David Harvey nesta breve entrevista publicada no caderno Eu& Fim de Semana do Valor, fala mais sobre cidade e a questiona se o intuito não for o de unir e sim, o de separar para lucrar. Confira:
"Segregar espaços numa cidade equivale
a destruí-la"
Aos 79 anos, o geógrafo marxista David
Harvey dá uma guinada em sua carreira
com o livro "Paris, Capital da
Modernidade" (Boitempo). Ele se afasta
da teoria e abraça a perspectiva histórica,
e literária, buscando referências em
Flaubert, Baudelaire e Balzac para
analisar a profunda reconstrução urbana
pela qual Paris passou no fim do século
XIX. O livro será lançado com palestra
em São Paulo no dia 12, na programação do seminário Internacional Cidades
Rebeldes.
Valor: De que forma a Paris do fim do século XIX se relaciona com
questões urbanas de 2015?
David Harvey: Tanto naquele momento como no atual, o capital começou a
afetar cidades de formas muito particulares. Por exemplo, o
re-desenvolvimento de grandes áreas, a construção de projetos de larga
escala, a desapropriação e o deslocamento de classes mais baixas, a absorção
de grandes volumes de capital por meio de empreendimentos. A similaridade
desses e de outros elementos, como o boom da indústria de construção e as
lutas pelo direito à cidade, foi uma revelação para mim.
Valor: O senhor afirma que "nenhuma ordem social pode passar por
mudanças que não sejam latentes à sua condição pré-existente". Essa lógica
não inviabiliza a possibilidade de rupturas políticas?
Harvey: É preciso partir do que já existe para promover transformações:
dirigir elementos já existentes para transformá-los à medida que se
desenvolvem, por meio de novas tecnologias, por exemplo. Transformar a
cidade para que seja mais justa do ponto de vista social e não apenas para
incentivar certos tipos de crescimento econômico. Por exemplo: não há
necessidade de megaprojetos, que causam o deslocamento forçado de
populações inteiras e levam a um enorme desgaste social. É importante
construir boas escolas, moradias sociais que sejam acessíveis
financeiramente. Temos de criar cidades para a grande população, e não
paraísos de consumo e de investimento para as classes mais altas.
Valor: O senhor atribui à burguesia o processo de extrema segregação de
Paris. De que forma isso acontece?
Harvey: É uma mistura de fatores. Por exemplo, a burguesia quer manter
intacto o valor de seus principais ativos, os imóveis. Então, tenta evitar
mudanças sociais que possam causar a deterioração desse valor. Ambientes
muito valorizados precisam ser defendidos de fatores externos, como a
mudança de grupos de pessoas que possam ameaçar esse valor. Se o imóvel
ao lado do meu está deteriorado, o valor do meu imóvel vai cair. Se eu deixar
minha casa se deteriorar, o valor das casas ao seu lado sofrerá da mesma
forma.
Valor: Como vê parcerias público-privadas para criar mais espaço
público?
Harvey: Na maioria das vezes, a iniciativa privada leva o lucro, e o Estado, o
risco. Acaba funcionando mais como um subsídio para interesses privados.
Há situações particularmente, quando se trata de terrenos valiosos, nos
quais a iniciativa privada quer por as mãos em que um acordo pode ser
funcional. É preciso prover espaços públicos, e é possível forçar o setor
privado a proporcionar espaços públicos.
Valor: E quanto aos condomínios fechados? Como enxerga esse fenômeno?
Harvey: O crescente bloqueio dos espaços destrói o sentido de uma cidade.
Para mim, cidades são lugares em que um certo nível de conflito é inevitável,
dados os encontros entre diferentes classes e culturas. Segregar espaços
numa cidade equivale a destruí-la. Você acaba transformando a cidade em
uma variedade de mini-comunidades que não dialogam. É a destruição da
entidade política que uma cidade deveria ser, unindo forças e liberdades em
um ambiente criativo que promove encontros.
Valor: O Brasil passou por dois momentos de protestos nos últimos anos:
um, alinhado à esquerda, contra o aumento das tarifas de ônibus e outro, à
direita, contra a presidente Dilma Roussef e a corrupção. Como enquadrar
politicamente movimentos tão diversos?
Harvey: No meio de tudo isso há um processo de alienação política. A
qualidade de vida em grandes cidades é uma questão política fundamental. Muitas pessoas estão descontentes. A qualidade do transporte público pode
ser um dos fatores, assim como a corrupção. Além disso, há fatores, como a
estrutura do mercado de trabalho e a alienação da população em relação ao
sistema político, resultando na sensação de que não há uma democracia
plena. Esses fatores levam a movimentos políticos incoerentes, à direita, à
esquerda e à estratosfera [risos]. Vimos processos semelhantes em Londres,
em Estocolmo, em Paris. A Turquia, que não tinha um histórico de
movimentos políticos, passou por uma experiência que ia além da qualidade
de vida ou de um parque: tinha a ver com a qualidade da democracia em si.
Contudo, esses movimentos são muito voláteis. Não há como saber de onde
vêm, quando acontecem ou que forma vão tomar. Procuro entender as causas
dessa alienação. Acredito que governos de esquerda podem fazer algo a
respeito e dar uma vida significativa para a população por meio de um
ambiente político saudável.
Valor: Que países o senhor enxerga como laboratórios políticos? Para onde
olhar em busca de novos modelos?
Harvey: Os movimentos anti-austeridade na Europa. O referendo escocês
pela independência, que não era nacionalista, e, sim, anti-austeridade.
Apesar do resultado do referendo contra a independência, nas recentes
eleições no Reino Unido o partido nacionalista escocês (SNP) levou todos os
votos que antes pertenciam aos trabalhistas. Há movimentos anti-austeridade
em Portugal, na Grécia, até na Itália, como uma alternativa em
relação a partidos fascistas, fortes na França, Hungria e outros países
europeus. É o grande conflito político do momento na Europa: os fascistas
contra a nova esquerda. Também observo, por interesse pessoal, a Turquia,
em especial o movimento dos curdos no norte da Turquia, próximo à
fronteira com a Síria. Lá, há uma forma de socialismo confederado, um
governo experimental fascinante. Sem contar que 80% de algumas de suas
cidades foram destruídas e que estão cercados por inimigos, como o Estado
Islâmico, sem o apoio do governo da Turquia.
"Seminário Internacional Cidades Rebeldes". De segunda a sexta,
no Sesc Pinheiros, rua Paes Leme, 195, Pinheiros (SP)."
65 anos, professor titular "sênior" do IFF (ex-CEFET-Campos, RJ) e engenheiro. Pesquisador atuante nos temas: Capitalismo de Plataformas; Espaço-Economia e Financeirização no Capitalismo Contemporâneo; Circuito Econômico Petróleo-Porto; Geopolítica da Energia. Membro da Rede Latinoamericana de Investigadores em Espaço-Economia: Geografia Econômica e Economia Política (ReLAEE). Espaço para apresentar e debater questões e opiniões sobre política e economia. Blog criado em 10 agosto de 2004.
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