Mais uma vez, o professor José Luis Fiori faz em síntese um artigo essencial para a leitura mais totalizante e menos abobalhadamente polarizada. A partir dele é possível se compreender o momento político em que o nosso país vive, diante da observação do processo histórico e das complexas relações geopolíticas do presente. Ele foi publicado no Valor (P.A11) na última sexta-feira.
Quem ainda quiser ir um pouco mais fundo pode também ler o seu penúltimo artigo "O caos ideológico" que também replicamos aqui no blog no dia 29 de maio. Confiram!
"Longa duração e incerteza"
"A leitura atenta da história brasileira
permite ver que suas grandes inflexões
estruturais foram provocadas por
decisões tomadas em momentos de
grande crise e desafio nacional e
internacional. Como aconteceu no caso
da "independência" brasileira, por
exemplo, que foi uma decisão "reativa" e
pouco planejada, frente a um contexto de
profunda transformação geopolítica e econômica do Velho Continente, que
culmina com a Paz de Versalhes e a supremacia naval, financeira e industrial
da Inglaterra, dentro e fora da Europa.
E o mesmo também aconteceu no caso da "abolição da escravidão' e da
"proclamação da República", duas decisões brasileiras inseparáveis da
conjuntura internacional, que começa na América do Sul com a derrota
política do Brasil na Guerra do Paraguai, onde perdeu a hegemonia do Prata,
e começou a desintegração do estado imperial e de suas próprias forças
armadas; e fora da América do Sul, onde entra em curso uma ampliação e
reconfiguração do núcleo das grandes potências, com a ascensão econômica e
política dos EUA, Alemanha, Japão e Rússia.
Só que nesta conjuntura, ao contrário do que passou na independência,
existiu um projeto e uma estratégia nacional que foi vitoriosa e que impôs ao
país a República, junto com hegemonia do "cosmopolitismo agrário" das
elites paulista e mineira. Da mesma maneira, já no século XX, a "Revolução
de 30" foi também uma resposta ao desafio provocado pela "era da
catástrofe", das grandes guerras, revoluções e crise econômica.
Mas ao mesmo tempo, a Revolução de 30
e a própria instauração do "Estado Novo"
foram momentos decisivos de um projeto
nacional que foi concebido na década de
20, por uma parte da elite civil e militar
brasileira que conseguiu manter sua
hegemonia até a década de 80 que se
propôs reconstruir e fortalecer o Estado brasileiro, e suas forças armadas,
incentivando e promovendo ativamente a industrialização e o crescimento
econômico nacional, como forma de alcançar e superar a Argentina, na luta
pela hegemonia do Prata e pela liderança da América do Sul.
Cinquenta anos depois, a "redemocratização" da década de 80 marcou uma
nova inflexão histórica indissociável da mudança geopolítica e econômica
mundial, que começou com a crise e redefinição da estratégia internacional
dos EUA, que passou pela reafirmação do dólar, pela desregulação das
finanças internacionais e pela escalada armamentista que levou à
desintegração da URSS, ao fim da Guerra Fria e à instauração da
"unipolaridade imperial" dos EUA, que durou até o 11 de setembro de 2001.
Assim mesmo, depois de três décadas aproximadamente, o Brasil segue sem
conseguir definir e consolidar uma estratégia nacional e internacional
hegemônica. Pelo contrário, ainda hoje se pode dizer que este é o verdadeiro
"núcleo duro" da disputa cada vez mais violenta, entre as duas vertentes
políticas o PT e o PSDB de um mesmo projeto bifronte que nasceu nos
anos 80/90. Sua base social era diferente, mas sua matriz teórico-ideológica originária foi mais ou menos a mesma: paulista e democrática, mas ao
mesmo tempo, antiestatista, antinacionalista, antipopulista, e em última
instância, também, antidesenvolvimentista.
Este projeto bifronte, entretanto, se dividiu de forma cada vez mais nítida e
antagônica, a partir dos anos 90, quando o PSDB liderou uma política
governamental de apoio, ajuste e integração do Brasil à nova estratégia
econômica internacional dos EUA, de desregulação e globalização monetário-financeira
e de apoio ao projeto da Alca.
Da mesma forma que na década seguinte o PT liderou um governo de
coalizão que foi adernando cada vez mais na direção de um projeto de Estado
e de "capitalismo organizado" e de "bem-estar social", ao lado de uma política
externa cada vez mais autônoma e voltada para as "potências emergentes",
mesmo que nunca tenha conseguido alterar as regras e instituições
monetário-financeiras criadas pelos governos do PSDB.
O que passou nesta última década e meia foi que as mudanças de rumo e os
próprios desdobramentos inovadores da estratégia petista foram provocando
deserções e criando vetos cada vez mais radicais de forças nacionais e
internacionais, de dentro e de fora da própria coalizão governamental.
E como consequência previsível, a coalizão governamental petista foi
perdendo a unidade e a força que seriam necessárias para tomar as decisões
capazes de enfrentar a crise econômica atual sem abandonar a estratégia
econômica que foi sendo construída a partir do segundo governo Lula. Este
panorama de fragmentação e polarização nacional interna, entretanto, se
agrava ainda mais quando ele é colocado na perspectiva de um conflito
internacional cada vez mais aberto e violento, entre os EUA e a Rússia, e de
uma competição política e militar cada vez mais explícita, entre os EUA,
sendo Rússia e China os dois principais aliados do Brasil no projeto Brics.
Assim mesmo, o que mais assusta e preocupa neste momento é que o
receituário tradicional do PSDB parece agora cada vez mais simplista e
esclerosado; enquanto o PT parece cada vez mais apoplético e paralisado; e o
governo, cada vez mais dividido e fragilizado. É óbvio que o Brasil sairá desta
situação e seguirá em frente, como já o fez no passado, mas não está claro,
nem muito menos, qual será a estratégia e o caminho vencedor.
No entanto, é preciso ter atenção, porque foi nestas situações de alta
polarização e incerteza social que surgiram e galvanizaram o poder em outras
sociedades ocidentais, forças sociais e políticas fundamentalistas,
obscurantistas e retrógradas, que sempre contaram com o apoio oportunista
de amplos setores da elite financeira e iluminista, nacional e internacional.
Os mesmos setores que depois derramam "lágrimas de crocodilo" na porta
dos campos de concentração onde se tentou purificar e corrigir o mundo por
meio da exclusão ou da morte dos impuros e dos hereges.
José Luís Fiori, professor titular de economia política
internacional da UFRJ, é autor do livro "História, estratégia e
desenvolvimento" (2014) da Editora Boitempo, e coordenador do
grupo de pesquisa do CNPQ/UFRJ. www.poderglobal.net."
65 anos, professor titular "sênior" do IFF (ex-CEFET-Campos, RJ) e engenheiro. Pesquisador atuante nos temas: Capitalismo de Plataformas; Espaço-Economia e Financeirização no Capitalismo Contemporâneo; Circuito Econômico Petróleo-Porto; Geopolítica da Energia. Membro da Rede Latinoamericana de Investigadores em Espaço-Economia: Geografia Econômica e Economia Política (ReLAEE). Espaço para apresentar e debater questões e opiniões sobre política e economia. Blog criado em 10 agosto de 2004.
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