Aí está mais um belíssimo texto do Luiz Gonzaga Belluzzo. Nele, o economista faz uma incursão histórica sobre a corrupção. Começa com um paralelo tirado da literatura e assim segue descrevendo casos sobre as falcatruas dos espertos, as concorrências darwinistas cartelizadas ou não, ao "mercado de tolos" e também às "relações carnais que acoplam o Estado à grande empresa privada.
Para Belluzzo não há motivos para a conformação com a ideia de que a corrupção seja inerente à condição humana, o que seria para ele, um fenômeno a-histórico. O artigo foi publicado na última terça-feira (07/04) no Valor. Vale conferir.
"As visitas da velha senhora"
A presidente Dilma lançou mão da dramaturgia para dissertar sobre a
corrupção, uma Velha Senhora, disse Rousseff.
A obra prima do suíço Friedrich Dürrenmatt, "A Visita da Velha Senhora",
expõe em seu enredo dramático as faces ocultas da corrupção, aquelas que se
escondem sob as máscaras da virtude. Clara Zahanassian (saudades de
Cacilda Becker) volta à pequena e empobrecida cidade natal disposta a
reparar a desonra e a humilhação sofridas quando abandonada grávida pelo
amante, Alfred. Foi obrigada a sair da cidade.
Voltou montada nos cabedais herdados do marido bilionário que a acolheu
depois das agruras da prostituição. Voltou com o espírito encharcado no
azedume da "justiça da vingança". Voltou para matar Alfred, oferecendo
propina aos moradores da cidade. Os miseráveis aceitaram a bufunfa para
"salvar a cidade da bancarrota".
No Brasil da Lava-Jato, da Operação
Zelotes e das contas no HSBC, os
partidos políticos empenhados em
"salvar a própria cidade da bancarrota"
entram em acirrada disputa para "matar
os adversários" como os campeões da
corrupção. Sugiro a criação do
"corruptômetro" junto ao "impostômetro" da Associação Comercial e o
"jurômetro" da Fiesp.
A Velha Senhora nos visita desde que viemos ao mundo. Suas aparições, no
entanto, se tornaram mais frequentes e tampouco se restringem às
cidadezinhas miseráveis: percorrem todos os cantos do planeta.
O ex-presidente Fernando Henrique cuidou de transferir a corrupção para o
quarto dos bebês. Muitos se conformam com a ideia da corrupção inerente à
condição humana, um fenômeno a-histórico e independente das condições
sociais em que os corruptos desenvolvem suas proezas. Sobram fatos e razões
para sustentar essa hipótese, mas é possível vasculhar momentos na história
em que as sociedades, seus valores e suas regras de convivência (escritas e
não escritas) são mais ou menos permeáveis às malfeitorias.
Nos Estados Unidos das últimas décadas do século XIX e no início do século
XX, as peripécias financeiras, especulativas e corruptas dos "barões ladrões"
levaram a sucessivos episódios de destruição da riqueza e das condições de
vida dos mais frágeis. As falcatruas se desenvolveram à sombra de um Estado
cúmplice da concorrência darwinista. O Estado deixou-se contaminar de alto
a baixo, da polícia ao Judiciário, pela lógica da grana.
Na posteridade da Grande Depressão, o sofrimento popular, Roosevelt e o
New Deal inauguraram tempos de respeito às instituições democráticas e
republicanas. Em 1936, discursando na convenção do Partido Democrata,
Roosevelt disparou contra "...os príncipes privilegiados das novas dinastias
econômicas" que "sedentos de poder avançaram no controle do Governo,
criaram um novo despotismo e o cobriram com as vestes da legalidade. Os
mercenários a seu serviço buscaram submeter o povo, seu trabalho e suas
propriedades".
Durou pouco o ethos do New Deal. Nos mandatos de Reagan e de Bush
Father & Sons a promiscuidade era escancarada: difícil dizer se estávamos
diante de um governo eleito ou de um escritório de corretagem. Mas os ex-presidentes
republicanos não eram exceções: o democrata Clinton protagonizou a façanha de impor os interesses dos "príncipes privilegiados"
da alta finança sob os aplausos e o apoio entusiasmado dos endinheirados do
planeta.
No ocaso de 2014, a corrupção abandonou mais uma vez o quarto das
crianças e invadiu o Congresso americano. O Citigroup enfiou um "caco" no
Spending Bill (Orçamento de Gasto) de 2015. O intruso anulou um artigo da
lei DoddFrank que proibia a utilização dos recursos do FDIC aqueles
destinados a garantir os depósitos dos cidadãos para socorrer desastres
financeiros arranjados por alavancagens imprudentes nos mercados de
derivativos. O "caco" foi aprovado por democratas e republicanos sob os
protestos da senadora Elisabeth Warren e da deputada Nancy Pelosi. Bravas
Senhoras.
Na escalada rumo à crise financeira, as temidas agências de classificação de
risco as gigantes Standard & Poors, Moodys, mais a anã Fitch distribuíram
generosamente AAA aos instrumentos securitizados de crédito imobiliário
(Mortgage Backed Securities). Fundos de pensão, companhias de seguros e
demais instituições financeiras "encarteiraram" os ativos bem classificados
pelas agências.
Já no início de 2007, quando o valor dos imóveis despencava, as três irmãs
concediam AAA a torto e a direito, numa velocidade espantosa. Bilhões de
dólares foram avaliados com a nota máxima do "investment grade", o fetiche
que ora transtorna a presidente Dilma Rousseff e seu ministro Joaquim Levy.
No auge da crise, os "especialistas" da Goldman Sachs rechearam os bolsos
apostando na desvalorização de seus próprios papéis carimbados com grau
de investimento pelos serviçais da classificação de risco. Em outros tempos,
imagino, tais "avaliações" seriam tipificadas como crimes de estelionato e de
formação de quadrilha. No entanto, na era dos mandos e desmandos da
finança, o Departamento de Justiça cobrou US$ 1,4 bilhão pelas avaliações,
digamos, precipitadas. A Securities and Exchange Commission sapecou uma
multa de US$ 77 milhões na Standard & Poors, penalidade acompanhada da
proibição imposta à agência de avaliar por um ano "securities" lastreadas em
empréstimos imobiliários.
Por estas bandas, a Lava-Jato e a Operação Zelotes escancaram as relações
carnais que acoplam o Estado à grande empresa privada. As burocracias do
Estado são convidadas a mediar a concorrência entre os grupos e instadas a
escolher ad hoc as regras a serem aplicadas. Leio nos articulistas dos
jornalões piedosas lamentações a respeito da "falta de concorrência". É o
mercado dos tolos ou são os tolos dos mercados? Quanto aos espertos, basta
passar os olhos nas estruturas de mercado em todos os setores da economia
global para perceber que é feroz a concorrência "cartelizada" entre as
megaempresas. As regras? Pé no peito, acordos entre rivais e grana no bolso
dos funcionários espertos.
Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de
Economia da Unicamp e escreve mensalmente às terças-feiras. Em
2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos
do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting
Economists."
65 anos, professor titular "sênior" do IFF (ex-CEFET-Campos, RJ) e engenheiro. Pesquisador atuante nos temas: Capitalismo de Plataformas; Espaço-Economia e Financeirização no Capitalismo Contemporâneo; Circuito Econômico Petróleo-Porto; Geopolítica da Energia. Membro da Rede Latinoamericana de Investigadores em Espaço-Economia: Geografia Econômica e Economia Política (ReLAEE). Espaço para apresentar e debater questões e opiniões sobre política e economia. Blog criado em 10 agosto de 2004.
Nenhum comentário:
Postar um comentário