"Capitalismo do pós-guerra está no fim, diz Streeck"
Por Vanessa Jurgenfeld
O sociólogo Wolfgang Streeck, professor do Max Planck, instituto para o estudo das ciências sociais, em Colônia (Alemanha), tem opiniões polêmicas sobre o atual momento econômico mundial. Ele acredita que o sistema capitalista democrático do pós-guerra vem desde os anos 1970 caminhando rumo ao seu fim e a reestruturação neoliberal dos últimos anos, especialmente depois da crise mundial de 2008, vem contribuindo para que o seu término seja, de fato, selado.
Ao contrário de alguns autores que defendem a ideia de que o capitalismo não pode morrer somente por suas próprias contradições, sendo necessária uma via para substituí-lo bem como para derrubá-lo, Streeck acredita que o sistema pode, sim, acabar sem que algo novo esteja já pronto para substituí-lo ou mesmo que uma nova força o empurre para o chão.
Em entrevista por e-mail ao Valor, o sociólogo diz que não vê sinais nas economias, nem mesmo nos Estados Unidos, de uma recuperação após a crise mundial. E entende que inevitavelmente a criação de dinheiro pelos bancos centrais, a partir de políticas de afrouxamento monetário para prover o mercado com liquidez, como as chamadas “quantitative easing”, vão causar bolhas, embora não saibamos exatamente onde. “Se uma recuperação é possível, ela levará muitos anos para ocorrer, provavelmente uma geração inteira. Mas não consigo ver essa recuperação. Claro que a questão é o que se entende por recuperação. Recuperação dos lucros? Ou recuperação dos padrões de vida daqueles que estão no andar mais baixo da sociedade? Ou é a recuperação das finanças públicas?”, destacou.
Para o autor de livros como “Politics in the age of austerity” (política nos tempos da austeridade); “Re-forming capitalism” (reformando o capitalismo) e “Buying Time” (tempo comprado), o capitalismo como uma ordem social que levaria ao progresso coletivo está em condições críticas. O casamento do capitalismo com a democracia está praticamente encerrado e há algumas desordens em andamento: baixo crescimento, sufocamento da esfera pública, avanço da oligarquia, da corrupção e da anarquia internacional.
Wolfgang esteve no Brasil uma única vez, em 1982, para participar de um congresso da International Political Science Association (IPSA), no Rio.
Recentemente, ele chegou a publicar um artigo com o ousado título “Como o capitalismo irá acabar?”, na New Left Review, em que ressaltou as tendências em andamento que dão significado ao movimento terminal, visível hoje, segundo ele, mais do que em qualquer outro momento desde a Segunda Guerra Mundial. A seguir, confira a entrevista.
Valor: Quais são os principais aspectos que o sr. entende que sinalizam que estamos diante de uma crise de longo prazo desde anos 1970?
Streeck: Vivemos uma sequência de crises, a da inflação global nos anos 1970, a crise do aumento dos déficits públicos nos anos 1980, e a crise do crescimento da dívida privada nos anos 1990, culminando na grande quebra do sistema financeiro global em 2008 e o retorno subsequente, com maior vulto, do endividamento público. Paralelo a isso, ocorrem três tendências de longo prazo interconectadas: declínio do crescimento; aumento da desigualdade; e crescimento da dificuldade de fazer frente ao pagamento de suas dívidas pelos Estados nacionais e famílias. Ninguém pode dizer como essas tendências podem ser rompidas. Adicionalmente a isso temos uma implosão global da regulação social no que diz respeito a três ‘commodities fictícias’ cruciais: trabalho, natureza e dinheiro. Esse termo ‘commodities fictícias’ é do Karl Polanyi [1886-1964]. Ele quer dizer com isso que esses três fatores de produção não podem na verdade ser completamente commoditizados. Caso sejam, são destruídos.
Valor: O sr. tem o entendimento de que a crise de 2008 não é uma crise cíclica do capitalismo.
Streeck: O problema não é cíclico, é linear. Essas três tendências reforçam uma a outra enquanto a crise entra no seu estágio seguinte: a criação ilimitada de dinheiro artificial a partir do nada pelos grandes bancos centrais [como as políticas chamadas de quantitative easing]. No que se refere à decomposição da regulamentação social, isso se deve à globalização econômica – outra tendência linear – que tomou o lugar quase completamente dos regimes nacionais de regulamentação.
Valor: O sr. classifica esse atual momento como um período que mostra uma tendência gradual de decadência. Por quê?
Streeck: Tendências são muito mais difíceis de gestionar do que eventos. Quanto mais longas, mais sistêmicas elas se tornam. Obviamente o que estamos vivendo é um desenvolvimento histórico, reconhecido, mas insuficientemente capturado pelos economistas do mainstream, que falam em “estagnação secular”. Quanto mais antiga a tendência, e essa que estamos vendo tem pelo menos 30 anos, mais cético você deve ser quanto a qualquer receita para revertê-la de uma só tacada.
Valor: Na sua opinião, portanto, não há sinais atualmente de que o capitalismo esteja se recuperando?
Streeck: Se uma recuperação é possível, ela levará muitos anos para ocorrer, provavelmente uma geração inteira. Mas não consigo ver essa recuperação. Claro que a questão é o que se entende por recuperação. Recuperação dos lucros? Ou recuperação dos padrões de vida daqueles que estão no andar mais baixo da sociedade? Ou é a recuperação das finanças públicas?
Valor: Por que o sr. acredita que a expansão monetária de alguns países, uma política usada por várias nações para sair da crise, estaria tornando as coisas piores?
Streeck: Todo mundo sabe que isso não pode continuar indefinidamente. Aumento da expansão monetária tem sido completamente incapaz de dar combustível ao crescimento. Inevitavelmente, a criação de dinheiro (pelos bancos centrais) vai causar bolhas, embora não saibamos exatamente onde. Um bom candidato para isso no momento atual são os mercados de ações. A produção ilimitada de dinheiro, assim como os problemas anteriores com a inflação (anos 70), déficit público (anos 80) e dívida privada (anos 90), é um conserto temporário para conflitos de distribuição altamente fundamentais associados ao modo capitalista de produção. Assim como as crises antecessoras, isso vai terminar em outra crise que vai precisar de um novo conserto. A única questão é: será que os economistas novamente vão achar uma solução?
Valor: O sr. tem observado que apesar da não recuperação da economia real há uma recuperação do sistema financeiro. Qual é o significado disso?
Streeck: Muitos bancos voltaram a lucrar, enquanto a maioria das economias nacionais, se não todas, continua a sofrer. Isso não é surpresa, dadas as grandes quantidades de moeda sendo injetadas no sistema financeiro pelos bancos centrais, as quais os mercados financeiros podem usar para especulação, investimento em títulos do governo ou para transações intrasetoriais que rendem comissões.
Valor: O sr. tem dito que o capitalismo tem que ser encarado como um fenômeno histórico, com um começo e um fim. Estamos, na sua avaliação, vendo o fim do capitalismo desde os anos 70, mas isso teria ficado mais claro a partir da crise de 2008?
Streeck: O que está claramente acabando – e está desaparecendo desde o fim dos anos 1970 – é o capitalismo democrático do pós-guerra. A reestruturação neoliberal do Estado atualmente em andamento no mundo da OCDE [Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico] está para selar esse acontecimento. Além disso, há a questão da futura viabilidade do capitalismo enquanto modo de produção e enquanto sociedade. Se por uma sociedade capitalista queremos dizer a capacidade de extrair bens e benefícios coletivos da “ordem do egoísmo” – o mercado – podemos já estar vendo seu falecimento.
Valor: Por que o sr. acredita, ao contrário de alguns estudiosos, que as contradições do capitalismo terão poder suficiente para levar ao seu fim? E quais contradições o sr. considera as mais importantes?
Streeck: O capitalismo como tal sempre foi uma ordem social fundamentalmente instável. E também sempre foi contestado. Extrair bens coletivos da busca privada por interesses materiais particularistas exigia instituições políticas complexas que o capitalismo foi, e é, incapaz de criar. O capitalismo precisa de adversários fortes o suficiente para civilizá-lo. Hoje em dia, nossas sociedades podem ter perdido a capacidade de conter e controlar os mercados e, assim, tornar o capitalismo socialmente aceitável. As pessoas apenas podem ser motivadas a trabalhar duro para a acumulação do capital de outras pessoas se as consequências do mercado puderem ser corrigidas. Lembre-se de que sob o capitalismo 90% das pessoas se esforçam para o benefício de 10% ou menos. Tanto as contradições do capitalismo e suas soluções provisórias pensadas para ele assumem muitas formas diferentes. Parece que os agentes políticos atualmente estão ficando sem soluções em vários fronts.
Valor: O sr. entende que há cinco “doenças endêmicas” ocorrendo nos dias de hoje. Essas doenças são as que tornam esse período único?
Streeck: Entendo que há uma coincidência única de estagnação econômica secular, de concentração oligárquica de renda e riqueza no 1% do topo, de saque do domínio público, de cinismo e corrupção generalizados e de crescente desordem internacional, em particular, com o fim dos Estados Unidos como hegemonia mundial. Claro que as ciências sociais não podem fazer previsões exatas. Mas o que se pode dizer com certa confiança é que este é um imenso problema e que lidar com ele vai exigir uma grande dose de boa sorte por parte dos defensores do capitalismo.
Valor: Quais argumentos que o levam a crer que há uma perda de hegemonia americana? Alguns pesquisadores refutam essa ideia porque a hegemonia americana estaria assentada não só no poder da sua economia, mas também no poder militar, ideológico e cultural, ainda muito fortes.
Streeck: Os Estados Unidos seguem perdendo guerras territoriais [land war], e o dólar está lentamente perdendo seu status como moeda global.
Valor: A recuperação econômica dos Estados Unidos depois da crise de 2008 – à frente de muitos países europeus, que seguem em grandes dificuldades – não seria um amostra de que eles ainda detêm a hegemonia global?
Streeck: Onde está a recuperação? O nível de produção ainda está abaixo do nível de 2007.
Valor: Apesar de prever o fim do capitalismo, o sr. diria que é difícil prever quando e como isso ocorreria?
Streeck: Um regime social e mesmo uma sociedade inteira podem deixar de funcionar sem que um novo regime ou uma nova sociedade estejam prontos para ocupar o seu lugar. Pode existir um longo período de desordem social antes de algo novo poder se cristalizar. Certamente, o capitalismo é um fenômeno histórico, significando que ele não tem apenas começo, mas também um fim. Mas esse fim não necessariamente precisa ser definido por um comitê central de um partido revolucionário ou por um comitê de capitalistas globais levando o mundo a um novo e melhor regime. O que eu vejo chegando é um capitalismo, de forma gradual, cada vez mais predominantemente incapaz de servir como núcleo de uma ordem social legitima. O resultado imediato seriam níveis até agora desconhecidos de incerteza, de vidas cada vez mais governadas pelo acaso e de riscos tendo que ser tolerados por mais e mais indivíduos em vez de pela sociedade como um todo. O capitalismo, em resumo, volta a se tornar incivilizado.
Valor: Poderia explicar melhor essa ideia?
Streeck: Capitalismo é (era) não apenas uma economia mas também uma sociedade. Sociedades, incluindo a sociedade capitalista, somente podem em casos excepcionais se basear em puro interesse próprio e coerção; precisam de legitimidade. A legitimidade capitalista depende de conseguir perseguir interesses privados, em prol de uma maximização da utilidade privada que ao mesmo tempo também beneficiaria a sociedade como um todo. Mas esse capitalismo vem se tornando cada vez menos crível.
Valor: Ao longo da história o capitalismo sempre encontrou meio de sobreviver mesmo diante dos problemas…
Streeck: Cada um dos consertos tentados desde os anos 1970 funcionou apenas por um curto período de tempo, até ter de ser substituído por algo novo. O projeto neoliberal para a revitalização do capitalismo quebrou em 2008. Não existe até agora projeto sucessor viável.
Valor: Nem mesmo há movimentos revolucionários capazes de fazer frente ao capitalismo?
Streeck: No que se refere às revoluções, elas são difíceis de ser organizadas mundialmente. Eu vejo muito descontentamento social que, entretanto, é improvável que seja capaz de consertar ou derrubar o capitalismo. E não se esqueça de que consertos pró-capitalistas nem sempre são agradáveis. Tivemos uma série deles na primeira metade do século XX, e alguns, como no Chile, na segunda metade. Eles incluíram guerras e regimes ditatoriais e toda a destruição e devastação que acarretaram. Vamos ver que medidas virão a seguir, quando o dinheiro dos bancos centrais enfim tiver se tornado demasiado tóxico.
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