Há em meio às reais e justas demandas da maioria que deseja mais que inclusão, também bons transportes (com menor gasto de tempo para deslocamento, para usar em estudo, cultura e lazer), mais saúde, melhor educação, etc. quem queira ficar livre das pessoas que identificam como problema. Estes desejam na prática uma sociedade "limpa" e também fascista.
Estes não querem reforma política, não querem constituinte, não querem plebiscito, não querem que os pobres votem, porque sabem, que eles sendo maioria, vão lutar e votar democraticamente pelos seus interesses. Interesse da maioria.
Assim, a minoria "limpinha", fechada em seus guetos e condomínios, com os seus médicos e hospitais de luxo, com dólares e possibilidade de estudar no exterior, viajar em aviões sem filas, viveriam bem. Querem que o Estado, gerido pelos governantes eleitos como representantes da maioria, possam gerir a "coisa pública" para si. Estes têm medo dos pobres. Estes não querem o voto dos pobres.
Nesta linha, melhor ler a boa e histórica retrospectiva que o Janine faz da evolução das civilizações ocidentais com seus modelos políticos, ora em cheque, mas, que desejamos que avance e não que retroaja. Confira:
Quem tem medo dos pobres?
Nada mais século XIX do que ter medo do voto dos pobres. Nada mais século XIX, em pleno século XXI, do que conservar esse medo e pretender privá-los do direito de votar. Numa manifestação recente, uma senhora pediu que os beneficiários do Bolsa Família perdessem o direito de eleger os governantes. Essa ideia teve alguma repercussão. É um puro balão de ensaio, que não prosperará, porque o sufrágio universal é cláusula pétrea da Constituição e uma emenda neste sentido não pode sequer ser examinada pelo Congresso. Mas vejamos o que isso significa.
O século XIX descobre a pobreza. Ela existia antes, claro, e em enorme escala. Mas é depois de 1800 que as grandes cidades, como Londres e Paris, são tomadas por pobres - gente que vem dos campos trabalhar nas fábricas ou nas casas, olhando com espanto, e depois com crescente ódio, para quem regurgita de riqueza enquanto eles passam fome. É o que a historiadora Maria Stella Bresciani chama de espetáculo da pobreza. Eles formam o que o historiador Louis Chevalier denominou "classes laboriosas, classes perigosas": os operários ameaçariam o "statu quo" vigente. Havendo o sufrágio universal, a maioria de pobres poderia decidir confiscar os bens dos ricos e reparti-los entre si. Esse é o grande medo do século XIX.
Para fazer-lhe frente, a elite recorre a dois ou três expedientes. Um deles, que ora funciona, ora não, é deixar o poder executivo nas mãos de um monarca; mas isso não cabe em regimes democráticos ou semi, como o norte-americano, o britânico, o francês. Outro é ter um Senado ou Câmara Alta de espírito conservador, com membros nomeados (os Lordes ingleses, os Pares franceses) ou eleitos por um mandato mais longo, a quem caberá refrear os ímpetos da Câmara Baixa, aquela que é eleita pelo povo inteiro. E, finalmente, o voto censitário, ou seja: o direito de voto dependeria da renda ou propriedade do indivíduo. Pobres simplesmente não votariam. É célebre a resposta de Guizot, primeiro-ministro de Luís Felipe, rei da França, quando a oposição lhe pede que baixe as exigências econômicas para votar: "Enriqueçam-se", diz ele. Ganhem mais, tenham mais, que poderão votar. No Império do Brasil, era a mesma coisa.
Cassar o voto dos pobres é recuar dois séculos
Quais as razões dadas para restringir o voto a quem tem posses ou renda elevadas? Entendia-se que essas pessoas seriam mais racionais. Quem vive da mão para a boca nada tem a perder, portanto, não é controlável. Essencialmente, é isso: vota quem tem a perder. Se eu sou rico, não quero políticas irresponsáveis, que poriam a perder a economia, o Estado, talvez a independência de meu país. Se sou pobre, que diferença me faz? Já tenho tão pouco que qualquer mudança pode ser para melhor. Exigia-se ter "bens de raiz", sinônimo de propriedade, termo interessante: somente quem está fixado ("enraizado") na sociedade, com bens ou rendimentos que ofereçam uma espécie de caução ao que diga ou faça, merece votar. Os outros, se votassem, não pagariam pelas consequências de seu voto.
Isso mudou por completo ao longo do século XX. O avanço da causa democrática levou as sociedades a repudiarem o voto censitário. Negar o voto aos pobres se tornou indigno. Além disso, quem deflagrou as guerras mais mortíferas do século não foram os pobres. Se a Alemanha e a Rússia imperiais rumaram para o desastre em 1914, não foi por iniciativa de seus miseráveis, mas de seus príncipes e nobres, em suma, dos mais ricos. E os pobres foram, sim, quem mais arcou com os custos dessas guerras infames. Deles saiu a maior parte dos milhões que morreram em batalha ou de fome. Mais perto de nós, a crise de 2008 não foi causada pelos pobres ou beneficiários da previdência social norte-americana. Não há base empírica para culpar os mais pobres pela adoção de políticas desastrosas.
Hoje, se alguém sugere, ainda que implicitamente, que pobres não votem, está retomando um imaginário antigo, arcaico. Na verdade, o século XX, sobretudo em sua segunda metade, mostrou que não é preciso negar aos pobres o voto para evitar que eles tomem os bens dos ricos; o circo - isto é, o imaginário do entretenimento - cumpre muito bem esse papel. Se for somado ao pão, isto é, à supressão da fome e da miséria, dificilmente os pobres se revoltarão. Isto, se eu quiser dar um argumento de esquerda. Um argumento mais moderado é: todo aquele que tem futuro - o que geralmente se chama "família" - se interessa em não o colocar em risco e, por isso, não apoia políticas irresponsáveis. É quando o trabalhador passa a ter, em vez de prole, uma família, quando sua renda se torna suficiente para viver mais tempo e criar filhos, que ele deixa de apoiar revoluções nas ruas. Daí, por sinal, que alguns radicais culpem a família por um certo conservadorismo que as classes trabalhadoras assumem.
Mas, de todo modo, é sinal de deficiência na cultura política a proposta de que perca o direito de votar quem viva de esmolas - um tema ainda mais antigo, porque grassou no século XVII inglês. Afinal, um Estado sempre arbitra transferências de riquezas; ele pode destiná-las aos mais ricos, como fez por milênios, ou começar a transferi-las aos mais pobres, o que é recente mas, certamente, do ponto de vista moral, não é pior.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
4 comentários:
Acho que quem tem medo nessa história toda são os pelegos e o PT de perder a teta do poder.Querem se perpetuar no poder a toda custa... até mesmo de rapidinho implementar uma reforma política a trancos e barrancos.
Lembro-me de meu professor de psicologia aplicada " A pessoa mais importante do mundo é a cada um si próprio".
Quem sempre paga a conta são os pobres e a classe média sejam os desastres e as irresponsabilidades políticas de esquerda ou direita.
É Roberto, o nível vai ladeira abaixo.
Depois destas duas "pérolas", comentar para quê?
Belo texto! A exclusão política dos pobres, na verdade, já vem de antes, com Malthus que abominava a participação política dos pobres e "irlandeses" que viviam da mão à boca.
A nossa tarefa é desconstruir essa construção classista do agente política racional.
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