quinta-feira, janeiro 15, 2015

Um parecer abalizado sobre operação de crédito por antecipação de receita por municípios e sua relação com a gestão

O advogado e professor de Direito Administrativo Internacional, Marcus Filgueiras, que já foi advogado da Fenorte e hoje atua em escritório do Mercosul, no Uruguai, emitiu aqui em seu blog uma opinião sobre a operação de crédito por antecipação de receita com empresa financeira estatal.

É um parecer que merece ser conhecido para análise da questão sob o ponto de vista jurídico. Sob o ponto de vista da gestão, das políticas públicas e do atendimento à vida do cidadão, não há como não considerar o fato inacreditável do município ter gasto R$ 16 bilhões em uma década e continuar com tantos e antigos problemas, como se vê no dia a dia. Em 19 de novembro havíamos feito referência à questão em nota aqui no blog. Aliás sob essa questão vale conferir as "considerações conclusivas" do parecer do Filgueiras no texto abaixo:

"Um Município poderá realizar operação de crédito por antecipação de receita com empresa financeira estatal?"

Introdução.
A pergunta é relevante e momentosa. Recentemente o Município de Campos dos Goytacazes realizou empréstimo junto ao Banco do Brasil para antecipar receitas decorrentes dos royalties do petróleo. Ainda que se possa empregar outro nome para a operação, caracterizou-se como operação de crédito como forma de antecipação de receita. A questão foi submetida à justiça e está pendente de decisão.

O objetivo aqui é refletir sobre alguns pontos do tema.

Conceitos básicos para entender a questão. Inicialmente há que se definir o que é uma operação de crédito. Segundo o art. 29, III, combinado com o seu § 1º, da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), trata-se de compromisso financeiro assumido em razão de qualquer um dos seguintes atos:
a) Mútuo;
b) Abertura de crédito;
c) Emissão e aceite de título;
d) Aquisição financiada de bens;
e) Recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços;
f) Arrendamento mercantil;
g) Reconhecimento ou confissão de dívidas;
h) Outras operações assemelhadas, inclusive com uso de derivativos financeiros.

A antecipação de receita é uma espécie do gênero “operação de crédito”. É um empréstimo de curto prazo para atender a insuficiência de caixa durante o exercício financeiro. Deve ser liquidada até o final do próprio exercício financeiro, mais especificamente até o dia 10 de dezembro.

A Operação de Crédito por Antecipação de Receita (ARO) é regulada pela LRF, em seu art. 38, que é a Subseção III, da Seção IV, que é destinada às operações de crédito.

No art. 38 são estabelecidos diversos requisitos, além daqueles já exigidos para a realização de qualquer outra operação de crédito contido nos outros artigos da mesma Seção IV. Não comentaremos os requisitos, mas se pode destacar que entre essas exigências está a de que a abertura de crédito será feita junto à instituição financeira “vencedora em processo competitivo eletrônico promovido pelo Banco Central do Brasil” (art. 38, § 2º, LRF). Portanto, o Município tomador não poderá eleger a instituição a que pretende realizar o empréstimo, mas estará vinculado ao resultado do processo competitivo promovido pelo BC por meios eletrônicos.

A vedação de operações entre entes da Federação. A LRF veda a realização de operação de crédito entre entes da Federação. Foi uma medida positiva da LRF para evitar a promiscuidade no passado recente do Brasil onde se financiou e refinanciou irresponsavelmente dívidas de Municípios e Estados e dos respectivos entes a eles vinculados.

Entretanto, essa vedação não alcança a hipótese proposta para estas reflexões (empréstimo do Município junto à instituição financeira estatal de outro ente Federado).

É preciso notar que o art. 35 da LRF proíbe a realização de operação de crédito entre dois entes da Federação diretamente ou por meio de alguns de seus entes da Administração indireta. Portanto não é toda empresa de um ente Federado que é alcançada pela vedação.

O referido dispositivo diz expressamente: “É vedada a realização de operação de crédito entre um ente da Federação, diretamente ou por intermédio de fundo, autarquia, fundação ou empresa estatal dependente, e outro, inclusive suas entidades da administração indireta, ainda que sob a forma de novação, refinanciamento ou postergação da dívida contraída anteriormente”. (grifo meu).

Uma estatal dotada de personalidade jurídica de direito privado de um ente da Federação que não for considerada uma “dependente” poderá realizar operação de crédito com outro ente da Federação. Esclarece-se que empresa estatal dependente é aquela que recebe do ente controlador recursos financeiros destinados à folha de pagamento, ao custeio em geral ou mesmo às despesas de capital, tal como reza o art. 2º, III, da LRF.

A questão proposta neste artigo se refere à instituição financeira estatal. Tais instituições são pessoas jurídicas do Estado portadoras de personalidade jurídica de direito privado em razão de explorarem atividade econômica típica do setor privado. São criadas e regidas ao abrigo do art. 173 da Constituição da República. São, em regra, autossuficientes. Por isso, não dependem do orçamento do ente controlador.

A permissão excepcional para a operação de crédito é condicionada. Essa interpretação de que a vedação do art. 35 não alcança às instituições financeiras estatais é reafirmada pelo § 1º do mesmo art. 35, o qual estabelece que “as operações entre instituição financeira estatal e outro ente da Federação (...)“ constituem uma exceção à regra do caput.

No entanto, o mencionado § 1º ao mesmo tempo em que reafirma a exceção impõe condições para que essa operação possa concretizar-se. Em verdade, estabelece vedações, que se juntam àquelas previstas no artigo 31, § 1º, I e nos artigos 34 a 37 da LRF que se referem às operações de crédito em geral.

O § 1º do art. 35 da LRF estabelece que não poderá ser realizada operação de crédito entre ente da Federação e instituição financeira estatal pertencente a outro ente da Federação se tal operação destinar-se a: “I – financiar, direta ou indiretamente despesas correntes” e/ou “II – refinanciar dívidas não contraídas junto à própria instituição concedente”.

São restrições relevantes. Com relação ao inciso II, fica claro que os refinanciamentos são admitidos somente para aqueles empréstimos contraídos com a própria instituição financeira. Não é o caso da pergunta proposta.

Com referência ao inciso I, o empréstimo não poderá ser feito para pagar, mesmo que indiretamente, despesas correntes. Qual o alcance desta restrição? O que significa pagar “direta” ou “indiretamente” despesas correntes? Creio que a doutrina ainda não tenha se debruçado sobre o tema.

Para entender a dimensão do problema basta constatar que as despesas correntes são aquelas que não geram aumento de patrimônio público, mas concorrem para mantê-lo e para prestar os serviços públicos. Essas despesas alcançam todas as Despesas de Custeio e também as chamadas Transferências Correntes. São, na verdade, todas as despesas necessárias para a manutenção da máquina pública e seus serviços. Trata-se de uma gama enorme de despesas: despesas de pessoal, material de consumo, serviços de terceiros, encargos diversos, subvenções sociais e econômicas, inativos, pensionistas, juros da dívida pública, contribuições de previdência social, entre outras.

Ora, qualquer insuficiência de caixa – que é o motivo que dá fundamento à operação por antecipação de receita – significa falta de recursos financeiros para pagar as contas que são, muitas delas, despesas correntes.

É controverso sustentar que a restrição mencionada no inciso I do § 1º do art. 35 não seja aplicável às operações por antecipação de receita, mas somente às demais operações de crédito. Poder-se-ia sustentar também que a finalidade de suprimento da insuficiência de caixa – motivo autorizador da ARO – é distinta da de pagar despesas correntes.

Mas essa tese é de difícil sustentação pelas seguintes razões:
I - A proibição faz menção a suportar direta ou indiretamente as despesas correntes. Assim, se a operação de crédito se destina diretamente a suprir a deficiência de caixa, indiretamente acabaria por suportar despesas, podendo ser, inclusive, as correntes.

II - A interpretação sistemática nos aponta para a aplicação inevitável do art. 35 ao caso. A Subseção III (art. 38) da LRF, onde se encontra disciplinada a ARO, está dentro da Seção IV que trata das Operações de Crédito em geral. O art. 35 que fixa as limitações comentadas está na Subseção II, também dentro da dita Seção IV.

Ademais, o artigo 38 é expresso quando pretende fazer exceção com relação à aplicação de outras regras, como é o caso do parágrafo primeiro que declara que as ARO não serão computadas para efeito de verificar se houve a superação ou não do montante das despesas de capital, que é uma limitação de caráter constitucional (art. 167, III, CF). Não há outras exceções previstas pelo art. 38.

Considerações conclusivas. Diante do exposto, respondo de maneira afirmativa a pergunta proposta. Ademais, creio que os recursos resultantes da Operação de Crédito por Antecipação de Receita (ARO) contraídas junto à instituição financeira estatal de outro ente Federado não poderão suportar o pagamento de despesas correntes, mas somente de despesas de capital.

Em outras palavras, os recursos obtidos por meio de empréstimo destinado a suprir a insuficiência de caixa e antecipar receitas não poderão destinar-se ao pagamento de despesas como despesas de pessoal, material de consumo, serviços de terceiros, encargos diversos, subvenções sociais e econômicas, inativos, pensionistas, juros da dívida pública, contribuições de previdência social, entre outras.

Por outro lado, os recursos obtidos por tal operação de crédito poderão cobrir o pagamento de despesas com obras públicas, serviços de regime de programação especial, equipamentos e instalações, material permanente, aquisições de imóveis e títulos representativos de capital de empresas em funcionamento, entre outras despesas da espécie."

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