Confiram o primoroso texto do genial Veríssimo publicado hoje em O Globo. A mídia comercial ainda não conseguiu desmanchar tudo no pastelão para onde caminha. O artigo é tão curto, quando denso:
O ponto da ganância
Desde que o capitalismo e a moral burguesa nasceram, ao
mesmo tempo, vivem brigando. Só conseguem viver juntos com a hipocrisia
Tudo pode ser reduzido a uma metáfora culinária. Comparamos
mulheres com frutas e revoluções com omeletes e dizemos que as pessoas
envelhecem como o vinho — ou ficam melhores ou azedam. E já ouvi dizerem de uma
mulher que lembrava um vinho da Borgonha. Nada a ver com sabor ou
personalidade, e sim com o formato da garrafa (pescoço longo e ancas largas).
O capitalismo triunfante também evoca uma questão de
cozinha, a do ponto. Qual é o ponto em que a ganância humana deixa de ser um
propulsor econômico e volta a ser pecado? Da Margaret Thatcher diziam que ela
queria o impossível: devolver à Inglaterra os valores morais da Era Vitoriana
ao mesmo tempo em que desencadeava a era do egoísmo sem remorso e declarava que
sociedade não existia, só existia o indivíduo e suas fomes. Dilema antigo.
Desde que o capitalismo e a moral burguesa nasceram, ao mesmo tempo, vivem
brigando. Só conseguem viver juntos com a hipocrisia, que teve uma das suas
apoteoses na era vitoriana invocada pela Sra. Thatcher.
No Brasil de tantos escândalos, cabe a pergunta: qual é o
ponto da ganância? Quando é que a mistura desanda, o molho queima e o que era
para ser um pudim vira uma vergonha? Há quem diga que o mercado sabe quando e
como intervir para salvar a moral burguesa. Digo, o pudim. Claro que, para isso
funcionar, é preciso confiar que todas as pessoas sejam, no fundo,
social-democratas, ou capitalistas só até o ponto certo do cozimento. Ou
acreditar que a ganância pode destruir a ideia de sociedade e ao mesmo tempo
esperar que a ideia sobreviva nas pessoas, como uma espécie de nostálgica
produção caseira.
O capital financeiro que hoje domina o mundo nasceu da
usura, que era punida pela Igreja Medieval. A história da sua lenta
transformação, de pecado em atividade respeitável, culminando com sua adoção
pela própria Igreja, é a história da hipocrisia humana. A Inquisição mandava os
usurários para a fogueira, onde... Mas é melhor parar com as metáforas
culinárias, antes de começar a falar nos grelhados.
Um comentário:
Sem hipocrisia nossa sociedade não é possível...
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