sexta-feira, setembro 11, 2015

O bicentenário da expedição científica de Maximiliano de Wied-Neuwied - V, por Soffiati

Abaixo publicamos o quinto artigo do professor, historiador e ecologista Aristides Soffiati sobre a expedição do alemão Maximiliano de Wied-Neuwied. O texto faz parte da série de seis artigos sobre o tema. Para quem não leu, os quatro textos anteriores podem ser lidos aqui, aquiaqui e aqui.

O bicentenário da expedição científica de Maximiliano de Wied-Neuwied - V
De São Fidélis a ao Rio Itabapoana
Arthur Soffiati

            A percepção de solo arenoso sob os pés dos integrantes da expedição científica de Maximiliano de Wied-Neuwied indica a presença da restinga. A caçada de animais até então não abatidos começa. Um deles é o jacaré-papo-amerelo. "... quando atingíamos a margem do rio, tivemos ocasião de experimentar um gênero de caça inteiramente novo para nós, a do jacaré, ou 'alligator' desses rincões (...) em todos os rios do Brasil, máxime nos de pouca correnteza, nos lugares pantanosos e nos remansos. Estes se reconhecem logo pela presença de plantas aquáticas de grande folhas, tais como a Nymphaea, a Pontederia e outras, que emergem do fundo e estendem horizontalmente as folhas na superfície. Entre elas é que o jacaré deve ser procurado; aí o observador experimentado lhe descobre a cabeça, que, espreitando a presa, sai fora d'água. Também se encontram, por vezes, no meio dos rios, especialmente nos ribeirões quase estagnados, ou remansosos.




"Figura 1- Jacaré-de-papo-amarelo. Desenho incluído no "Abbildungen zur Naturgeschichte Brasiliens", de Maximiliano de Wied-Neuwied

            "Cobrem as margens do Paraíba bosques de uma árvores de dezoito a vinte pés de altura, de caule esguio e grandes folhas pubescentes e cordiformes (provavelmente um Croton), parenta muito próxima do Tridesmys (Monoecia)." Eu, autor do artigo, suspeito ser a aninga, planta que cresce na borda do estuário, mais próximo do estuário. Ainda é bastante frequente, mas, naquele tempo, crescia mais. Encontrei-a também na Lagoa de Gruçaí. O príncipe informa que os jacarés são caçados como alimento dos pobres e escravos. Embora seja temido e cercado de lendas, o jacaré não é tão perigoso na avaliação de Maximiliano, sempre marcada pela racionalidade europeia.

            No trajeto para São João da Barra, ele encontra exemplares de pitangueira e cajueiro. A praia se aproxima. Em São João da Barra, sua comitiva é hospedada na Casa de Câmara e Cadeia, único prédio com essas características que restou no norte/noroeste fluminense. "... a casa da Câmara , escreve ele, É um espaçoso edifício com ótimos quartos e um quintal plantado com laranjeiras e pés de goiaba, alguns dos quais em flor. São João da Barra é uma localidade que não se pode comparar a S. Salvador, pois que só tem uma igreja, ruas sem calçamento, casas de um só andar, construídas de paus e barro. Mas, por outro lado o rio é navegável por navios de regular tamanho, brigues e sumacas, e tem comunicação imediata com o oceano. Todas as embarcações com destino a S. Salvador passam por esse lugar,embora o braço do rio próximo da vila seja raso, e o canal, propriamente, fique do outro lado de algumas ilhas. Os habitantes são, sobretudo, pescadores e marinheiros, cuja subsistência é garantida pelo comércio com S. Salvador, dos produtos da região."

            O naturalista revela que, em 1815, o braço principal do delta do Paraíba do Sul, em Atafona, já era, por natureza, raso, sendo mais fácil chegar ao mar pelo braço de Gargaú. A expedição permaneceu dois dias em São João da Barra para preparar os animais caçados e partiu em direção ao norte. Para tanto, atravessou o Rio Paraíba do Sul na foz. As ilhas, recobertas com linda vegetação, foram avistadas. "uma malvácea, de doze a quinze pés de altura, flores grande amarelo-pálidas e folhas cordiformes", foi registrada, assim (agora com certeza) a aninga, com seus frutos ovais e flor esbranquiçada.

            Anota em seu diário: "... atravessamos o segundo braço do rio, remando, então, por um pequeno canal, entre duas ilhas, cujas águas, ensombradas de todos os lados pelas florestas altaneiras, são quase estagnadas, motivo pelo qual cheias de jacarés." Aqui, a referência a raízes descobertas e arqueadas do Conocarpus e da Avicennia." O naturalista não tinha muita intimidade com o ecossistema manguezal, sempre avistando nele o Conocarpus e o confundindo com o mangue vermelho.

            Sempre na companhia de seus colegas Freyreiss e Sellow, Maximiliano chega à fazenda Mandinga. "Na língua de terra saliente, onde o litoral suporta o mais violento embate do ressaca, encontram-se pedras perfuradas do modo mais extraordinário pela água." Parece que a comitiva se encontra na altura de Manguinhos, onde o mar erodiu consideravelmente o tabuleiro.

            "Depois de termos caminhado algumas léguas por essa praia, uma picada levou-nos a algumas lagoas, rodeadas de eminências silvestres. Toda a nossa tropa estava com uma sede ardente; apeamos, por isso, para nos saciar, mas, com grande aborrecimento nosso, verificamos que as marés tornavam salobra a água dessas lagoas" Provavelmente, ele se refere aos muitos córregos do atual município de São Francisco de Itabapoana, cuja água é salobra, levando seus moradores a abrir cacimbas. Daí a denominação de Sertão das Cacimbas para esta região.

            Mas a trilha para a Fazenda Muribeca, na margem direita do Rio Itabapoana, afastava-se do litoral e conduzia para o interior de uma floresta cerrada: "Uma trilha, vindo da costa, cedo nos conduziu, através de espessos bosques, a uma grande floresta. Cavalgava adiante da tropa, observando as belas plantas, e pensando nos tapuias, que algumas vezes infestam essas paragens, quando, para meu pequeno espanto, vi de súbito, em frente de mim, dois homens escuros e nus. Tomei-os por selvagens no primeiro momento, e preparava a espingarda de dois canos para me defender de qualquer ataque, quando percebi que eram caçadores de lagartos. Os colonos, que vivem esparsos nessas solidões, gostam muito da carne da grande espécie de lagarto denominado 'teiú' na língua geral dos índios da costa. Por isso, partem muitas vezes, entre matagais e florestas, em busca desses animais, levando um par de cães treinados para esse fim. Quando os cães se aproximam do lagarto, este se lança com a rapidez de uma flecha para a toca subterrânea, que lhe serve de morada, donde é arrancado e morto pelos caçadores. Sendo grande o calor, esses homens, cuja pele do corpo inteira fica tão tisnada pelo sol que podem passar por tapuias, desnudam-se completamente. Carregavam machados e dois lagartos de mais ou menos quatro pés de comprimento, inclusive a longa cauda. Esses caçadores, que conheciam bem a região, asseguraram-nos que estaríamos, em menos de uma hora, na fazenda de Muribeca, onde pretendíamos passar a noite. Com efeito, em breve passávamos a cerca que lhe servia de limite."




Figura 2- Caçadores brasileiros. Maximiliano encontro dois no Sertão de São João da Barra caçando teiú. Ilustração contida em "Viagem ao Brasil"

            Antes de alcançar a fazenda, Maximiliano redige uma de sua belas, romântica e saudosas páginas: "Na escura e imponente mata virgem achamos bonitas plantas, e o soberbo Convolvulus de flores azul-celeste enlaçava-se nos arbustos, até grande altura.  O pio forte e grava do "juó", em três ou quatro notas, é ouvido, nessas matas imensas, em todas horas do dia e mesmo à meia noite." Olivério Pinto, que comenta o livro, informa, em nota de rodapé, que Maximiliano foi o primeiro a descrever essa ave.



 Figura 3- Lagarto teiú, muito apreciado como iguaria no Brasil. Desenho incluído no "Abbildungen zur Naturgeschichte Brasiliens", de Maximiliano de Wied-Neuwied

            "Depois de atravessada a floresta, encontramo-nos em extensas plantações recentes; de uma elevação, onde se viam troncos por terra." Era a famosa Fazenda da Muribeca. Aí, "em todas as direções, divisamos um quadro encantador da majestosa solidão, às margens do Itabapoana, que, como fita de prata, vai coleando entre as selvas umbrosas, e corta uma planície verdejante, em cujo meio se localiza a grande fazenda de Muribeca, cercada de vastas plantações. Em todo o redor, florestas imensas limitam o horizonte."



Figura 4- Teiú morto e sem a cauda, a parte mais apreciada como iguaria. Desenho incluído no "Abbildungen zur Naturgeschichte Brasiliens", de Maximiliano de Wied-Neuwied

            A fazenda pertenceu aos jesuítas até sua expulsão do Império Colonial Português, por influência do Marquês de Pombal, 1759. Quando da passagem de Maximiliano, em 1815, ela  pertencia a quatro associados e contava com 300 escravos. O príncipe anota: "O trabalho é bastante árduo para os escravos; consiste principalmente em derrubar as matas. Plantam-se mandioca, milho, algodão e um pouco de café."

            A grande ameaça a rondar a área, segundo seus habitantes, ainda eram os índios puris. Maximiliano observa que "As grandes florestas das cercanias de Muribeca são habitadas por Puris nômades, que, nessas paragens e na extensão de um dia de jornada para o norte, se mantêm hostis." Em agosto daquele ano, eles "... atacaram os rebanhos da fazenda, à margem do Itabapoana e mataram, de maldade, trinta bois e um cavalo. Um rapazote negro, que tomava conta do gado, foi isolado dos companheiros armados, feito prisioneiro, morto, e, segundo afirmam, assado e devorado. Acham que eles separaram os braços, as pernas e a carne do tronco, levando-os consigo; porque, pouco depois, encontraram no local a cabeça e o tronco descarnado do negrinho; porém os selvagens tinham-se internado precipitadamente pela mata. Reconheceram-se, também, as mãos e os pés, assados e roídos, e dizem que até se viam as marcas dos dentes."

            Antes de atravessarem o Itabapoana para continuar a viagem, Maximiliano relata que, "Num passeio rio acima, os Srs. Freyreiss e Sellow se divertiram com o espetáculo de um grande bando de lontras, caçando na água, adiante deles, sem o menor sinal de alarma. A lontra brasileira difere da dos nossos rios europeus, principalmente por ter o rabo um pouco achatado; caráter este inexistente nos espécimes empalhados e, por isso, esquecido nas obras de história natural. O pelo é muito macio e bonito. Nos rios principais do interior do Brasil, no S. Francisco, por exemplo, atinge tamanho prodigioso: é aí denominada de 'ariranha'..." Em nota de rodapé, Olivério Pinto conclui que, pela descrição, trata-se, de fato, de ariranha, espécie extinta no norte/noroeste fluminense e no sul capixaba.

            Sem dúvida, na região visitada pelo príncipe naturalista, o ambiente foi muito modificado para pior e a biodiversidade se empobreceu. Das luxuriantes matas do antigo Sertão de São João da Barra, restaram apenas a Mata do Carvão, hoje protegida pela Estação Ecológica Estadual de Guaxindiba, e alguns tufos remanescentes de floresta.

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