O
bicentenário da expedição científica de Maximiliano de Wied-Neuwied - VI
Do
Rio Itabapoana a Itapemirim
Arthur
Soffiati
Da Fazenda Muribeca, na margem
direita do Rio Itabapoana, à Vila de Itapemirim, na margem direita do rio de
mesmo nome, a viagem era penosa em 1815. A floresta estacional semidecidual,
que ainda não tinha esse nome, confinava com o mar, onde grandes paredões de
falésia recebiam o impacto das ondas e marés. Além do mais, havia o grande
temor de ataques puris. Para coibi-los, o governo instalou um quartel sobre uma
colina.
Sobre o trajeto, escreve
Maximiliano: "A viagem de Itabapoana para o norte exige alguma precaução,
porque o viajante tem que atravessar um trecho de seis a oito léguas, até o rio
Itapemirim, em que os Puris sempre têm se mostrado hostis. Como já tivessem
cometido vários assassinatos terríveis nesse distrito, achou-se conveniente
estabelecer um posto militar, chamado Quartel ou Destacamento das Barreiras."
Daí decorre o nome de uma pequena
lagoa na região: a Lagoa dos Quarteis, hoje, em notório declínio. O posto
militar também era conhecido como Destacamento das Barreiras, pois estava
localizado no alto de uma colina da Formação Barreiras.
O príncipe, então, refere-se às luxuriantes
florestas desse trecho, hoje não mais existentes: "Seguimos através de
grandes matas virgens, alternadas com extensões arenosas e descampadas onde
descobrimos muitos rastos de antas e veados."
Figura
1- Maximiliano apenas viu rastros de anta entre os Rios Itabapoana e
Itapemirim, espécie extinta no Estado do Rio de Janeiro, mas como se refere ao
animal, incluímos este desenho original de seu punho (por isto, rudimentar),
retratando a caçada da anta por índios e por ele em outra parte do Brasil.
Prossegue ele: "Numa eminência,
sobranceiras ao mar, construíram duas casas de barro e plantaram um pouco de
mandioca e de milho para a subsistência dos soldados. A costa sobe, nesse
ponto, em ribanceiras de argila, altas e perpendiculares barreiras, em cujo
topo fica o quartel; deste se descortina, por isso, amplo panorama do oceano,
para o norte e para o sul do litoral, onde as tropas dos viajantes são vistas a
grande distância" A bela visão obtida deste ponto batizou uma das lagoas
com o nome de Boa Vista.
Figura 2- Conquanto Maximiliano
só tenha avistado rastros de veado em sua passagem pelo sul do Espírito Santo,
ilustramos o artigo com um desenho feito por ele e contido em "Abbildungen
zur Naturgeschichte Brasiliens", de sua autoria
Mas ele nota roçados que começavam a
ser praticados no trecho pouco habitado: "Na terra, as construções do
destacamento são compactamente cercadas por sombria floresta secular, em que já
se havia começado a fazer roçados." Nele, o naturalista encontra uma
espécie de ave desconhecida da ciência.
Os membros da expedição avistam
também tartarugas marinhas nadando perto da praia: "Nadando próximo à
costa, cujas praias procuram na primavera, viam-se as grandes tartarugas
marinhas soerguendo lentamente, acima d'água, as cabeçorras redondas."
Figura
3- Maximiliano só viu tartarugas marinhas nadando no sul do Espírito Santo. Por
sua descrição, parece tratar-se da espécie cabeçuda, que nesta imagem, aparece
desovando.
Atravessando um perigoso território
habitado por puris, ele comenta: "Tendo ainda que viajar quatro léguas
pelo distrito assolado pelos Puris, entre os rios Itabapoana e Itapemirim,
tomamos a precaução de caminhar em grupo compacto, e avançamos lentamente, sob
escolta, através de uma planície arenosa, firme e perfeitamente horizontal,
acompanhando as íngremes encostas do litoral, formadas de argila branca,
amarela ou castanho-avermelhada, e camadas de arenito ferruginoso (...) As
barrancas e a parte alta da costa são em toda região coberta de florestas, em
que ninguém se aventura a penetrar, por causa dos selvagens." Falésias,
florestas e índios ainda indômitos.
Sobre a violência dos índios,
Maximiliano reflete sobre sua condição de humanos, que nunca negou, como
espanhóis e portugueses, pois reconhece que eles têm religião, como qualquer
humano em todos os lugares da Terra. Já com espírito de etnólogo, ele procura
compreender tal agressividade.
"É sem dúvida desagradável
tê-los tão perto; mas deve ser lembrado que os colonos, pelo mau tratamento que
dispensaram aos habitantes aborígenes, logo no começo, foram os causadores
principais dessa hostilidade. Nos primeiros tempos, a avidez de lucros e a sede
de ouro aboliram todos os sentimentos humanos dos colonizadores europeus;
consideravam-se animais esses homens pardos e nus, criados apenas para
trabalhar, como o demonstra a controvérsia, no seio do próprio clero da América
espanhola, sobre se os selvagens deviam ou não ser considerados homens como os
europeus..." Ele reconhece também a condição humana dos negros escravos,
embora não condene a escravidão. Inclusive, comprou um negro e um índio, ambos
levados para a Europa. Maximiliano parece ter uma posição de centro em relação
aos povos explorados do Brasil.
A única localidade que dá nome a uma
lagoa é a de Siri. Ele escreve que "Em poucas horas chegamos, num trecho
baixo da costa, à povoação de Siri, agora inteiramente abandonada." A
lagoa era, então pouco habitada e sofrera recente ataque dos puris. Só pouco
mais adiante, são encontradas casas habitadas. O quadro, hoje, é bem diferente.
Toda a vegetação nativa que cercava a lagoa foi removida. A agricultura e o
turismo invadiram a lagoa.
A expedição se aproxima de
Itapemirim. "Para lá da lagoa do Siri, nas casas acima referidas, os
quatro soldados despediram-se de nós. Afastamo-nos do mar e entramos numa bela
mata, topando aqui e ali plantações." A agricultura já está avançando
sobre a floresta naquele longínquo ano de 1815.
Figura
4- Embora os soldados acima representados por Maximiliano estivessem em
Linhares, podemos estender a figura do soldado brasileiro para outras regiões:
descalços e habilitados a suprir suas necessidades alimentares com animais
caçados.
Mas a floresta era ainda majestosa,
pois, nas cercanias de Itapemirim, (...)
À proporção que avançávamos, a floresta se tornava cada vez mais bela, fechada
e altaneira; os troncos compridos e esguios formavam uma sombria trama, de modo
que o caminho, coberto de todos os
lados, parecia um túnel estreito e escuro."
O final de nossa companhia ao
príncipe naturalista e a sua comitiva está chegando ao fim. "Cedo
atingimos terrenos escampos, onde os charcos e as lagoas estavam cheios de
marrecos, gaivotas e garças (...) Ao meio-dia, mais ou menos, chegamos ao rio
Itapemirim, em cuja margem sul fica a vila do mesmo nome."
Em seu diário, Maximiliano esclarece
que Itapemirim havia sido recentemente edificado, contando com boas
construções, embora fosse uma pequena vila. Seus "habitantes são
agricultores pobres, cujas plantações ficam nas vizinhanças, ou pescadores,
além de poucos artífices."
Em 1855, a população dessa vila
enviaria um abaixo-assinado à Câmara Municipal de Campos, manifestando o desejo
se integrar a nova Província criada com a parte norte da Província do Rio de
Janeiro e a parte sul da Província do Espírito Santo. A Capitania de São Tomé,
primeira tentativa de colonização portuguesa da região, estendia-se dos Rio
Macaé ao Itapemirim. No passado, o reconhecimento de que esta vasta extensão
territorial apresentava unidade, levava sua população a esse tipo de pleito.
Sobre o Itapemirim, que nasce na
zona serrana, Maximiliano observa: "O rio, no qual se viam alguns pequenos
brigues ancorados, é muito estreito, mas comporta certo comércio de produtos
das plantações, como açúcar, algodão, arroz, milho e madeira das florestas. Um
temporal, que desabou na serra, veio mostrar-nos quão rápida e perigosamente
sobem na zona tórrida; porque o rio se tornou logo tão caudaloso, que quase
transbordou: aliás, tem sempre correnteza maior que o Itabapoana."
Ele ainda a avista algumas aves,
alvo de sua atenção principal e das suas espingardas. Ao deixar a vila, rumo ao
norte, ele ainda registra uma observação que nosso desenvolvimentismo não mais
enxerga: "Nos pontos salientes da costa, encontramos nesse dia colinas
pedregosas, onde se erguiam numerosos coqueiros silvestres, cujas soberbas
palmas ondeavam à fresca viração." Se voltarmos a ler a série de seis
artigos que escrevi sobre a excursão científica de Maximiliano de Wied-Neuwied,
no trecho que se estende do Rio Macaé ao Rio Itapemirim, notaremos que o
príncipe, no Rio Macaé, refere-se a uma ponta de terra, hoje conhecida como
pontal. Até São Fidélis, ele não faz qualquer referência a pedra, pois estava
na zona serrana da Ecorregião de São Tomé. Formações pedregosas junto à costa
só voltam a aparecer após atravessado do Rio Itapemirim. Daí em diante, muitas
formações pedregosas serão registradas por ele.
Só não vou abandoná-lo nesse ponto
porque tenho interesse em examinar a Ecorregião Centro-Leste do Espírito Santo
até as cercanias de Vitória. Esta Ecorregião merecerá a minha atenção em breve.
Por ora, despedimo-nos do nobre naturalista e de seus companheiros. Se nos
valemos de muita transcrição, foi para saborear a escrita fina do nosso
naturalista.
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