domingo, maio 13, 2018

Soffiati revisitando o norte-noroeste fluminense (IV): eixo médio Itabapoana - foz

O professor e ecologista Arthur Soffiati, continua a descrever a sua revisitação ao norte-noroeste produzindo relatórios da eco-história das regiões do interior fluminense. Neste último relato, Soffiati explica a interpretação que faz para a região da foz do rio Itabapoana que envolve os municípios de Campos dos Goytacazes, São Francisco do Itabapoana e o sul capixaba.

Novamente se tem um expressivo material (mapa, imagens e fotografias) que expõe uma regionalidade com informações sobre a geografia física e os movimentos das gentes nativas, de forma integrada ao longo de um período. 

Mais uma vez chamo a atenção para um aspecto que venho observando com maior intensidade para entender a questão espacial. Trata-se do movimento e das transformações produzidas no espaço em diferentes dimensões e períodos de tempo.

Um material denso que se soma aos anteriores que podem ser lidos, aqui, aqui, aqui e aqui estão na seção, no lado direito do blog, com o título "Revisitando o Noroeste Fluminense" que descrevem um trabalho de campo por uma região não formalizada em nosso federalismo e que une espaços que estão em três diferentes e distintos estados: RJ. ES e MG. Vale conferir.


Revisitando o norte-noroeste fluminense (IV): eixo médio Itabapoana – foz
Arthur Soffiati
Roteiro seguido. Saindo de Campos dos Goytacazes no dia 17 de abril de 2018, seguimos para a zona serrana da margem esquerda do rio Paraíba do Sul. Passamos por Morro do Coco, Santo Eduardo e Santa Maria, em direção a Bom Jesus de Itabapoana. Cruzamos a ponte sobre o rio Itabapoana e entramos em Bom Jesus do Norte, já no estado do Espírito Santo. Daí, fomos acompanhando este rio até chegarmos à sede do município de Apiacá. Ainda acompanhando o rio, entramos no município de Mimoso do Sul sem passarmos por sua sede. Cruzamos apenas o distrito de Ponte do Itabapoana em direção à BR 101. Daí, seguimos para Presidente Kennedy, visitamos a igreja de Nossa Senhora da Neves, retornamos ao Estado do Rio de Janeiro pelo município de São Francisco de Itabapoana, passamos por Barra do Itabapoana e seguimos a RJ 196 até a sede do município. Dele, retornamos a Campos dos Goitacazes, fechando o polígono, que está assinalado em verde no mapa abaixo. Em excursão futura, pretendemos seguir o rio Itabapoana de Bom Jesus do Itabapoana às suas nascentes em Espera Feliz e Alto Caparaó, municípios da Zona da Mata Mineira.

1 - Roteiro da excursão

Relevo. É conhecimento corrente que a Serra do Mar estende-se do norte do estado do Rio Grande do Sul ao sul do estado da Bahia. Ela apresenta um rebaixamento no que atualmente é o norte fluminense por onde passa o rio Paraíba do Sul em direção ao mar. Na margem esquerda deste rio, a zona cristalina mostra-se baixa, com pequenas elevações. Aos poucos, as altitudes vão aumentando em direção ao estado do Espírito Santo. As formações montanhosas apresentam aspecto exótico que vão se tornando frequentes no sul do Espírito Santo. Em Campos, podemos destacar o morro do Coco, a Pedra Lisa e a Pedra do Baú.

2 - Pedra Lisa, na área serrana de Campos dos Goytacazes

Rios. Em seu curso, o rio principal da bacia do Itabapoana nasce e atravessa a zona cristalina, uma unidade de tabuleiros da Ecorregião de São Tomé e a restinga de Marobá, para lançar-se no oceano Atlântico. Embora pequena, a bacia do Itabapoana conta com uma rede de drenagem expressiva. Ela é formada por muitos córregos e rios de média dimensão. O Itabapoana é formado pelo encontro dos rios Preto e São João. Seus principais afluentes são os rios dos Veados, do Jardim, São Pedro, Muqui, do Ouro, da Onça, Santo Eduardo, São Bernardo e Preto. Existem quedas d’água no curso do rio. Várias foram aproveitadas para centrais hidrelétricas grandes e pequenas.

3 - Rio Itabapoana visto da ponte que liga Bom Jesus do Itabapoana (RJ) e Bom Jesus do Norte (ES)


























Vegetação nativa. A zona serrana era coberta, até a segunda metade do século XIX, por florestas ombrófilas densas e estacionais semideciduais. Respectivamente, a primeira é úmida e perene. A segunda perde entre 20 e 50% de folhas na estação seca. Este tipo de floresta também revestia os tabuleiros. Na restinga de Marobá, a vegetação ainda é uma formação pioneira de influência marinha, comumente denominada de vegetação de restinga. Na foz do Itabapoana, a água salobra em zona tropical propiciou o desenvolvimento de um manguezal, que, na classificação de Veloso et alii, é denominada de vegetação pioneira de influência fluviomarinha. A fauna nativa era bem mais diversificada que a da atualidade. No geral, existem três zonas na vegetação de restinga, da costa para o interior: vegetação herbácea, vegetação arbustiva e vegetação arbórea. O manguezal conta com mangue vermelho, mangue preto (com duas espécies) e mangue branco.

4-Fragmento de matas na zona serrana da bacia do Itabapoana



5 - Desmatamento na bacia do rio Itabapoana

      
6 - Desmatamento e erosão causada por pastoreio






















7 - Aspecto do manguezal do rio Itabapoana



Povos nativos.  A zona visitada foi originalmente habitada por nações indígenas do grupo linguístico macro-jê, destacando-se a nação puri.
Breve história da bacia. A colonização europeia da região norte-noroeste fluminense e sul capixaba, por intermédio de Portugal, começou com a instalação da vila da Rainha, na foz do Itabapoana. Esse foi o ponto escolhido por Pero de Gois para sediar a capitania de São Tomé, da qual era donatário.

8 - Concepção da Vila da Rainha

Subindo o rio Itabapoana até sua última queda d’água ele construiu junto a ela um pequeno porto e um engenho movido a energia hidráulica. Chegamos a essa conclusão por informações contidas nas cartas que ele enviou ao rei de Portugal e a Martim Ferreira, seu sócio em Lisboa. Recentemente, foram encontradas ruínas desse porto.

9 - Porto de Limeira, construído por Pero de Gois
na última queda d’água do rio Itabapoana

            O empreendimento de Pero de Gois inseria-se no plano português de colonização: divisão das terras incorporadas em capitanias hereditárias, monocultura da cana de açúcar e escravidão. As dificuldades financeiras, a resistência dos nativos (provavelmente puris) e da natureza inviabilizaram a capitania. A vila da Rainha foi erguida em 1539. Em 1546, foi abandonada. Seu filho, Gil de Gois, ainda fez uma nova tentativa de colonização em 1619. Igualmente fracassou e devolveu a capitania à Coroa Portuguesa no mesmo ano.
            A colonização progressiva da margem esquerda do rio Paraíba do rio Paraíba do Sul teve seu foco na vila de São João da Barra, a partir do século XVII. De Minas Gerais, também vieram colonos exploradores de madeiras e ervas.
            Os jesuítas exerceram importante papel na formação do império colonial português. Eles estavam presentes em todas as colônias portuguesas cuidando da catequese, educação, conquista e manutenção do território. Na margem direita do rio, eles construíram os prédios da famosa fazenda da Muribeca. Quando foram expulsos de todo império português pelo Marquês de Pombal, em 1759, todos os bens dos jesuítas passaram para a Coroa portuguesa. Vários foram leiloados a particulares. Esse foi o destino da fazenda Muribeca.
Em 1785, o capitão cartógrafo Manoel Martins do Couto Reis escreveu um precioso relatório para explicar um detalhado mapa que desenhou. Ele anotou que o rio Itabapoana era usado como divisa entre as capitanias do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. Além do mais, descreveu a foz do rio e registrou vestígios da Vila da Rainha.
Os naturalistas europeus Maximiliano de Wied-Neuwied, em 1815, e Auguste de Saint-Hilaire, em 1818, cruzaram a mata estacional semidecidual entre os rios Guaxindiba e Itapemirim. Ela apresentava então notável pujança na descrição dos dois cientistas. Contudo, a conquista do território por uma economia de mercado implica na profunda transformação dele, pois tudo é considerado mercadoria. O desmatamento avançava para a obtenção de madeiras nobres e para a agropecuária. Mesmo havendo madeiras que podiam render dinheiro, províncias agropecuárias eram abertas com incêndios florestais tanto na serra quanto nos tabuleiros. Ao passar pelo atual território de São Francisco de Itabapoana proveniente do Espírito Santo, em 1857, o naturalista suíço Johann Jakob von Tschudi registrou uma queimada.

10 - Queimada registrada por Tschudi no atual
São Francisco de Itabapoana

            Ainda no século XIX, dois canais foram abertos para ligar o Sertão das Cacimbas ou de São João da Barra ao rio Paraíba do Sul. Com o do Nogueira, pretendia-se ligar o grande rio à lagoa do Campelo. Ele não foi concluído. Com o de Cacimbas, a intenção era ligar o Paraíba do Sul à lagoa de Macabu. A cana já avançava rápido em terras antes ocupadas por matas. O primeiro engenho movido a vapor da província foi instalado em Barra Seca, nas terras que estamos analisando.
Sobre o rio Itabapoana, o geólogo canadense Charles Frederick Hartt deixou algumas informações: “Descendo o rio a partir de Porto da Limeira, deixa-se logo a região gnáissica e penetra-se numa região plana, na sua maior parte bem revestida de matas e mais ou menos entremeada de lagoas rasas, uma das quais, a lagoa Feia, é realmente muito extensa (...) A pequena vila de Barra do Itabapoana, habitada sobretudo por pescadores, é edificada numa faixa de areia na margem esquerda do rio, junto à foz. É separada da praia por um canal estreito e raso, ou lagoa, que corre do rio para o sul, paralela à costa e exatamente por traz das cristas das praias. Essa lagoa se comunica com uma alagadiça, coberta de mangues, ao sul da qual surgem arenitos terciários vermelhos no extremo dos pântanos, elevando-se o solo uns 20 pés mais ou menos, formando ao sul uma grande porção de terrenos terciários (...) A foz do Itabapoana é, como a do Paraíba, obstruída por uma barra arenosa, sendo difícil o acesso. As águas são rasas nesse litoral, e as embarcações costumam ancorar fora da barra para carregar madeiras etc.”
Tais informações ou são confusas ou o ambiente mudou muito em quase 150 anos. Barra do Itabapoana é situada na margem esquerda do rio. Se o curso do mesmo não foi mudado, ele se ergue na margem direita. O geólogo caracteriza bem a zona cristalina e as falésias ao sul da foz. Menciona manguezais e florestas. Registra a dificuldade de navegação na barra e menciona o comércio de madeiras. Hartt nos deixou um desenho da pedra Lisa.

11 - Pedra Lisa em desenho de Hartt

Em 1875, o brasileiro Manoel Basilio Furtado excursionou pelos rios Itabapoana e Itapemirim, deixando um relato único e precioso dos rios e da vegetação nativa de suas bacias, da serra aos tabuleiros. Ainda havia matas pujantes e grande diversidade faunística. A zona serrana ofereceu maior resistência à dominação da economia mercantil. O pequeno posseiro contribuiu muito para a devastação da serra, sempre à procura de terras sem dono. Um deles chamava-se Tancredo Cunha. Alberto Ribeiro Lamego vê nele um autêntico bandeirante. Em “A planície do solar e da senzala”, seu primeiro livro, datado de 1934, ele escreve: “Agrimpou ao altiplano inatingível, deserto e florestoso da Serra do Baú, abrindo releixos a dinamite. E ali, sem medo às temibilíssimas ‘pintadas’, que farejam veados, de envolta com cabritos montados, – oriundos de uma fazenda velha, no morro ao lado que lhe herdou o nome – sozinho, sob a incolumidade do rifle, vai emendando cafezais sobre cafezais.”
O morro ao lado é a Pedra Lisa, que segundo Lamego, ainda no mesmo livro, “... é o píncaro mais suntuoso desse inigualável estendal de cumeeiras, que se chama Estado do Rio de Janeiro. Talvez que, em beleza e magnitude, nem o Dedo de Deus lhe toque.” Junto à Pedra Lisa foi erguido o Solar do Destino, hoje não mais existente. Lamego mostra o desmatamento para o avanço da cafeicultura, que, na zona serrana da região, permite a colonização de tipo europeu.

Pedra Lisa e solar do Destino, à direita, hoje não mais existente.
Foto de Alberto Ribeiro Lamego

O Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) canalizou de tal forma a bacia do Itabapoana que terras do Espírito Santo passaram para o Rio de Janeiro e vice-versa. Vários pequenos afluentes foram transformados em valas.

13 - Trecho do rio Itabapoana canalizado pelo DNOS
            Também os empreendimentos de geração de energia elétrica voltaram seus olhos para as quedas d’água do rio Itabapoana, sempre garantindo que as barragens permitiram o fluxo a fio d’água, sem a formação de grandes lagos a montante. A promessa não foi cumprida. Em todas as represas, existe uma desproporcional área úmida a montante e estreitos cursos d’água a jusante, como se pode ver na hidrelétrica de Rosal. Mesmo numa pequena central hidrelétrica, como a de Pedra do Garrafão, existe um lago contrastando com um filete de água. Além do mais, as barragens criam obstáculos ao fluxo de animais aquáticos.

14 - Hidrelétrica de Rosal






















Urbanização. Como em todo o Brasil ou mesmo em países de área periférica, a urbanização da bacia do Itabapoana é completamente desordenada. O maior núcleo urbano é formado por duas cidades ligadas por uma pequena ponte: Bom Jesus do Itabapoana e Bom Jesus do Norte. A primeira fica no Estado do Rio de Janeiro e a segunda no Estado do Espírito Santo. As duas avançam sobre as margens do rio, lançam nele esgoto e resíduos sólidos.

15 - Ocupação indevida da margem do Itabapoana em Bom Jesus do Itabapoana






















16 - Lançamento de esgoto no rio Itabapoana





























Vias. Também as ferrovias e as rodovias deram a sua contribuição para a destruição socioambiental. Não se trata aqui de acusar as vias no seu todo, mas no modo como são construídas. No verão de 2018, em Morro do Coco, ocorreu a queda de um trecho da BR 101 porque o sistema de drenagem da rodovia federal foi subdimensionado. O entupimento de um córrego inundou toda uma comunidade. O reparo consistiu e reconstruir o sistema que se mostrava insuficiente. Por mais de uma vez, as rodovias estaduais também apresentaram o mesmo problema.
Patrimônio cultural.  No trajeto que percorremos, salta a vista como bem imóvel a ser preservado apenas a Igreja de Nossa Senhora das Neves, que hoje se encontra na restinga de Marobá, no município de Presidente Kennedy.

17 - Igreja de Nossa Senhora das Neves























Referências
ALMEIDA, Candido Mendes de. Atlas do Império do Brasil. Rio de Janeiro: História, 2000
COUTO REIS, Manoel Martins do. Descrição Geográfica, Política e Cronográfica do Distrito dos Campos dos Goitacases, que por Ordem do Ilmo. e Exmo. Senhor Luiz de Vasconcellos e Souza do Conselho de S. Majestade, Vice-Rei e Capitão General do Mar e Terra do Estado do Brasil se Escreveu para Servir de Explicação ao Mapa Topográfico do mesmo Terreno, que Debaixo da Dita Ordem se Levantou. Rio de Janeiro: 1785, ms. original.
FURTADO, Manoel Basilio Furtado Itinerário da Freguesia do Senhor Bom Jesus do Itabapoana à Gruta das Minas do Castelo. Campos dos Goytacazes: Essentia, 2014.
HARTT, Charles Frederick. Geologia e Geografia Física do Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1941.
LAMEGO FILHO, Alberto. A Planície do Solar e da Senzala. Rio de Janeiro: Católica, 1934.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelo distrito dos diamantes e litoral do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp, 1974.
SOFFIATI, Arthur. Em torno da Vila da Rainha. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro nº. 18, ano 18. Rio de Janeiro: IHGRJ, 2011.
TSCHUDI, Johann Jakob. Viagem às Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980.
VELOSO, Henrique Pimenta; RANGEL FILHO, Antonio Lourenço Rosa; e LIMA, Jorge Carlos Alves. Classificação da Vegetação Brasileira, Adaptada a um Sistema Universal. Rio de Janeiro: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1991.                                         
WIED-NEUWIED, Maximiliano de. Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989.

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