A
foz do Paraíba do Sul (I)
Arthur
Soffiati
Formação geológica e aspectos
ambientais
Tanto Alberto Ribeiro Lamego
(1945-54) quanto Martin, Suguio, Dominguez e Flexor (1997) explicam a formação da
grande restinga na foz do Rio Paraíba do Sul como uma construção oriunda da
ação das correntes marinhas associadas ao rio. A corrente marinha dominante,
segundo as duas interpretações do complexo delta do Paraíba do Sul, desloca-se
ainda hoje de oeste para leste-norte.
Figura
1- Primeira fase da construção da planície fluviomarinha do Paraíba do Sul. As
linhas com setas indicam a direção da corrente marítima principal. A restinga
estudada neste artigo será construída entre as ilhas alongadas e a linha pontilhada.
Mapa concebido por Martin, Suguio, Dominguez e Flexor
Para ambas as interpretações, uma
restinga se forma pela existência de algum obstáculo sólido, natural ou
artificial. Em 1940, Lamego enfrentou um dilema metodológico e empírico. Ele
foi um ardoroso defensor das obras de dragagem e drenagem efetuadas primeiro
pela Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense e depois pelo Departamento
Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), sucessor da primeira. Tecnicamente, não
era difícil transferir as águas de enchente do Rio Paraíba do Sul para as
lagoas da margem direita do rio. Como há uma ligeira declividade no terreno da
margem direita, a abertura de canais poderia conduzir a água de cheia para as
lagoas, como já acontecia naturalmente pelos drenos naturais. Os canais
geométricos acelerariam o deslocamento de água do rio para lagoas e destas para
outras. No final, poder-se-ia abrir canais para o escoamento das águas para o
mar. No entanto, ponderava ele, as correntes marinhas são tão fortes na costa norte
fluminense que a tendência era o fechamento das barras desses canais, a menos
que a vazão deles fosse grande para mantê-las abertas, como demonstravam os
Rios Paraíba do Sul e Itabapoana. Fixar a barra com estruturas construídas com
material sólido contribuiria para reter areia de um lado, formando uma
restinga, e provocando erosão do outro lado. Foi o que aconteceu com o espigão
oeste de Barra do Furado, engordando a praia de Quissamã e erodindo a praia da
Boa Vista do lado de Campos.
Não havendo quem construísse uma
estrutura de pedra na foz do Rio Paraíba do Sul, como uma tão extensa restinga
poderia se formar? Para Lamego e os quatro geólogos, o jato do rio entrando no
mar funcionou como um espigão líquido, retendo areia do lado sul e lançando o
excedente arenoso para o lado norte.
Examinando esta restinga em mapas e
imagens de satélite, verifica-se que ela se formou em faixas paralelas ao
litoral (processo de transgressão/regressão). No setor norte da restinga, a
areia acumulada junto ao tabuleiro vedou antigos córregos, que se transformaram
em lagoas perpendiculares à costa. O recuo progressivo do mar formou as Lagoas
do Campelo, ligada ao Paraíba do Sul pelo Córrego da Cataia, e vários brejos
entre os cordões arenosos da restinga, sendo o de Cacimbas o mais expressivo. Em
direção à linha da costa, sucedem-se os Brejos dos Cocos, dos Farias e do
Mangue Seco. Junto ao litoral, registram-se as Lagoas do Comércio, da Taboa e
da Praia.
Figura
2- Setor norte da restinga do Rio Paraíba do Sul: 1- Rio Paraíba do Sul; 2-
Lagoa do Campelo; 3- Córrego da Cataia; 4- Lagoa do Arisco; 5- Brejo de
Cacimbas; 6- Brejo dos Cocos; 7- Brejo dos Farias; 8- Brejo Mangue Seco; 9-Canal
principal do delta (Atafona); 10- Canal secundário do delta (Gargaú). Mapa:
Alberto Ribeiro Lamego (1954)
Figura
3- Lagoas na margem esquerda do Rio Paraíba do Sul junto ao canal de Gargaú: 1-
Lagoa do Comércio; 2- Lagoa da Taboa; 3- Lagoa da Praia. Imagem Google Earth
Na margem direita, o processo de
formação foi o mesmo: avanços e recuos progressivos do mar junto à planície
aluvial, formando uma sucessão de imensas lagoas emendadas como pérolas de um
colar. O sistema mais interno, entre a planície aluvial e a restinga, era
constituído pelas Lagoas do Taí Pequeno, dos Jacarés, da Bananeira, do Pau
Grande e Brejo do Riscado. Ao lado desse curso e paralelo a ele, outro era
formado pelas Lagoas do Taí Grande, do Quitingute, do Camará, Salgada e da
Ostra. Ambos os sistemas sugeriam dois grandes cursos d'água que ora se
alargavam em lagoas, ora se estreitavam em córregos. Os dois ligavam os Rios
Paraíba do Sul e Iguaçu. Este segundo reunia vários defluentes da Lagoa Feia,
formando um curso d'água que, como era muito comum na baixada, alargava-se e
estreitava. Dois alargamentos mais conspícuos constituíam a Lagoa do Lagamar,
onde, por ocasião das cheias, a praia se abria para o mar e formava a Barra
Velha, e o Banhado da Boa Vista. No estreitamento final, o Iguaçu projetava-se
no mar.
Nas enchentes, águas do Paraíba do
Sul entravam nesses dois cursos e corriam para o Rio Iguaçu. Do segundo curso,
partiam as Lagoas de Gruçaí e Iquipari, que funcionavam como braços do grande
delta. Entre o Rio Paraíba do Sul e a margem esquerda da Lagoa de Gruçaí, havia
um pequeno curso a ligá-las e formando a Lagoa da Barreira. Entre a barra da
Lagoa de Iquipari e a foz do Rio Iguaçu, havia, íntegra, a Lagoa do Veiga,
estreito sistema hídrico paralelo à costa, que se juntava ao Rio Iguaçu em seu
desaguadouro. Havia ainda um canal natural entre o Rio Paraíba do Sul e a Lagoa
de Gruçaí, conhecido pelos antigos como valão. Parte do que restou dele está
assinada em azul na figura abaixo.
Figura
4- Extinto valão de Gruçaí. Imagem Google Earth
Figura
5- 1- Rio Paraíba do Sul; 2- Lagoa do Taí Pequeno; 3- Lagoa dos Jacarés; 4-
Lagoa de Bananeira; 5- Lagoa do Pau Grande; 6- Brejo do Riscado; 7- Lagoa do
Taí Grande; 8- Lagoa do Quitingute; 9- Lagoa da Ostra; 10- Lagoa Salgada; 11-
Lagoa de Gruçaí; 12- Lagoa de Iquipari; 13- Lagoa do Veiga; 14- Rio Iguaçu.
Mapa: Alberto Ribeiro Lamego (1954)
Vegetação nativa
Num solo arenoso, como o das
restingas, as vegetações existentes nas formações geológicas de sua retaguarda são
selecionadas pela salinidade existente no substrato e transportada pelos
ventos. Estes são os dois fatores limitantes principais. Os ventos contribuem
para a constituição de zonas de vegetação. A praia, sendo lavada pelas ondas do
mar e pelas marés, não contém plantas. Logo a seguir, existe uma faixa de
plantas herbáceas numa zona de 400 metros, mais ou menos, na restinga da foz do
Paraíba do Sul. Os 300 metros seguintes são ocupados por plantas arbustivas. No
final, há uma zona com árvores que podem alcançar grande porte. Nas depressões
intercordões, acumula-se água e as plantas precisam se adaptar à umidade. A
zonação decorre dos ventos, que vão perdendo intensidade à medida que se
afastam da costa e pela redução causada pela própria vegetação. Uma análise
mais detalhada mostra que estas grandes zonas podem ser divididas em menores.
Figura
6- Vegetação nativa de restinga, vendo-se as Lagoas de Gruçaí e de Iquipari
correndo paralelas. Foto: Dina Lerner (1992)
Nos pontos em que a água doce dos
rios se encontra com a água salgada do mar, formam-se estuários, ambientes de
água salobra propícios ao arraigamento de manguezais, formações pioneiras de
influência fluviomarinha. O delta do Paraíba do Sul é formado pelo braço de
Atafona - o principal - e o braço de Gargaú - secundário. Desenvolveu-se aí um
dos dois maiores manguezais do Estado do Rio de Janeiro. Os manguezais são
formados por espécies vegetais exclusivas desse ecossistema, como o mangue
branco, o mangue vermelho e o mangue preto, e por espécies associadas. Existem
também espécies animais exclusivas, como o caranguejo-uçá, e espécies
associadas e visitantes. Formaram-se também manguezais na foz das Lagoas de
Gruçaí, Iquipari e do Rio Iguaçu.
Figura
7- Manguezal do Rio Paraíba do Sul (Riacho dos Macacos). Foto do autor (1992)
Em linhas gerais, traçou-se o perfil
da restinga do Rio Paraíba do Sul do que denomino terceira ecofisionomia da
Ecorregião de São Tomé na época holocênica. Esta época tem cerca de 12 mil anos
e já foi maior que a atual nos primórdios do Holoceno. Era, então a primeira
ecofisionomia da ecorregião. Em seguida, o mar começou a subir e a invadir o
continente. Essa elevação formou, então, a segunda ecofisionomia. Com o recuo
do mar e o avanço do continente, agora formado por sedimentos transportados
pelo Rio Paraíba do Sul, principalmente, constitui-se a terceira ecofisionomia,
a que os europeus encontraram quando aqui chegaram e da qual existem ainda
incontáveis remanescentes.
Em conclusão a este artigo, o
primeiro de dois, pode-se afirmar que:
1-
É bastante artificial esquartejar a restinga em bacias ou em qualquer outro
fragmento para estudos acadêmicos. Uma bacia, como a da Lagoa de Gruçaí ou do
Veiga, pode ser estudada, mas sempre inserida no seu contexto maior. No máximo,
pode-se dividir a restinga em norte e sul, setores já separados pelo grande
rio.
2-
Esta é talvez a mais úmida restinga do Estado do Rio de Janeiro por ter sido
construída/destruída pela associação do oceano com o Rio Paraíba do Sul. Nas
duas seções, ela abrigava rios caudalosos e lagoas expressivas.
3-
A biodiversidade nos setores norte e sul era muito rica em plantas,
invertebrados, peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos.
No segundo artigo da série,
analisaremos o processo de destruição da terceira ecofisionomia da Baixada dos
Goytacazes e a construção da quarta ecofisionomia pela ação humana. Trata-se de
uma intervenção no ambiente a partir do fim do século XVII que ainda está em
curso e que tenta substituir a geometria fractal do território por uma
geografia euclidiana.
Nenhum comentário:
Postar um comentário