Nessa linha, ele justifica que não é possível novamente se "fugir para a frente", sem enfrentar e nem resolver as contradições e os problemas passados, encobertos, segundo ele por "interesses estiveram coligados até aqui" na coligação que ele diz chamarem de social-desenvolvimentismo.
Os termos da atual disputa está perfeitamente colocada pelo professor Fiori, que diz ainda que dela sairá ou não, "a transformação do próprio Estado numa direção que pode ou não apontar no rumo do aprofundamento da democracia". Vale não apenas conferir de passagem, mas reler e arquivar a sua excelente síntese:
Ciclos e crises
"Estamos, uma vez mais, nos defrontando com uma conjuntura de
crise e um horizonte de incertezas, cujo equacionamento passará por uma luta
política na qual estão em jogo as próprias regras de valorização do capital
vigentes ao longo de todo o período "desenvolvimentista". Essas
regras são basicamente políticas e, por isso, só encontrarão espaço para sua
reorganização através de uma luta intensa e prolongada, em que cada interesse
deverá valer-se por si mesmo. Luta em que cada grupo de interesse contará
também com a fatia de que dispõe no interior do Estado enquanto seu principal
recurso de poder. Em síntese, estamos vivendo nesta crise brasileira um momento
de reorganização das relações políticas e econômicas de dominação, o que só é,
de fato, possível através de uma transformação do próprio Estado numa direção
que pode ou não apontar no rumo do aprofundamento da democracia" . J.L.F.
{1984}, "O Vôo da coruja e a crise do estado desenvolvimentista", Eduerj,
RJ, 1995, p: 117.
É difícil, mas muitas vezes é necessário recuar no tempo
para analisar melhor e compreender uma conjuntura de crise. Elas não caem do
céu, nem são obra do acaso, e sua trajetória não é inteiramente imprevisível.
Por isto, parece-nos útil, neste momento, voltar a um debate que ficou
interrompido nos anos 80, sobre a instabilidade e as crises periódicas do
"desenvolvimentismo brasileiro", porque tudo indica que ele não
morreu e que o país está enfrentando, neste momento, as consequências políticas
provocadas pelo esgotamento de um ciclo que se repetiu várias vezes no século
XX, em particular depois de 1930. Para não dizer o mesmo, recorro a um
diagnóstico escrito em plena crise dos anos 80, sobre a própria crise, seus
antecedentes e suas recorrências:
"O desenvolvimentismo brasileiro enfrentou durante toda
sua história um problema crônico de financiamento externo e interno, que se
transformou num dos principais responsáveis pelas suas desacelerações e crises
econômicas cíclicas, que foram acompanhadas pelo aumento da inflação e pelo
estrangulamento fiscal do Estado. A superação destas crises passou sempre pelo
acesso a novos recursos externos, e por um conjunto de reformas fiscais e
monetárias de emergência que conseguiram dar conta do financiamento corrente do
setor público.
Mas durante estas 'crises de estabilização', o arrocho
salarial e os cortes de gastos penalizaram fortemente os assalariados e
provocaram uma ruptura das lealdades das elites regionais e empresariais em que
se sustentou a coalizão desenvolvimentista, provocando uma grande crise
política e um ataque generalizado contra o Estado.
Foi nestas horas de crise econômica e política que os
governos desenvolvimentistas pressionados por todos os lados e tendo que
arbitrar créditos e investimentos escassos, e uma moeda ameaçada descobriram
sua baixa capacidade de implementar políticas anticíclicas ou estratégias mais
penosas de enfrentamento da crise, devido à heterogeneidade e fragilidade dos
seus apoios sociais e políticos, e devido ao alto grau de fragmentação e
'privatização' dos seus centros de poder.
Mais do que isto, os governos desenvolvimentistas
descobriram que nestas horas de crise estes centros de poder eram transformados
em instrumentos de uma luta 'sem quartel', entre os próprios 'aliados' e dentro
do Estado, pelo controle de posições e de recursos escassos. Esta luta
restringiu invariavelmente as margens de manobra e levou o Estado, muitas
vezes, a uma situação de paralisia decisória. Frente a esta situação crítica,
os governos desenvolvimentistas e conservadores buscaram quase sempre a mesma
solução 1 tentando reimpor a sua 'credibilidade' com uma centralização do
poder autoritária, e 2, 'fugindo para frente', sem enfrentar nem resolver as
contradições e os problemas passados, apenas utilizando-se de novos recursos
externos que permitiram reunificar os interesses que haviam estado coligados e
que voltaram a se unificar pragmaticamente, em torno da nova liderança de
turno." 1 .
Se olharmos para a conjuntura atual, desta perspectiva de
longo prazo, tudo parece indicar que o país está vivendo uma crise provocada
pelo esgotamento de mais um ciclo de "fuga para frente" do
desenvolvimento brasileiro. Não há dúvidas que houve mudanças cruciais através
da história e que cada novo ciclo se deu num outro patamar de crescimento e
complexidade social e econômica. E o mesmo aconteceu com o grande salto social
e democrático das primeiras décadas do século XXI. Mas apesar disto, o Brasil
manteve seu padrão estrutural de crescimento e o novo projeto que alguns chamaram
de "social-desenvolvimentista", manteve também o apoio de uma
coalizão de interesses extremamente heterogênea e desigual, ainda que agora sob
a liderança de forças progressistas.
Além disto, durante a última década, esta coalizão se
alargou tanto que acabou se transformando num verdadeiro caleidoscópio
ideológico e oportunista, sem força nem vontade para sustentar uma estratégia
econômica e social, e de inserção internacional, de mais longo prazo, com
capacidade de navegar junto nos períodos de tempestade e na contramão dos
mercados e das marés ideológicas e midiáticas dominantes.
Não é de estranhar, portanto, que na hora da desaceleração
cíclica e das políticas de "ajuste", a maioria destes
"aliados" esteja desembarcando da canoa, com a mesma rapidez com que
desembarcaram do regime militar, nos anos 80, e da coalizão neoliberal, dos
anos 90. Mas é também nestas horas de crise que podem ser tomadas decisões que
mudem o rumo da história. Para isto, entretanto, é preciso ter coragem,
persistência e visão estratégica.
1. Fiori, J.L., 1988, "Instabilidade e crise do
estado na industrialização brasileira", Tese de Professor Titular, do
Instituto de Economia Industrial da UFRJ, Mimeo, pgs.207-210 e 213-215 (texto
reeditado pelo autor para este artigo). José Luís Fiori, professor titular de
economia política internacional da UFRJ, é autor do livro "História,
estratégia e desenvolvimento" (2014) da Editora Boitempo, e coordenador do
grupo de pesquisa do CNPQ/UFRJ.
Site: www.poderglobal.net
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