Em seu novo texto Soffiati sustenta que as características geográficas da região ajudaram a dar a conformação atual, talvez, pudéssemos interpretar como "natural" para o território fluminense.
A relação que faz entre as serras, rios, lagoas e as áreas de restinga junto ao mar misturando a geografia com a história (ou espaço e o tempo) permite até ao mais leigo uma compreensão mais totalizante e menos segmentada, tanto dos problemas ambientais, quanto de sua relação com a política e a economia que transformam a natureza por representação da espécie humana.
Na prática compreendo que o professor Soffiati está aos poucos e por ensaio estruturando um novo sobre a geografia histórica da região que vai além do ERJ. Voltar no tempo para entender as mudanças no espaço da região em que se vive é um exercício lúdico e intelectual, mas pode também ser compreendido como de formação civilizacional (mais que cidadã) no esforço de interpretar e interferir o espaço no tempo em que vivemos.
Mais um excelente texto que o professor e ambientalista Aristides Arthur Soffiati dá o prazer do blog oferecer aos seus leitores, como parte de seu objetivo maior de conhecer mais profundamente a região. Confiram:
As quatro geografias da Baixada dos Goytacazes
Arthur Soffiati
As baixadas da Ecorregião de São Tomé e do Estado do Rio de Janeiro
Situo a região norte fluminense tanto no Estado do Rio de Janeiro quanto na Ecorregião de São Tomé. O Estado do Rio de Janeiro, uma unidade da federação brasileira que foi se constituindo no período colonial como Capitania, no período imperial como Província e no período republicano como Estado, tem limites estabelecidos historicamente em acidentes naturais e em definições artificiais. Em seu interior, Hildebrando de Araújo Góes (1934), além da zona serrana e de áreas elevadas, identificou quatro grandes baixadas: a Baixada dos Goytacazes, a Baixada de Araruama, a Baixada da Guanabara e a Baixada de Sepetiba. A Baixada da Tijuca não ganhou estatuto de unidade independente.
Figura 1 - As baixadas do Estado do Rio de Janeiro segundo Hildebrando de Araujo Góes (1934)
De todas elas, a Baixada dos Goytacazes é a maior, tanto dentro de Estado do Rio quanto dentro da Ecorregião de São Tomé. Ela foi construída pelo Rio Paraíba do Sul, o maior do Estado do Rio de Janeiro e da Ecorregião de São Tomé, e o mar. É de se esperar, pois, que seja a mais extensa de todas. Ela conta com uma área de 8.300 km2. A segunda característica da Baixada dos Goytacazes é a distância entre a zona serrana e o mar. A Baixada dos Goytacazes é, das quatro, a que mais recebe águas pluviais e a mais drenada. É, de todas, a mais extensa. A terceira característica dessa planície é a declividade mínima dela entre a margem direita do Paraíba do Sul e o mar, o que dificulta o escoamento das águas fluviais e pluviais. Transbordando em períodos de cheia pela margem direita, as águas do Paraíba do Sul derivavam lentamente e, no seu percurso, iam se acumulando em depressões e formando extensas e rasas lagoas, banhados e brejos. Essa baixada propiciava a constituição de um verdadeiro pantanal. A quarta singularidade da Baixada dos Goytacazes é que, a rigor, só existiam quatro defluentes originais e regulares das águas acumuladas no continente para o mar: os Rios Macaé, Iguaçu, Paraíba do Sul e Guaxindiba, que enfrentavam e enfrentam permanentemente a grande energia oceânica, que tende a fechar qualquer desaguadouro. Os rios da Baixada dos Goytacazes lutam contra o mar aberto e violento.
Embora o conceito de ecorregião ainda seja novo e não muito claro, o autor do artigo entende que ele serve para designar uma região com certa unidade natural. Mais ainda, esta ordem natural condiciona a ordem cultural e se funde com ela. Uma ecorregião tem limites mais naturais que as unidades política, normalmente definidas artificial e historicamente. Sintetizando, pode-se entender uma ecorregião como uma realidade ambiental entre ecossistemas e biomas.
A Ecorregião de São Tomé situa-se entre os biomas costeiro e atlântico, batizada com este nome em alusão ao Cabo de São Tomé, onde o litoral brasileiro descreve acentuada curvatura de leste para norte. Ela alude também a primeira unidade político-administrativa criada na região: a Capitania de São Tomé, cujos limites se estendiam dos Rio Macaé (atual Estado do Rio de Janeiro) e Itapemirim (atual Estado do Espírito Santo). Coincidentemente, a costa entre estes dois rios é formada por restingas, planícies aluviais e tabuleiros, com uma realidade geológica distinta da costa abaixo do Rio Macaé e acima do Rio Itapemirim.
Figura 2 - Ecorregião de São Tomé
A geografia do início do Holoceno
Os geólogos situam o início do Holoceno, época geológica atual, em 11.500 anos passados. Antes, a Terra vivia no Pleistoceno, entre 1.806.000 e 11.500 anos antes do presente. O Pleistoceno é também conhecido como o tempo das grandes glaciações, que dominaram o hemisfério norte, embora todo o planeta vivesse um clima mais frio que atualmente. Com a grande cobertura de gelo no continente, no hemisfério norte, as águas oceânicas foram congeladas e sofreram um redução de nível em torno de 100 metros. Assim, terras submersas tornaram-se emersas, e pontes naturais se formaram, como as que ligaram a Ásia à América e a Ilha Britânica ao continente europeu.
O rebaixamento do nível dos mares ocorreu em toda a Terra e os continentes alcançaram extensões maiores que as atuais. No ponto em que futuramente se situaria a Baixada dos Goytacazes, há duas interpretações para as transformações geológicas que se operaram. Alberto Ribeiro Lamego entendia que, no Pleistoceno, havia um grande golfo de águas rasas que progressivamente seria atulhado por sedimentos carreados da região serrana para o golfo, dando origem às terras baixas do atual norte fluminense.
Figura 3 - A Baixada dos Goytacazes no Terciário. A linha pontilhada indica a costa atual. Concepção de Alberto Ribeiro Lamego (1945)
Figura 4 - A Baixada dos Goytacazes baixo Holoceno, segundo Alberto Ribeiro Lamego (1945). Notar a profusão de cursos d'água e de lagoas
A mais nova interpretação, formulada pelos geólogos Martin, Suguiu, Dominguez e Flexor, a partir de radiodatação, parte de um continente que, no sul, avançava mais que atualmente no mar, e era mais recuado na parte leste. Pode-se concluir que essa porção continental era formada pela série barreiras do Rio Macaé ao Rio Itapemirim, contando já com as restingas de Jurubatiba, entre os atuais municípios de Macaé e Quissamã, e a de Marobá, no sul do atual Espírito Santo. O Rio Paraíba do Sul deveria cortar esse grande tabuleiro e alcançar o mar. Os Rios Imbé, Urubu, Preto e Macabu poderiam desembocar diretamente no mar ou serem afluentes do Paraíba do Sul, assim como o Rio Muriaé. A Lagoa de Cima já existia no fim do Pleistoceno. Inúmeras lagoas deveriam se formar nas depressões de tabuleiro, que é um terreno com datação estimada em 60 milhões de anos. Ainda há muitas lagoas de tabuleiro associadas ao Rio Muriaé pela margem esquerda.
Não há estudos sistemáticos sobre essa geografia da região que futuramente daria lugar à Baixada dos Goytacazes. Não há dúvida, porém, de que ela era muito diferente da atual, assim como geografias anteriores devem ter se constituído antes da do início do Holoceno. Nossa intenção, contudo, não é remontar a tempos tão distantes. Em resumo: enquanto Alberto Ribeiro Lamego concebe uma porção de mar aterrada pelo Paraíba do Sul, Martin, Suguiu, Dominguez e Flexor concebem uma porção de tabuleiro invadida pelo mar, formando uma grande semilaguna, depois aterrada pelo Paraíba do Sul.
Figura 5 - Baixada dos Goytacazes no início do Holoceno, antes da transgressão marinha. concepção do autor a partir de Martin, Suguiu, Dominguez e Flexor (1997). A área em laranja representa o tabuleiro que existia no lugar da planície fluviomarinha.
A geografia do "optimum climaticum"
A partir de 11.500 anos antes do presente, nos primórdios do Holoceno, as temperaturas globais começaram a subir por razões naturais. A Terra começou a se aquecer e as geleiras começaram a derreter. O nível dos oceanos subiu cerca de 100 metros com as águas liberadas pela fusão das geleiras. Segundo muitos cientistas, este fenômeno está se repetindo hoje com o aquecimento global produzido pelo aumento das concentrações de gases do efeito estufa na atmosfera decorrentes de atividades humanas coletivas.
Com a elevação do nível dos oceanos, as águas marinhas invadiram o tabuleiro na sua parte mais baixa, talvez pelo Vale do Paraíba do Sul, até as bordas da Zona Serrana, em Itereré. A Lagoa de Cima foi afogada. A foz dos Rios Paraíba do Sul, Muriaé, Imbé, Urubu, Preto e Macabu passaram a se situar em ponto mais afastado do que anteriormente. Os estuários, ecossistemas formados pelo encontro de água doce com água salgada, deslocaram-se para o interior e, junto a eles, certamente formaram-se manguezais. Hoje, é bastante difícil ao senso comum imaginar manguezais onde hoje se situa a Lagoa de Cima.
Nos pontos altos da costa, o avanço do mar foi detido pelas formações de restinga e tabuleiro, mesmo assim, bastante erodidas e sofrendo recuos, como entre a atual Barra do Furado e a Região dos Lagos e como em São Francisco de Itabapoana, Presidente Kennedy e Marataízes.
Figura 6 - Área de Baixada dos Goytacazes tomada pela transgressão do mar, segundo Martin, Suguiu, Dominguez e Flexor (1997)
Em geologia, o processo de avanço do mar sobre o continente denomina-se transgressão marinha. O momento mais quente do Holoceno, denominado "optimum climaticum", ocorreu, na região, em 5.100 anos antes do presente. Onde hoje é a Baixada dos Goytacazes, a rigor uma extensa planície fluviomarinha, formou-se um imenso golfo protegido por um cordão de ilhas em sua borda.
A partir de 5.100 anos antes do presente, o mar começou a recuar, fenômeno denominado regressão marinha. Progressivamente, os rios, comandados pelo Rio Paraíba do Sul, colmatavam, com sedimentos transportados das partes altas, o golfo aberto pelo mar na parte mais baixa do tabuleiro do final do Pleistoceno. Nesse processo de recuo do mar e avanço do continente construído pelos rios e pelo próprio mar, formou-se a Baixada dos Goytacazes na sua forma mais nativa e inicial.
A geografia de 1500
Em torno de 2.000 anos antes do presente, a Baixada dos Goytacazes apresentava o contorno costeiro que conhecemos hoje. Foi nela que Pero e Gil de Gois e os Sete Capitães, nos séculos XVI e XVII se instalaram. A geografia encontrada pelos europeus parece ser a mais complexa de todas as quatro que examinamos nesse artigo.
Toda a área ocupada pelo mar em 5.100 anos antes do presente, em 2.000, foi atulhada por sedimentos transportados da zona serrana e dos tabuleiros e do mar, formando a maior planície da Ecorregião de São Tomé e do Estado do Rio de Janeiro. O jato de água do Rio Paraíba do Sul funcionou como espigão hidráulico para reter areia e formar a restinga.
Essa planície fluviomarinha tem como característica a rede intrincada de ecossistemas aquáticos continentais comandada pelo Paraíba do Sul. Os quatro braços em que ele se ramifica ao deixar a zona serrana formam um grande delta em que se destacam o Rio Paraíba do Sul e a Lagoa Feia. O primeiro tanto recebe águas do Rio Muriaé quanto distribui água para o Rio Iguaçu, defluente principal da Lagoa Feia, pelos chamados posteriormente Córrego do Cula e Rio Doce ou Água Preta.
Por sua vez, o subsistema Lagoa Feia recebe águas dos Rios Imbé e Urubu, que defluem na Lagoa de Cima, do Preto, do Ururaí, da Prata e Macabu. Na baixada, há um grande acúmulo de água doce proveniente da zona serrana que encontra dificuldade de chegar ao mar em face da grande energia oceânica. Daí a formação de uma miríade de lagoas constituídas por rios ou interligadas por canais naturais. Apenas as desembocaduras dos Rios Macaé, Iguaçu, Paraíba do Sul e Guaxindiba permaneciam abertas durante todo o ano.
Figura 7 - Mapa organizado por Alberto Ribeiro Lamego (1954), tomando por base cartográfica mapa de Marcelino Ramos da Silva (1898). Notar a complexidade dos ecossistemas aquáticos continentais.
Os povos nativos que desceram das partes altas para a baixada encontraram nela alimento abundante em termos de pesca e de caça, tanto nas águas interiores quanto nos estuários e no mar. Entretanto, os colonizadores portugueses, integrantes de uma economia de mercado, consideraram muito fértil o solo. Mas, para aproveitá-lo, só drenando a água. O primeiro esforço foi empreendido pelo Capitão José de Barcelos Machado, um dos herdeiros dos Sete Capitães, abrindo a famosa Vala do Furado, na atual Barra do Furado, em 1688. Sua intenção era abrir um novo escoadouro para o mar. Contudo, o Capitão não contava com a energia do mar, que fechava rapidamente a barra da Vala do Furado.
Jesuítas e governantes promoveram o desentupimento dos canais naturais nos séculos XVIII e XIX, mas mantendo a estrutura existente. O que se fazia era acelerar seu funcionamento. Mas, no século XIX, com a dinamização da economia e a necessidade de exportar e importar produtos, governos e particulares abriram quatro canais de navegação e construíram ferrovias.
A geografia atual
No início do século XX, a modernização da indústria açucareira aumentou a produtividade. Porém, não havia matéria prima suficiente para engenhos centrais, usinas e destilarias. Tratava-se de ampliar a província agrícola, em grande parte sob as águas da Baixada dos Goytacazes. Várias comissões de saneamento e drenagem foram criadas, todas elas insuficientes e de vida curta até que, em 1933, o governo de Getúlio Vargas, representado um Estado mais intervencionista na economia, criou a Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense para a integração de terras ao processo produtivo e para o combate de endemias rurais. Os trabalhos da Comissão começaram em 1935 e foram tão bem sucedidos para os fins almejados que ela se transformou, em 1940, no Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) com atuação virtual em todo o território brasileiro.
O DNOS mudou radicalmente a geografia encontrada pelos colonos. De uma geometria fractal, passou-se a uma geometria euclidiana. Rios foram canalizados e lagoas drenadas. Oito canais primários foram abertos entre os subsistemas Paraíba do Sul e Lagoa Feia. O total de canais montou a cerca de 1.400 quilômetros, uma extensão maior que a do próprio Rio Paraíba do Sul.
Quando foi extinto, em 1990, o DNOS deixou um vazio preenchido por ações individuais, de classe e municipais. Só no início de 2009, o Instituto Estadual do Ambiente começou a assumir seu lugar, mesmo assim, mais para reforma e manutenção das obras deixadas pelo órgão federal.
O DNOS mudou radicalmente a geografia encontrada pelos colonos. De uma geometria fractal, passou-se a uma geometria euclidiana. Rios foram canalizados e lagoas drenadas. Oito canais primários foram abertos entre os subsistemas Paraíba do Sul e Lagoa Feia. O total de canais montou a cerca de 1.400 quilômetros, uma extensão maior que a do próprio Rio Paraíba do Sul.
Quando foi extinto, em 1990, o DNOS deixou um vazio preenchido por ações individuais, de classe e municipais. Só no início de 2009, o Instituto Estadual do Ambiente começou a assumir seu lugar, mesmo assim, mais para reforma e manutenção das obras deixadas pelo órgão federal.
Figura 8 - Rios, canais e lagoas das margens esquerda e direita do Rio Paraíba do Sul. Concepção dos Geógrafos do Sala Verde, acima mencionados (2014).
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