No último dia 3 de janeiro de 2018, o blog publicou aqui, o segundo relatório sobre as atividades de pesquisas de campo que o professor e ecologista Aristides Arthur Soffiati Neto vem fazendo sobre a região Noroeste Fluminense.
Em função de conversas e questões levantadas por esta publicação, o professor Soffiati se dispôs a complementar as informações e descrições com o adendo que o blog publica abaixo:
Adendo a revisitando o
noroeste fluminense (II): eixo Paraíba do Sul/Pomba
Retorno à foz
Arthur Soffiati
Retornamos à foz do rio Paraíba do Sul a fim de colher
subsídios para um estudo sobre as duas restingas do norte fluminense. Nossa
segunda excursão na Ecorregião de São Tomé deveria começar pela foz do Paraíba
do Sul, já que este rio foi tomado, juntamente com o Pomba, como eixo a ser
seguido. Por conhecer bem a foz, priorizamos o interior. Contudo, já que
tivemos de retornar ao ponto final do rio por força de outros motivos, tentamos
responder a algumas questões que o ambiente nos colocou. Pareceu-nos que as
considerações feitas deveriam complementar a incursão aos rios Paraíba do Sul e
Pomba em direção à zona serrana.
Primeira
questão. No
Brasil, o conceito de restinga é elástico. Enquanto, a rigor, restinga é uma
língua de areia que se forma por força das correntes marinhas fechando ou não
reentrâncias da costa ou capturando um ponto de apoio no mar, uma ilha, por
exemplo, no Brasil, qualquer depósito de areia junto à costa configura uma
restinga.
Para Leinz e
Mendes, restinga é um “Depósito de areia, emerso, baixo, em forma de língua,
fechando ou tendendo a fechar uma reentrância mais ou menos extensa da costa.
Na sua acepção mais ampla, o termo refere-se a feições diversas que a
literatura inglesa descreve como ‘beach ridge’, ‘barrier beach’, ‘spit’, ‘bar’
e ‘tombolo’. Parece, entretanto, que a designação ‘pontal’ corresponde
aproximadamente a ‘spit’ e, em certas circunstâncias, quando aplicada ao caso
de depósitos litorâneos que formam istmo entre o continente e uma ilha, pode
corresponder a ‘tombolo’, e em outras circunstâncias, ainda a ‘bar’”.
Na conceituação de Guerra, restinga ou flecha litorânea
vem a ser “ilha alongada, faixa ou língua de areia, depositada paralelamente ao
litoral, graças ao dinamismo destrutivo e construtivo das águas oceânicas.
Esses depósitos são feitos com apoio em pontas ou cabos que comumente podem
barrar uma série de pequenas lagoas, como acontece no litoral, do sul da Bahia
ao Rio Grande do Sul. O problema da origem desses depósitos litorâneos ainda é
um pouco controvertido. Há três teorias principais: 1- as correntes marinhas
secundárias, 2- influência do modelado do fundo do mar, sendo a praia formada
nos limites da ação das vagas, 3- o efeito das vagas de translação e as
correntes de marés. Do ponto de vista geomorfológico o litoral de restinga
possui aspectos típicos como: faixas paralelas de depósitos sucessivos de
areias, lagoas resultantes do represamento de antigas baías, pequeninas lagoas
formadas entre as diferentes flechas de areias, dunas resultantes do trabalho
de vento sobre areia de restinga, formação de barras obliterando a foz de
alguns rios etc.
Já Suguio
esclarece que restinga é um termo “de origem espanhola registrado no século XV,
referindo-se à barra (‘bar’) ou barreira (‘barrier’) de natureza arenosa,
especialmente quando essas feições fecham lagunas costeiras (‘costal lagoons’).
Neste caso, a restinga é normalmente interrompida por braços de maré (‘tidal
inlets’) que estabelecem uma ligação parcial entre as águas da laguna e do
oceano aberto (‘open ocean’). No Brasil, esta palavra tem sido utilizada
indiscriminadamente referindo-se a todos os tipos de depósitos arenosos litorâneos
que, na realidade, constituem variadas feições deposicionais...”
É no sentido amplo de todo e qualquer depósito arenoso na
costa, como assinala Suguio, que empregamos o conceito de restinga.
Entre o rio Macaé e o canal da Flecha, estende-se a mais
antiga restinga da região, com idade em torno de 120 mil anos, segundo Martin,
Suguio, Dominguez e Flexor. Entre o cabo de São Tomé e Guaxindiba, formou-se a
segunda a partir de 3 mil anos. Denomino a primeira de Jurubatiba por conta dos
campos do mesmo nome, registrado pelo cartógrafo Manoel Martins do Couto Reis,
e do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba, que ocupa a maior parte de sua
área. Denominei a segunda de restinga do Paraíba do Sul por ter este rio papel
fundamental na sua formação ao atuar como espigão hídrico. Esta restinga é a
maior do Estado do Rio de Janeiro.
Na excursão empreendida no dia 4 de janeiro de 2018,
navegamos junto à foz, que se bifurca em dois braços. É em torno do braço
esquerdo, o menor dos dois, que se constitui uma rede de canais em que se
desenvolve um manguezal ainda bastante expressivo, talvez o maior e mais
diverso do Estado do Rio de Janeiro.
Segunda
questão: pode
um bosque de mangue erguer-se sobre uma restinga? Em outras palavras, a
restinga não deveria comportar apenas uma formação pioneira de influência
marinha, conforme classificação universal de Veloso? É muito comum confundir
restinga como substrato arenoso e vegetação nativa desse substrato. Mas, sobre solo
arenoso, pode se desenvolver um manguezal, notadamente em foz de rios no mar,
onde se formam estuários, ambiente propício ao manguezal. Na restinga de
Paraíba do Sul, há manguezais nas suas pontas e no seu centro. Mencionemos os
da lagoa do Açu, outrora foz do rio Iguaçu, os das lagoas de Iquipari e Gruçaí,
no passado, defluentes auxiliares e periódicos do Paraíba do Sul em períodos de
cheia, o do próprio Paraíba do Sul e o do rio Guaxindiba.
Fora da influência fluviomarinha, a vegetação nativa costuma
ser a denominada pioneira de influência marinha. O uso das restinga pode
substituir a vegetação nativa por lavouras e pastagens, como acontece em ambas
as restingas do norte fluminense. Ademais, o aporte de sedimentos argilosos
transportados pelo Paraíba do Sul da zona serrana e dos tabuleiros, deposita-se
sobre o substrato arenoso, conferindo-lhe uma grande fertilidade. Mais ainda, o
manguezal tende a criar um substrato lamoso com a deterioração de matéria
orgânica, sobretudo vegetal. Portanto, é perfeitamente cabível manguezal em
área de restinga.
Terceira
questão: Por
que a área de manguezal do Paraíba do Sul é maior na margem esquerda? Até
melhor entendimento, creio que a resposta se vincula às forças de
construção-destruição da restinga. Desde Alberto Ribeiro Lamego, explica-se a
formação da grande restinga de Paraíba do Sul pelo jato do rio no mar, formando
um obstáculo para a captura e retenção de areia em suspensão nas correntes
marinhas. A vasão líquida e sólida do rio foi muito mais pujante no passado
pré-humano da região que nos dias de hoje. A corrente marinha predominante
desloca-se de norte para sul. Daí, talvez, a margem esquerda do rio ser uma
área em que predomina a deposição e construção, enquanto que, na margem
direita, verifica-se processo de destruição, atualmente muito acentuado pela
erosão costeira. Nesta margem, a pequena área de manguezal está sendo soterrada
pela areia lançada pelo mar.
Quarta
questão: A
redução de área do manguezal do rio Paraíba do Sul ocorre apenas na margem
direita ou também se verifica o fenômeno na margem esquerda? A foz de um rio é
sempre área dinâmica. O que se pode sustentar é que o fenômeno de destruição
mostra-se mais intensos na margem direita. Existe construção, mas ela é
superada pela destruição. Já na margem esquerda, a construção supera a
destruição, subtraindo áreas de manguezal, mas as adicionando em outro lugar.
Os fenômenos naturais não são os responsáveis pela redução da área de
manguezal, mas sim as atividades econômicas.
Manguezal em estado estável no riacho dos Macacos, um dos canais do Paraíba do Sul na margem esquerda. Foto do autor |
Quinta questão: Se os manguezais da baía de Guanabara podem ser considerados, em seu conjunto, os maiores em área do Estado do Rio de Janeiro, certamente eles não superam o manguezal do rio Paraíba do Sul em diversidade florística. Além de três espécies exclusivas de manguezal, ocorrem várias espécies associadas. As três espécies exclusivas são o mangue branco (“Laguncularia racemosa”), a siribeira (“Avicennia germinans”) e o mangue vermelho (“Rhizophora mangle”). O considerável aporte de água doce pelo rio cria, em trechos do manguezal, condições para o desenvolvimento de espécies associadas, geralmente oportunistas, como a samambaia-do-brejo (“Acrostichum aureum”), a aninga (“Montrichardia arborescens”), a aroeira (“Schinus terebinthifolius”), a guaxuma (“Talipariti pernambucense”), o mololô (“Annona glabra”), o rabo de macaco (“Dalbergia ecastaphyllum”), a taboa (“Typha domingensis”), o piri-piri (Cyperus giganteus). Mais ainda, espécies exóticas aos ecossistemas brasileiros entraram com vigor no manguezal do Paraíba do Sul, como a amendoeira (“Terminalia catappa”), o jamelão (“Syzygium cumini”), o coqueiro da Bahia (“Cocos nucifera”) e a resistente casuarina (“Casuarina” sp.).
Sexta
questão: As
duas espécies de siribeira, siriba, mangue preto e outras denominações locais (“Avicennia
schaueriana” e “A. germinans) estão presentes em quase toda extensão da costa
do Brasil. Elas descem juntas a linha de costa mas não chegam juntas ao Trópico
de Capricórnio, limite convencionado para a distribuição de plantas de
manguezal ao sul do planeta. Pela literatura especializada, a “A. germinans” detinha-se
no Espírito Santo, segundo Jiménez e Lugo, enquanto a “A. schaueriana”
continuava. Em reconhecimento dos manguezais do Estado do Rio de Janeiro,
estudiosos da Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (FEEMA)
estabeleceram o limite sul de distribuição da “A. germinans” no manguezal do
rio Paraíba do Sul. Norma Crud Maciel e o autor deste relatório concluíram, em
1998, que a “A. germinans” tem seu limite de distribuição meridional no rio Macaé.
Daí em diante, só ocorro “A. schaueriana”, conforme informação de vários
estudiosos.
Há registo da ocorrência de “A. schaueriana” no manguezal
do Paraíba do Sul, mas o autor deste relatório jamais a avistou. Creio que, na
visita de 04 de janeiro de 2018, dois exemplares foram localizados. Eles se
destacam dos muitos exemplares de “A. germinans” pelo porte da árvore, muito
alta e copada, ao lado as outras. No entanto, em nenhuma das duas árvores havia
flor ou fruto para melhor identificação. Apenas o exame das folhas e a
exsudação de sal pelos seus poros foram verificados, indicando, com muita
probabilidade, tratar-se de “A. schaueriana”.
Sétima questão. Na década
de 1990, a botânica A Leonor Ribas perguntou ao autor se ele já havia
encontrado alguma trepadeira em manguezal. A resposta foi dada com pesquisa.
Trepadeiras ocorrem nas bordas antropicizadas dos manguezais ou nos pontos em
que o volume de água doce permite a entrada de espécies associadas e invasoras.
Abaixo, alguns exemplos.
Exemplar de ora-pro-nobis (Pereskia aculeata), cacto trepadeira com folhas. Foto: Vicente Mussi-Dias |
Oitava questão. O manguezal do rio Paraíba do Sul, em seu todo, está protegido ou pairam ameaças sobre ele? Desde o século XV, as ameaças sobre os manguezais do mundo aumentam. O manguezal em exame não foge à regra. A primeira ameaça ao ecossistema como um todo é o desmatamento, seja para abrir espaço a atividades econômicas e à urbanização. A segunda é a sobre-exploração de crustáceos, notadamente o caranguejo uçá (“Ucides cordatus”). Em virtude do substrato com grande teor de argila, o manguezal vem sendo substituído por pastagens de gado, atividade completamente vedada por lei em áreas recobertas por este ecossistema.
Uma atividade altamente impactante ao manguezal é a urbanização. Em ambas as margens do rio, o processo de urbanização avançou muito a partir da segunda metade do século XX, com Atafona, na margem direita, e Gargaú, na margem esquerda. A instalação e crescimento de núcleos urbanos geram esgoto e lixo, além de produtos químicos usados na conservação de pescado.
Há também ameaças indiretas. A diminuição média de vazão do rio quebra o equilíbrio hídrico entre águas fluviais e águas marinhas em favor da segunda. Esta discussão vem se travando desde que cerca de dois terços das águas do Paraíba do Sul foram transpostas para o rio Guandu para atender às necessidades da cidade do Rio de Janeiro. A remoção das matas ao longo dos rios provoca erosão e assoreamento. Barragens nos rios da bacia reduzem a vazão na foz, propiciando o avanço do mar no leito e o deslocamento do estuário. Considere-se ainda que o Paraíba do Sul já sofreu grandes acidentes provocados por rompimento de barragens e vazamento de produtos tóxicos.
Atualmente, o processo de erosão da foz do Paraíba do Sul
acentua-se no lado direito, destruindo progressivamente Atafona e afetando a
pesca de mar. Os estudiosos afirmam que o processo é natural, mas agravado por
ações antrópicas.
De longa data, os manguezais em todo o mundo vêm sendo capturados
pela economia de mercado, o que significa transformar bens de uso em bens de
troca. Há anúncios publicados em jornal oferecendo lenha e madeira do manguezal
para geração de energia e construções. Em outras partes do Brasil, ocorreram
conflitos entre pescadores e empresários em torno da casca de mangue para
curtumes. Hoje, o caranguejo-uçá é capturado mais para a venda que para o
sustento daqueles que vivem em área de manguezal. Não é raro encontrar guaiamum
capturados no manguezal do Paraíba do Sul em restaurantes de Recife. Agora,
organizam-se empresas para a exploração de manguezais. Mais uma vez, eles
fornecem alimentos para restaurantes e pessoas que jamais conheceram um
manguezal. Agora, eles são alvo do empreendedorismo.
Não existem mais comunidades tradicionais. Elas estão se
transformando em grupos de pessoas de baixa renda que exercem diretamente
pressão sobre os manguezais, como mostrei em vários capítulos dos livros “Pé no
mangue” e “Tempo e espaço nos manguezais”. Seria temerário sustentar que este
ecossistema tão rico e tão importante nos equilíbrios naturais vai desaparecer.
O manguezal apresenta alta resiliência e capacidade de adaptação. Contudo, não
se pode negar que o processo de globalização o capturou e vem provocando o seu
empobrecimento. Assim como os humanos vulneráveis necessitam de proteção do
Estado, os não-humanos vulneráveis também merecem esta proteção. A melhor
solução para o manguezal do Paraíba do Sul, já amplamente discutida, é a
criação de uma Unidade de Conservação que permita compatibilizar ambiente e
economia.
Referências
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manguezal. Rio de Janeiro: Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente,
1980.
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de Janeiro: Conselho Nacional de Geografia, 1945; 2ª edição. Rio de Janeiro:
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LEINZ, Viktor e MENDES, Josué
de Camargo. Vocabulário geológico, 3ª ed. São Paulo: Companhia Editora
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NETTO, Aristides Arthur. Novos limites para a distribuição geográfica de
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arborecens (L.) Schott − Araceae, no Rio de Janeiro,
Brasil. Simpósio de ecossistemas brasileiros, vol. 4 dos Anais. Águas de Lindóia, São Paulo: Aciesp, 1998.
MARTIN, Louis; SUGUIO,
Kenitiro; DOMINGUEZ, José Maria Landim e FLEXOR, Jean-Marie. Geologia do
Quaternário costeiro do litoral do norte do Rio de Janeiro e do Espírito Santo.
Belo Horizonte: CPRM, 1997.
REIS, Manoel
Martins do Couto. Descrição Geográfica, Política e Cronográfica do Distrito dos
Campos
Goitacás que por Ordem do Ilmo e Exmo Senhor Luiz
de Vasconcellos e Souza do Conselho de S. Majestade, Vice-Rei e Capitão General
de Mar e Terra do Estado do Brasil, etc se Escreveu para Servir de Explicação
ao Mapa Topográfico do mesmo Terreno, que debaixo de dita Ordem se Levantou.
Rio de Janeiro: manuscrito original, 1785.
SOFFIATI,
Arthur. Pé no mangue. Rio de Janeiro: Autografia, 2015.
SOFFIATI,
Arthur. Tempo e espaço nos manguezais: um historiador fora do lugar. Rio de
Janeiro: Autografia, 2016.
SUGUIO,
Kenitiro. Dicionário de geologia marinha. São Paulo: T.A Queiroz, 1992.VELOSO, Henrique Pimenta; RANGEL
FILHO, Antonio Lourenço Rosa e LIMA, Jorge Carlos Alves. Classificação da
vegetação brasileira, adaptada a um sistema universal. Rio de Janeiro: Fundação
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1991.
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