O poder crescente das grandes corporações. A ampliação dos tentáculos do sistema financeiro por diferentes setores. A apropriação quase que completa do Estado e do poder político pelo poder econômico via os fundos financeiros, sem cara são tão visíveis e límpidos, e, como diz Comparato, nem é preciso "grande argúcia de análise para perceber que toda essa transformação da técnica empresarial, desenvolvida pelo capitalismo financeiro, vem provocando o aumento irreversível da desigualdade de condições de vida em todos os continentes".
Não concordo com a ideia da transnacionalidade - apesar de sua força atual - e do fim do papel do Estado-nação. Porém, isso não elimina a essência do que a reflexão propõe.
O quadro é grave, porém mais que nunca surge a necessidade de se discutir o "pós-capitalismo.
Por tudo isso sugiro a leitura do breve texto do Fabio Konder Comparato.
Afinal, ainda é possível superar o capitalismo?
por Fábio Konder Comparato - Especial para o Jornal GGN
Vivemos hoje, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, uma situação política mórbida, em que a tradicional distinção entre posições de esquerda e de direita parece ter perdido sentido. Sem ter a pretensão de diagnosticar a moléstia e propor a terapêutica adequada, creio, no entanto, que vale a pena refletir sobre dois fenômenos mundiais sem precedentes, que talvez estejam na origem da anormalidade. O primeiro deles é a superação aparentemente definitiva do Estado nacional, como quadro geral da vida política. O segundo é a progressiva e cada vez ampla utilização da inteligência artificial em todas as formas de atividade.
Reflitamos sobre o primeiro deles.
Até a Paz de Vestefália, que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos na Europa em 1648, a soberania ou poder político supremo pertenceu durante milênios, salvo raríssimas exceções históricas, a pessoas ou famílias da mesma linhagem. A partir de então, essa soberania começou a ser exercida no quadro impessoal de Estados, como organismos políticos supremos. É esta última fase, ao que tudo indica, que está em vias de ser superada pelo fenômeno da transnacionalidade.
Aqui vão alguns exemplos para ilustrar o fenômeno.
Até as décadas finais do século passado, a emissão de moedas nacionais fazia parte da soberania estatal. Hoje, esse poder de criação monetária, embora incluído oficialmente na soberania de cada Estado, é exercido na prática, em grande parte pelos conglomerados bancários transnacionais e no restante pelos bancos centrais de cada Estado, mas que atuam livres da injunção estatal. O mesmo se diga do poder de gestão das moedas nacionais, cujo valor, embora fixado oficialmente por cada Estado, é sempre imposto de fato a cada um deles pelo poder transnacional bancário, cuja concentração se avoluma enormemente. Estima-se, assim, que nos maiores mercados financeiros do planeta – Wall Street e a City londrina (esta, enquanto não efetivado o Brexit) – 737 megabancos e fundos de investimento controlam 80% das 43 mil empresas transnacionais que neles atuam.
Sob a pressão desse poder crescente, nos últimos anos a regulação de conflitos de interesse econômico, quer entre particulares, quer entre estes e o Poder Público, ou unicamente entre Estados no plano internacional, passou progressivamente da competência estatal para a de tribunais de arbitragem, livremente estabelecidos pelas partes em conflito. Ao mesmo tempo, tratados internacionais de comércio vieram impor a regra de que empresas privadas podem responsabilizar diretamente os Estados por prejuízos sofridos, ao passo que os Estados já não têm competência para atuar judicialmente contra empresas privadas em matéria de comércio internacional.
Enquanto isso, a partir dos anos 80 do século passado, sob a liderança norte-americana, os Estados foram perdendo progressivamente o poder de regulação das atividades das empresas financeiras, eliminando-se notadamente a separação institucional entre bancos de depósito e bancos de investimento, estabelecida logo após a depressão mundial provocada pela crise de 1929.
Essa transformação substancial da organização econômica coincidiu com o ingresso da civilização capitalista em sua terceira e – segundo toda aparência – conclusiva fase histórica: a do capitalismo financeiro, cuja preocupação maior não é a produtividade, como na fase do capitalismo industrial e de serviços, mas sim a lucratividade pura e simples das operações empresariais. No terreno do capitalismo financeiro, com efeito, as empresas costumam gerar maior lucro com menor produção, pois seu método de atividade é, em grande parte, de pura especulação com valores mobiliários, quer originalmente emitidos, quer deles derivados; estes últimos, por isso mesmo denominados, na gíria financeira, derivativos. Para se ter uma ideia do caráter puramente especulativo de tais valores, estima-se que eles somam hoje, nos mercados financeiros do mundo todo, cerca de 555 trilhões de dólares; ou seja, o equivalente a 5 vezes o valor do produto mundial. Mas esse valor é puramente estimado e pode variar drasticamente em questão de segundos.
Assinale-se, por outro lado, que no bojo do capitalismo financeiro o poder de comando das empresas torna-se impessoal, pois está praticamente nas mãos de gestores anônimos de fundos de investimento.
Ressalte-se, ademais, que é justamente no âmbito do capitalismo financeiro que as transformações técnicas provocadas pela automação ou inteligência artificial têm sido as mais profundas. Nos mercados de valores do mundo todo, investimentos bilionários têm sido feitos, de forma a possibilitar a realização de milhares de operações em frações de segundo.
O triunfo dessa revolução tecnológica, todavia, não deixa de provocar graves consequências socioeconômicas, como o desemprego em massa de trabalhadores. De acordo com dados divulgados pela Organização Internacional do Trabalho, órgão das Nações Unidas, em seu relatório “Perspectivas Sociais e do Emprego no Mundo”, publicado em 2015, o nível do atual desemprego no plano mundial já é equiparável ao ocorrido após a grande crise de 1929, com a agravante de que, hoje, somente um quarto dos trabalhadores no mundo todo tem emprego estável. Por outro lado, segundo estimativa da Universidade de Oxford, 47% dos atuais empregos vão desaparecer nos próximos 25 anos.
Não bastasse isso, nos últimos anos o poder transnacional das grandes empresas vem estabelecendo a progressiva privatização do direito do trabalho, ao consagrar o princípio da substituição do direito legislado pelo negociado. Inútil dizer que, no Brasil, essa transformação, em vias de ser aprovada no Congresso Nacional, é escancaradamente contrária à Constituição, além de violar de modo direto vários tratados internacionais de que o nosso país é parte integrante.
Ao que parece, porém, a oligarquia brasileira já não tem a menor preocupação em dissimular o predomínio de seus interesses grupais sobre os direitos fundamentais dos trabalhadores, como estatuído na Constituição.
Não é preciso, na verdade, grande argúcia de análise para perceber que toda essa transformação da técnica empresarial, desenvolvida pelo capitalismo financeiro, vem provocando o aumento irreversível da desigualdade de condições de vida em todos os continentes. Basta citar, a esse respeito, o último relatório da Oxfam International, confederação que reúne 18 organizações não governamentais em mais de 100 países, com o objetivo de lutar contra a pobreza e a injustiça social. Nesse relatório, publicado em janeiro de 2017, salienta-se que a diferença entre ricos e pobres aumenta sem descontinuar no mundo todo, e que no presente apenas 8 indivíduos possuem riqueza equivalente à de metade da humanidade. Ainda de acordo com esse mesmo relatório, em nosso país apenas 6 indivíduos detêm, em conjunto, a mesma riqueza que a metade menos abastada de toda a nossa população.
Importa salientar que essa revolução socioeconômica abalou em seus alicerces a mais autorizada doutrina dos partidos e movimentos políticos da esquerda, a saber o marxismo. Com efeito, no Manifesto Comunista, Marx e Engels afirmam que “a história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história da luta de classes”. Assinalam que “nas primeiras épocas históricas, verificamos, quase por toda parte, uma completa divisão da sociedade em classes distintas, uma escala graduada de condições sociais”. E prosseguem: “A nossa época, entretanto, caracteriza-se por ter simplificado os antagonismos de classe. A sociedade divide-se cada vez mais em dois campos opostos, em duas grandes classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado”.
Hoje não é preciso grande acuidade de análise para verificar que essa interpretação histórica, tida como verdadeiro dogma pelas forças políticas de esquerda, foi totalmente desmentida pela evolução social.
Em primeiro lugar, porque em meados do século XIX, quando ela foi concebida, o capitalismo industrial mal desenvolvera o setor de serviços, que hoje ocupa uma posição preeminente nas economias mais avançadas. Ora, a atividade laboral, no setor de serviços, é bem distinta daquela desenvolvida no campo da produção propriamente industrial; entre outras razões, porque não há aquela concentração de trabalhadores num mesmo local, como a fábrica, por exemplo.
Em segundo lugar, porque o conjunto dos trabalhadores deixou de ser aquela massa compacta e uniforme, que o marxismo qualificou como proletariado. As especializações laborais multiplicaram-se, com a enorme diversificação não só das atividades, mas também da mentalidade dos trabalhadores; criando-se sobretudo uma oposição entre os chamados executivos, transformados em agentes do capital, e a massa indistinta dos assalariados.
Em terceiro lugar, porque, como se acaba de ressaltar, para desenvolver suas atividades as empresas modernas necessitam de um número cada vez menor de trabalhadores, devido à crescente utilização dos sistemas de inteligência artificial. Ou seja, para retomarmos a análise marxista, na atual luta de classes os trabalhadores perdem incessantemente a sua força numérica, sem que essa perda seja compensada com a invenção de novas armas de combate.
Se o que se vem de afirmar pode ser aceito, ainda que provisoriamente, como premissa válida de raciocínio, o que importa doravante é formular as diretrizes básicas de uma ação transformadora, que preserve o futuro da humanidade.
A primeira dessas diretrizes é que a nova sociedade a ser construída não pode fundar-se na supremacia de um grupo ou classe social sobre todos os outros, mas no princípio fundamental, enunciado na abertura da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, de que nascemos todos livres e iguais, em dignidade e direitos.
A segunda diretriz básica, complementar da primeira, é o escrupuloso respeito, em qualquer circunstância, das diferenças básicas de sexo, idade, etnia e cultura.
Finalmente, a terceira diretriz básica é a de que, para a preservação da vida no planeta, em todas as suas formas, é indispensável e mesmo urgente superar o capitalismo e construir uma civilização mundial comunitária.
Até as décadas finais do século passado, a emissão de moedas nacionais fazia parte da soberania estatal. Hoje, esse poder de criação monetária, embora incluído oficialmente na soberania de cada Estado, é exercido na prática, em grande parte pelos conglomerados bancários transnacionais e no restante pelos bancos centrais de cada Estado, mas que atuam livres da injunção estatal. O mesmo se diga do poder de gestão das moedas nacionais, cujo valor, embora fixado oficialmente por cada Estado, é sempre imposto de fato a cada um deles pelo poder transnacional bancário, cuja concentração se avoluma enormemente. Estima-se, assim, que nos maiores mercados financeiros do planeta – Wall Street e a City londrina (esta, enquanto não efetivado o Brexit) – 737 megabancos e fundos de investimento controlam 80% das 43 mil empresas transnacionais que neles atuam.
Sob a pressão desse poder crescente, nos últimos anos a regulação de conflitos de interesse econômico, quer entre particulares, quer entre estes e o Poder Público, ou unicamente entre Estados no plano internacional, passou progressivamente da competência estatal para a de tribunais de arbitragem, livremente estabelecidos pelas partes em conflito. Ao mesmo tempo, tratados internacionais de comércio vieram impor a regra de que empresas privadas podem responsabilizar diretamente os Estados por prejuízos sofridos, ao passo que os Estados já não têm competência para atuar judicialmente contra empresas privadas em matéria de comércio internacional.
Enquanto isso, a partir dos anos 80 do século passado, sob a liderança norte-americana, os Estados foram perdendo progressivamente o poder de regulação das atividades das empresas financeiras, eliminando-se notadamente a separação institucional entre bancos de depósito e bancos de investimento, estabelecida logo após a depressão mundial provocada pela crise de 1929.
Essa transformação substancial da organização econômica coincidiu com o ingresso da civilização capitalista em sua terceira e – segundo toda aparência – conclusiva fase histórica: a do capitalismo financeiro, cuja preocupação maior não é a produtividade, como na fase do capitalismo industrial e de serviços, mas sim a lucratividade pura e simples das operações empresariais. No terreno do capitalismo financeiro, com efeito, as empresas costumam gerar maior lucro com menor produção, pois seu método de atividade é, em grande parte, de pura especulação com valores mobiliários, quer originalmente emitidos, quer deles derivados; estes últimos, por isso mesmo denominados, na gíria financeira, derivativos. Para se ter uma ideia do caráter puramente especulativo de tais valores, estima-se que eles somam hoje, nos mercados financeiros do mundo todo, cerca de 555 trilhões de dólares; ou seja, o equivalente a 5 vezes o valor do produto mundial. Mas esse valor é puramente estimado e pode variar drasticamente em questão de segundos.
Assinale-se, por outro lado, que no bojo do capitalismo financeiro o poder de comando das empresas torna-se impessoal, pois está praticamente nas mãos de gestores anônimos de fundos de investimento.
Ressalte-se, ademais, que é justamente no âmbito do capitalismo financeiro que as transformações técnicas provocadas pela automação ou inteligência artificial têm sido as mais profundas. Nos mercados de valores do mundo todo, investimentos bilionários têm sido feitos, de forma a possibilitar a realização de milhares de operações em frações de segundo.
O triunfo dessa revolução tecnológica, todavia, não deixa de provocar graves consequências socioeconômicas, como o desemprego em massa de trabalhadores. De acordo com dados divulgados pela Organização Internacional do Trabalho, órgão das Nações Unidas, em seu relatório “Perspectivas Sociais e do Emprego no Mundo”, publicado em 2015, o nível do atual desemprego no plano mundial já é equiparável ao ocorrido após a grande crise de 1929, com a agravante de que, hoje, somente um quarto dos trabalhadores no mundo todo tem emprego estável. Por outro lado, segundo estimativa da Universidade de Oxford, 47% dos atuais empregos vão desaparecer nos próximos 25 anos.
Não bastasse isso, nos últimos anos o poder transnacional das grandes empresas vem estabelecendo a progressiva privatização do direito do trabalho, ao consagrar o princípio da substituição do direito legislado pelo negociado. Inútil dizer que, no Brasil, essa transformação, em vias de ser aprovada no Congresso Nacional, é escancaradamente contrária à Constituição, além de violar de modo direto vários tratados internacionais de que o nosso país é parte integrante.
Ao que parece, porém, a oligarquia brasileira já não tem a menor preocupação em dissimular o predomínio de seus interesses grupais sobre os direitos fundamentais dos trabalhadores, como estatuído na Constituição.
Não é preciso, na verdade, grande argúcia de análise para perceber que toda essa transformação da técnica empresarial, desenvolvida pelo capitalismo financeiro, vem provocando o aumento irreversível da desigualdade de condições de vida em todos os continentes. Basta citar, a esse respeito, o último relatório da Oxfam International, confederação que reúne 18 organizações não governamentais em mais de 100 países, com o objetivo de lutar contra a pobreza e a injustiça social. Nesse relatório, publicado em janeiro de 2017, salienta-se que a diferença entre ricos e pobres aumenta sem descontinuar no mundo todo, e que no presente apenas 8 indivíduos possuem riqueza equivalente à de metade da humanidade. Ainda de acordo com esse mesmo relatório, em nosso país apenas 6 indivíduos detêm, em conjunto, a mesma riqueza que a metade menos abastada de toda a nossa população.
Importa salientar que essa revolução socioeconômica abalou em seus alicerces a mais autorizada doutrina dos partidos e movimentos políticos da esquerda, a saber o marxismo. Com efeito, no Manifesto Comunista, Marx e Engels afirmam que “a história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história da luta de classes”. Assinalam que “nas primeiras épocas históricas, verificamos, quase por toda parte, uma completa divisão da sociedade em classes distintas, uma escala graduada de condições sociais”. E prosseguem: “A nossa época, entretanto, caracteriza-se por ter simplificado os antagonismos de classe. A sociedade divide-se cada vez mais em dois campos opostos, em duas grandes classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado”.
Hoje não é preciso grande acuidade de análise para verificar que essa interpretação histórica, tida como verdadeiro dogma pelas forças políticas de esquerda, foi totalmente desmentida pela evolução social.
Em primeiro lugar, porque em meados do século XIX, quando ela foi concebida, o capitalismo industrial mal desenvolvera o setor de serviços, que hoje ocupa uma posição preeminente nas economias mais avançadas. Ora, a atividade laboral, no setor de serviços, é bem distinta daquela desenvolvida no campo da produção propriamente industrial; entre outras razões, porque não há aquela concentração de trabalhadores num mesmo local, como a fábrica, por exemplo.
Em segundo lugar, porque o conjunto dos trabalhadores deixou de ser aquela massa compacta e uniforme, que o marxismo qualificou como proletariado. As especializações laborais multiplicaram-se, com a enorme diversificação não só das atividades, mas também da mentalidade dos trabalhadores; criando-se sobretudo uma oposição entre os chamados executivos, transformados em agentes do capital, e a massa indistinta dos assalariados.
Em terceiro lugar, porque, como se acaba de ressaltar, para desenvolver suas atividades as empresas modernas necessitam de um número cada vez menor de trabalhadores, devido à crescente utilização dos sistemas de inteligência artificial. Ou seja, para retomarmos a análise marxista, na atual luta de classes os trabalhadores perdem incessantemente a sua força numérica, sem que essa perda seja compensada com a invenção de novas armas de combate.
Se o que se vem de afirmar pode ser aceito, ainda que provisoriamente, como premissa válida de raciocínio, o que importa doravante é formular as diretrizes básicas de uma ação transformadora, que preserve o futuro da humanidade.
A primeira dessas diretrizes é que a nova sociedade a ser construída não pode fundar-se na supremacia de um grupo ou classe social sobre todos os outros, mas no princípio fundamental, enunciado na abertura da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, de que nascemos todos livres e iguais, em dignidade e direitos.
A segunda diretriz básica, complementar da primeira, é o escrupuloso respeito, em qualquer circunstância, das diferenças básicas de sexo, idade, etnia e cultura.
Finalmente, a terceira diretriz básica é a de que, para a preservação da vida no planeta, em todas as suas formas, é indispensável e mesmo urgente superar o capitalismo e construir uma civilização mundial comunitária.
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