O
bicentenário da expedição científica de Maximiliano de Wied-Neuwied - V
De
São Fidélis a ao Rio Itabapoana
Arthur
Soffiati
A percepção de solo arenoso sob os
pés dos integrantes da expedição científica de Maximiliano de Wied-Neuwied
indica a presença da restinga. A caçada de animais até então não abatidos
começa. Um deles é o jacaré-papo-amerelo. "... quando atingíamos a margem
do rio, tivemos ocasião de experimentar um gênero de caça inteiramente novo
para nós, a do jacaré, ou 'alligator' desses rincões (...) em todos os rios do
Brasil, máxime nos de pouca correnteza, nos lugares pantanosos e nos remansos.
Estes se reconhecem logo pela presença de plantas aquáticas de grande folhas,
tais como a Nymphaea, a Pontederia e outras, que emergem do fundo e estendem
horizontalmente as folhas na superfície. Entre elas é que o jacaré deve ser
procurado; aí o observador experimentado lhe descobre a cabeça, que,
espreitando a presa, sai fora d'água. Também se encontram, por vezes, no meio
dos rios, especialmente nos ribeirões quase estagnados, ou remansosos.
"Figura 1- Jacaré-de-papo-amarelo. Desenho
incluído no "Abbildungen
zur Naturgeschichte Brasiliens", de Maximiliano de Wied-Neuwied
"Cobrem as margens do Paraíba
bosques de uma árvores de dezoito a vinte pés de altura, de caule esguio e
grandes folhas pubescentes e cordiformes (provavelmente um Croton), parenta muito próxima do Tridesmys (Monoecia)." Eu,
autor do artigo, suspeito ser a aninga, planta que cresce na borda do estuário,
mais próximo do estuário. Ainda é bastante frequente, mas, naquele tempo,
crescia mais. Encontrei-a também na Lagoa de Gruçaí. O príncipe informa que os
jacarés são caçados como alimento dos pobres e escravos. Embora seja temido e
cercado de lendas, o jacaré não é tão perigoso na avaliação de Maximiliano,
sempre marcada pela racionalidade europeia.
No trajeto para São João da Barra,
ele encontra exemplares de pitangueira e cajueiro. A praia se aproxima. Em São
João da Barra, sua comitiva é hospedada na Casa de Câmara e Cadeia, único
prédio com essas características que restou no norte/noroeste fluminense. "...
a casa da Câmara , escreve ele, É um espaçoso edifício com ótimos quartos e um
quintal plantado com laranjeiras e pés de goiaba, alguns dos quais em flor. São
João da Barra é uma localidade que não se pode comparar a S. Salvador, pois que
só tem uma igreja, ruas sem
calçamento, casas de um só andar, construídas de paus e barro. Mas, por outro
lado o rio é navegável por navios de regular tamanho, brigues e sumacas, e tem
comunicação imediata com o oceano. Todas as embarcações com destino a S.
Salvador passam por esse lugar,embora o braço do rio próximo da vila seja raso,
e o canal, propriamente, fique do outro lado de algumas ilhas. Os habitantes
são, sobretudo, pescadores e marinheiros, cuja subsistência é garantida pelo
comércio com S. Salvador, dos produtos da região."
O naturalista revela que, em 1815, o
braço principal do delta do Paraíba do Sul, em Atafona, já era, por natureza,
raso, sendo mais fácil chegar ao mar pelo braço de Gargaú. A expedição
permaneceu dois dias em São João da Barra para preparar os animais caçados e
partiu em direção ao norte. Para tanto, atravessou o Rio Paraíba do Sul na foz.
As ilhas, recobertas com linda vegetação, foram avistadas. "uma malvácea,
de doze a quinze pés de altura, flores grande amarelo-pálidas e folhas
cordiformes", foi registrada, assim (agora com certeza) a aninga, com seus
frutos ovais e flor esbranquiçada.
Anota em seu diário: "...
atravessamos o segundo braço do rio, remando, então, por um pequeno canal,
entre duas ilhas, cujas águas, ensombradas de todos os lados pelas florestas
altaneiras, são quase estagnadas, motivo pelo qual cheias de jacarés."
Aqui, a referência a raízes descobertas e arqueadas do Conocarpus e da Avicennia."
O naturalista não tinha muita intimidade com o ecossistema manguezal, sempre
avistando nele o Conocarpus e o confundindo com o mangue vermelho.
Sempre na companhia de seus colegas
Freyreiss e Sellow, Maximiliano chega à fazenda Mandinga. "Na língua de
terra saliente, onde o litoral suporta o mais violento embate do ressaca,
encontram-se pedras perfuradas do modo mais extraordinário pela água." Parece
que a comitiva se encontra na altura de Manguinhos, onde o mar erodiu
consideravelmente o tabuleiro.
"Depois de termos caminhado
algumas léguas por essa praia, uma picada levou-nos a algumas lagoas, rodeadas
de eminências silvestres. Toda a nossa tropa estava com uma sede ardente;
apeamos, por isso, para nos saciar, mas, com grande aborrecimento nosso,
verificamos que as marés tornavam salobra a água dessas lagoas"
Provavelmente, ele se refere aos muitos córregos do atual município de São
Francisco de Itabapoana, cuja água é salobra, levando seus moradores a abrir
cacimbas. Daí a denominação de Sertão das Cacimbas para esta região.
Mas a trilha para a Fazenda
Muribeca, na margem direita do Rio Itabapoana, afastava-se do litoral e
conduzia para o interior de uma floresta cerrada: "Uma trilha, vindo da
costa, cedo nos conduziu, através de espessos bosques, a uma grande floresta.
Cavalgava adiante da tropa, observando as belas plantas, e pensando nos tapuias,
que algumas vezes infestam essas paragens, quando, para meu pequeno espanto, vi
de súbito, em frente de mim, dois homens escuros e nus. Tomei-os por selvagens
no primeiro momento, e preparava a espingarda de dois canos para me defender de
qualquer ataque, quando percebi que eram caçadores de lagartos. Os colonos, que
vivem esparsos nessas solidões, gostam muito da carne da grande espécie de
lagarto denominado 'teiú' na língua geral dos índios da costa. Por isso, partem
muitas vezes, entre matagais e florestas, em busca desses animais, levando um
par de cães treinados para esse fim. Quando os cães se aproximam do lagarto,
este se lança com a rapidez de uma flecha para a toca subterrânea, que lhe
serve de morada, donde é arrancado e morto pelos caçadores. Sendo grande o
calor, esses homens, cuja pele do corpo inteira fica tão tisnada pelo sol que
podem passar por tapuias, desnudam-se completamente. Carregavam machados e dois
lagartos de mais ou menos quatro pés de comprimento, inclusive a longa cauda.
Esses caçadores, que conheciam bem a região, asseguraram-nos que estaríamos, em
menos de uma hora, na fazenda de Muribeca, onde pretendíamos passar a noite.
Com efeito, em breve passávamos a cerca que lhe servia de limite."
Figura
2- Caçadores brasileiros. Maximiliano encontro dois no Sertão de São João da
Barra caçando teiú. Ilustração contida em "Viagem ao Brasil"
Antes de alcançar a fazenda,
Maximiliano redige uma de sua belas, romântica e saudosas páginas: "Na escura
e imponente mata virgem achamos bonitas plantas, e o soberbo Convolvulus de
flores azul-celeste enlaçava-se nos arbustos, até grande altura. O pio forte e grava do "juó", em
três ou quatro notas, é ouvido, nessas matas imensas, em todas horas do dia e
mesmo à meia noite." Olivério Pinto, que comenta o livro, informa, em nota
de rodapé, que Maximiliano foi o primeiro a descrever essa ave.
Figura 3- Lagarto teiú, muito
apreciado como iguaria no Brasil. Desenho incluído no "Abbildungen
zur Naturgeschichte Brasiliens",
de Maximiliano de Wied-Neuwied
"Depois de atravessada a
floresta, encontramo-nos em extensas plantações recentes; de uma elevação, onde
se viam troncos por terra." Era a famosa Fazenda da Muribeca. Aí, "em
todas as direções, divisamos um quadro encantador da majestosa solidão, às
margens do Itabapoana, que, como fita de prata, vai coleando entre as selvas
umbrosas, e corta uma planície verdejante, em cujo meio se localiza a grande
fazenda de Muribeca, cercada de vastas plantações. Em todo o redor, florestas imensas
limitam o horizonte."
Figura 4- Teiú morto e sem a
cauda, a parte mais apreciada como iguaria. Desenho incluído no "Abbildungen
zur Naturgeschichte Brasiliens",
de Maximiliano de Wied-Neuwied
A fazenda pertenceu aos jesuítas até
sua expulsão do Império Colonial Português, por influência do Marquês de
Pombal, 1759. Quando da passagem de Maximiliano, em 1815, ela pertencia a quatro associados e contava com
300 escravos. O príncipe anota: "O trabalho é bastante árduo para os escravos;
consiste principalmente em derrubar as matas. Plantam-se mandioca, milho,
algodão e um pouco de café."
A grande ameaça a rondar a área,
segundo seus habitantes, ainda eram os índios puris. Maximiliano observa que "As
grandes florestas das cercanias de Muribeca são habitadas por Puris nômades,
que, nessas paragens e na extensão de um dia de jornada para o norte, se mantêm
hostis." Em agosto daquele ano, eles "... atacaram os rebanhos da
fazenda, à margem do Itabapoana e mataram, de maldade, trinta bois e um cavalo.
Um rapazote negro, que tomava conta do gado, foi isolado dos companheiros
armados, feito prisioneiro, morto, e, segundo afirmam, assado e devorado. Acham
que eles separaram os braços, as pernas e a carne do tronco, levando-os
consigo; porque, pouco depois, encontraram no local a cabeça e o tronco
descarnado do negrinho; porém os selvagens tinham-se internado precipitadamente
pela mata. Reconheceram-se, também, as mãos e os pés, assados e roídos, e dizem
que até se viam as marcas dos dentes."
Antes de atravessarem o Itabapoana
para continuar a viagem, Maximiliano relata que, "Num passeio rio acima,
os Srs. Freyreiss e Sellow se divertiram com o espetáculo de um grande bando de
lontras, caçando na água, adiante deles, sem o menor sinal de alarma. A lontra
brasileira difere da dos nossos rios europeus, principalmente por ter o rabo um
pouco achatado; caráter este inexistente nos espécimes empalhados e, por isso,
esquecido nas obras de história natural. O pelo é muito macio e bonito. Nos
rios principais do interior do Brasil, no S. Francisco, por exemplo, atinge
tamanho prodigioso: é aí denominada de 'ariranha'..." Em nota de rodapé,
Olivério Pinto conclui que, pela descrição, trata-se, de fato, de ariranha,
espécie extinta no norte/noroeste fluminense e no sul capixaba.
Sem dúvida, na região visitada pelo
príncipe naturalista, o ambiente foi muito modificado para pior e a
biodiversidade se empobreceu. Das luxuriantes matas do antigo Sertão de São
João da Barra, restaram apenas a Mata do Carvão, hoje protegida pela Estação
Ecológica Estadual de Guaxindiba, e alguns tufos remanescentes de floresta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário