enquanto a polícia é o espaço de fidelidade às normas
instituídas, de garantia de sua manutenção e de sua dignidade. Esses dois
espaços conceituais comportam dois personagens paradigmáticos, num registro
mais concreto: o político tradicional, na linha de frente daquelas negociações,
e o policial pertencente à instituição da polícia, que concentra o exercício
regular da violência em um Estado. Uma reforma não prescinde da outra: a
política garante o fundamento de legitimidade da polícia e orienta o uso da
violência, a polícia dá estabilidade ao jogo político e defende as suas
decisões.
Não há democracia sem uma
pluralidade de atores não-profissionais que se ocupem tanto da política como da
polícia (é papel de todos). Tampouco há democracia moderna sem instituições que
se especializem em política e em polícia: sem a esfera política profissional e
sem a instituição policial.
Dito isso, a tarefa de
reformar ambas a política e a polícia não é nada pequena. Trata-se nada menos
do que atualizar e aprofundar as conquistas institucionais que a cidadania
brasileira alcançou no marcante período de abertura e democratização que vai da
anistia, em 1979, até o impeachment do Presidente Fernando Collor, em 1992. No
período de 20 anos após a queda de Collor tivemos uma experiência histórica com
avanços econômicos e sociais importantes, num contexto de alternância entre
dois polos de poder com raízes respeitáveis, o PSDB e o PT. Mas do ponto de
vista das instituições da República, vivemos momento de estabilidade e mesmo,
em alguns aspectos, de "corrupção". Interessa-me pensar a corrupção
num sentido clássico: não é moral, mas político-policial. Destaque-se a
diminuição da vitalidade da nossa vida pública, o descrédito dos principais
atores republicanos e das instituições policiais, a falta de diferenças de
fundo entre os polos hegemônicos do poder, a tecnocratização da administração e
a marquetização das campanhas políticas, além da corrupção num sentido mais
corriqueiro – reflexo de práticas amplamente disseminadas na nossa sociedade e
especialmente da corrupção que atinge aquela instituição encarregada de
coibi-la, a polícia.
Não importa quantos milhões
gastemos numa área ou outra, quanta eficiência nossos programas sociais ou
planos econômicos puderem alcançar, nenhuma ação pontual poderá desfazer o
mal-estar que se tem instalado. A melhor resposta à situação em que nos
encontramos, tanto por parte do sistema existente, como por parte do movimento
plural que tem ocupado as ruas, seria caminhar com determinação para as
reformas das instituições da política e da polícia. Elas nos habilitarão a
enfrentar outros desafios com mais celeridade, nos darão as estruturas que
poderão canalizar a vitalidade que se manifestou nas ruas e a construir uma
República de que nos orgulhemos. Como traduzir as diferentes demandas por uma
política mais inclusiva e uma polícia mais cidadã em propostas concretas à
altura do momento? Eis algumas reflexões:
Reforma
política:
Não avalio necessária uma
reforma abrangente das instituições políticas. De maneira geral, elas não são
melhores ou piores do que suas congêneres em democracias mundo afora. Mas
reformas estratégicas poderiam ter efeito multiplicador, promovendo maior
consciência e sensibilidade coletivas, elevando a intensidade de nossa
democracia e a participação cidadã nas instituições republicanas e nas esferas
privadas de interesse público. A necessária mudança passa por uma transformação
de mentalidades, em cujo novo quadro deverão figurar uma ética republicana
reflexiva (não são valores clássicos e estanques, mas princípios abertos à
crítica aos quais se pode aderir de modo falível e provisório), uma abertura a
novos espaços de deliberação coletiva (tanto presenciais como virtuais), além
da construção de alternativas de sociedade que não se esquivem do dissenso e do
debate vibrante, quando necessário. Vejamos algumas possíveis intervenções
estratégicas em nossas instituições políticas, para o benefício das discussões
em curso:
a) Reforma partidária: Uma
nova lei dos partidos (ou uma revisão profunda da atual) poderia cumprir o
papel de incentivar as melhores práticas, além de estimular um debate
necessário sobre os partidos em nossa República. São tênues os instrumentos que
controlam a qualidade da democracia interna dos partidos. Enquanto organizações
de interesse público permanente, não são comparáveis às demais entidades que
compõem a sociedade civil, devendo assim prestar contas, atender a preceitos
exigentes de transparência, boa governança e qualidade deliberativa.
b) Reforma do processo
legislativo: na época das redes sociais, é possível dar mais espaço para as
iniciativas populares, instrumento consagrado pela Constituição da República de
1988, mas até hoje pouco usado. Seria necessário dar mais agilidade ao
mecanismo, com introdução de ferramentas digitais. A internet também poderia
ser útil ao processo legislativo ordinário, ao viabilizar audiências públicas
virtuais e maior espaço para consultas com a sociedade civil. Também o processo
decisório na Presidência da República, que tem a atribuição de emitir medidas
provisórias, entre outros instrumentos normativos, poderia passar pelo crivo da
consulta pública. Nesse sentido, deve-se louvar os importantes avanços que têm
representado a atuação dos conselhos nacionais de educação, saúde, criança e
adolescente, imigração, segurança alimentar, entre tantos outros temas. É
preciso valorizá-los e dar-lhes meios para interagir adequadamente com a
cidadania.
c) Resgate do orçamento
participativo: experiência exitosa em diversas capitais administradas pelo
Partido dos Trabalhadores e pelo PSB, a prática poderia ser estendida, de
maneira consultiva, presencial e virtual, a Governos de Estado e mesmo ao
orçamento da União. É evidente a gana de participação, e o orçamento é
justamente o espaço no qual a inversão de prioridades, que garanta um
aproveitamento socialmente equitativo da riqueza amealhada no cofres estatais.
Essa foi uma das principais bandeiras sobre as quais se construiu o PT.
Reforma
da polícia:
Em parte posso repetir que
também nossas polícias carecem de uma mudança de mentalidade. Mas aqui o
elemento propriamente institucional parece evidente: contamos ainda com uma
polícia de caráter militar. Precisamos de uma polícia que atenda à ética
republicana, fiel às leis e ao seu sentido, uma polícia cidadã, respeitadora e
promovedora dos direitos humanos, e de policiais valorizados como servidores
públicos de primeira grandeza, agentes da República nas situações mais
difíceis. A mudança de mentalidade parece impossível sem uma mudança
institucional radical, uma nova carreira, com possibilidade de ascensão real em
seu interior, um novo código de ética nacional, uma nova formação de quadros.
Uma das recomendações ao
Brasil na última revisão periódica a que nos submetemos, no contexto do
Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, foi simplesmente a extinção da
polícia militar. O desafio é tremendo, mas não me parece haver outro caminho a
seguir: criar uma nova polícia civil, que num processo certamente demorado e
cheio de contradições deverá incorporar aos poucos as funções de policiamento
ostensivo que no momento competem à PM. É fundamental revisitar os projetos
existentes sobre o tema, aperfeiçoá-los e lutar pelas modificações
constitucionais necessárias. Os manifestantes que recentemente foram vítimas
dos excessos e do despreparo das polícias dão testemunho desse imperativo.
Infelizmente, os moradores das periferias e das comunidades carentes de grande
parte das grandes cidades brasileiras experimentam, em geral sem acesso à
grande mídia ou à justiça, e cotidianamente, a mesma virulência, a mesma
indignidade. À luz dessa questão, a querela acerca da PEC-37 torna-se questão
de menor dimensão. O Ministério Público, conforme nossa Constituição, é o autor
da ação penal pública; seu papel investigativo, no âmbito penal, deve ser
meramente eventual e excepcional, quem tem as condições materiais, a
competência técnica e a capilaridade para investigar adequadamente é e deve ser
a polícia.
***
A
irrupção do novo nas ruas é muito bem-vinda. O que mais importa, porém, é o
legado desse acontecimento. Está em jogo a fidelidade a ele, o árduo trabalho
do entendimento e do dissenso criativo, a construção de instituições renovadas
e a disseminação de práticas democráticas. Estamos também diante de mais uma
etapa de um longo processo de atualização e aprofundamento da Constituição
Cidadã, a que Florestan Fernandes chamou de "Constituição Inacabada",
e da Nova República, cujas conquistas não podemos negligenciar. Cuidar da
tensão entre "política" e "polícia": desafio de uma
geração: geração de junho de 2013.
PS.: Atualizado às 07:36: Trazendo para este espaço o comentário do Bruno Lindolfo:
Bruno Lindolfo deixou um novo comentário sobre a sua postagem ""Política e Polícia: Reflexão sobre reformas urgen...":
Boas reflexões, sobretudo pela crença de que o caminho passa, aprofundando o "entendimento e o dissenso", dentro da Constituição Cidadã.
Compartilho, para o debate, o que li da proposta da presidente,em reunião transmitida em tempo real, algo que, senão inédito, pouco usual, e que já denota um movimento por uma política mais compartilhada.
"Acho que a possibilidade de revisão constitucional caducou naquele prazo, hipótese e com aquele quorum do ADCT, que não cabe às PEC. Já uma constituinte com fim específico, contraria a própria ideia de poder soberano, ilimitado (ou limitado por "garantias naturais", vedando o retrocesso) e tudo o mais que o Barroso falou naquele vídeo (que é de 2011!) a respeito de toda dogmática constitucional afeta ao que se concebe "Poder Constituinte". Já quanto ao momento, não é de ruptura, mas estabilidade; e acho que também não dá pra falar em necessidade de transição constitucional quando estamos num processo contínuo (e ainda!) de efetivação de direitos previstos na "88" (e não acho que esse "ainda" justifique essa quebra abrupta de nossa estabilidade constitucional).
Acho que a presidente quis criar um clima de reforma, um "start", direcionar a pauta e voltar a pressão popular para que o Congresso atue, promovendo a reforma, na forma (PEC, leis) e limites (garantias, direitos fundamentais etc) da "88".
Foi uma forma de forçar/dar algum encontro ao desencontro que, neste ponto, parece recair sobre a representação.
Se não sair agora, vai ter que sair algum dia. É uma questão política, cabe à população dar o tom e a maturação desse processo que é um "construído". Até porque, nada garante que esta constituinte, hoje, comporia pensamentos e interesses diferentes dos que já existem ou efetivaria o que precisamos. E o que precisamos mesmo? Bem, a pauta está aí para a discussão/construção, "como nunca antes na história deste país".".
PS.: Atualizado às 07:36: Trazendo para este espaço o comentário do Bruno Lindolfo:
Bruno Lindolfo deixou um novo comentário sobre a sua postagem ""Política e Polícia: Reflexão sobre reformas urgen...":
Boas reflexões, sobretudo pela crença de que o caminho passa, aprofundando o "entendimento e o dissenso", dentro da Constituição Cidadã.
Compartilho, para o debate, o que li da proposta da presidente,em reunião transmitida em tempo real, algo que, senão inédito, pouco usual, e que já denota um movimento por uma política mais compartilhada.
"Acho que a possibilidade de revisão constitucional caducou naquele prazo, hipótese e com aquele quorum do ADCT, que não cabe às PEC. Já uma constituinte com fim específico, contraria a própria ideia de poder soberano, ilimitado (ou limitado por "garantias naturais", vedando o retrocesso) e tudo o mais que o Barroso falou naquele vídeo (que é de 2011!) a respeito de toda dogmática constitucional afeta ao que se concebe "Poder Constituinte". Já quanto ao momento, não é de ruptura, mas estabilidade; e acho que também não dá pra falar em necessidade de transição constitucional quando estamos num processo contínuo (e ainda!) de efetivação de direitos previstos na "88" (e não acho que esse "ainda" justifique essa quebra abrupta de nossa estabilidade constitucional).
Acho que a presidente quis criar um clima de reforma, um "start", direcionar a pauta e voltar a pressão popular para que o Congresso atue, promovendo a reforma, na forma (PEC, leis) e limites (garantias, direitos fundamentais etc) da "88".
Foi uma forma de forçar/dar algum encontro ao desencontro que, neste ponto, parece recair sobre a representação.
Se não sair agora, vai ter que sair algum dia. É uma questão política, cabe à população dar o tom e a maturação desse processo que é um "construído". Até porque, nada garante que esta constituinte, hoje, comporia pensamentos e interesses diferentes dos que já existem ou efetivaria o que precisamos. E o que precisamos mesmo? Bem, a pauta está aí para a discussão/construção, "como nunca antes na história deste país".".
2 comentários:
Boas reflexões, sobretudo pela crença de que o caminho passa, aprofundando o "entendimento e o dissenso", dentro da Constituição Cidadã.
Compartilho, para o debate, o que li da proposta da presidente,em reunião transmitida em tempo real, algo que, senão inédito, pouco usual, e que já denota um movimento por uma política mais compartilhada.
"Acho que a possibilidade de revisão constitucional caducou naquele prazo, hipótese e com aquele quorum do ADCT, que não cabe às PEC. Já uma constituinte com fim específico, contraria a própria ideia de poder soberano, ilimitado (ou limitado por "garantias naturais", vedando o retrocesso) e tudo o mais que o Barroso falou naquele vídeo (que é de 2011!) a respeito de toda dogmática constitucional afeta ao que se concebe "Poder Constituinte". Já quanto ao momento, não é de ruptura, mas estabilidade; e acho que também não dá pra falar em necessidade de transição constitucional quando estamos num processo contínuo (e ainda!) de efetivação de direitos previstos na "88" (e não acho que esse "ainda" justifique essa quebra abrupta de nossa estabilidade constitucional).
Acho que a presidente quis criar um clima de reforma, um "start", direcionar a pauta e voltar a pressão popular para que o Congresso atue, promovendo a reforma, na forma (PEC, leis) e limites (garantias, direitos fundamentais etc) da "88".
Foi uma forma de forçar/dar algum encontro ao desencontro que, neste ponto, parece recair sobre a representação.
Se não sair agora, vai ter que sair algum dia. É uma questão política, cabe à população dar o tom e a maturação desse processo que é um "construído". Até porque, nada garante que esta constituinte, hoje, comporia pensamentos e interesses diferentes dos que já existem ou efetivaria o que precisamos. E o que precisamos mesmo? Bem, a pauta está aí para a discussão/construção, "como nunca antes na história deste país".".
Algumas ponderações sobre o texto no tema que me diz respeito:
A polícia não usa a violência em nome do Estado, e sim a força (ou pelo menos deveria). É uma distinção aparentemente sem muita importância, mas que faz toda diferença.
Outro ponto interessante é perceber o mesmo discurso: "a polícia (o policial) tem que mudar a mentalidade", ou "temos que criar uma polícia cidadã".
Ora, por tudo que disse o articulista, sobre os vínculos entre política (possibilidade de mudança e repercussão de novos consensos e conflitos) e polícia (como a esfera de conservação das conquistas estabelecidas - segurança, em sua acepção mais ampla e não só se combate a criminalidade) me parece ingenuidade supor que em um Estado excludente, racista, segregador, vertical, concentrador de riqueza e , enfim, patrimonialista, vamos conseguir construir um aparato policial que se afaste muito desta concepção violenta de Estado e sociedade.
A polícia, seja ela uniformizada, militar, civil, ou mista, apenas reflete o caráter da sociedade na qual está inserida.
A violência usada nas ruas, contra aqueles que quase nunca estão expostos a ela (classe média, jornalistas, jovens brancos universitários) é cotidiana nas periferias, e de natureza bem mais letal.
E no entanto, as balas de borracha parecem incomodar bem mais que as de verdade.
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