Dessa vez, Soffiati fala sobre o rio "Dois Rios" na Bacia do Paraíba do Sul ampliando a sua descrição, envolvendo agora áreas de outra região do ERJ (Serrana), para além do Norte e Noroeste Fluminense. Além de dar detalhes de um rio pouco conhecido, com esse texto ficou para mim ainda mais claro para mim, a posição do Soffiati diante de suas investigações como eco-historiador regional.
É interessante o uso que Soffiati passou a fazer do conceito de "história-mundo". Até porque eu também passei a fazer uso da ideia do "sistema-mundo" ao começar a me aprofundar no debate sobre a geopolítica e às disputas por hegemonias dentro do capitalismo contemporâneo.
Por razões em paralelo, eu também percebi as limitações que o enfoque regional, sem subir nas escalas representa para compreender questões do mundo atual mundializado.
Enfim, também por isso, vale ler e saborear a descrição sobre a percepção de como os nossos antepassados observavam e identificavam o potencial e as formas de apropriação da natureza.
Antigas
notícias do rio Dois Rios
Arthur
Soffiati
De
longa data, a bacia do Paraíba do Sul é uma das mais conhecidas do Brasil. Seu
rio principal serviu de estrada para a penetração e conquista do interior. Para
São Paulo e Minas Gerais ou dessas duas unidades político-administrativas da
Colônia, do Império ou da República em direção ao Rio de Janeiro, a bacia foi,
durante muito tempo, a porta de entrada e de saída.
Tanto o rio
principal quanto seus afluentes mereceram abundantes registros escritos e
pictográficos de viajantes, naturalistas, literatos e artistas. Vários autores
estrangeiros compararam o rio Paraíba do Sul ao rio Reno. O naturalista alemão
Maximiliano de Wied-Neuwied deixou, em 1815, um lindo desenho do rio em São
Fidélis (“Viagem ao Brasil”. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989).
1 - Rio Paraíba
do Sul em São Fidélis pela pena de Maximiliano de Wied-Neuwied, em 1815
Victor Frond,
desenhando para Charles Ribeyrolles, registrou o Paraíba do Sul em São Fidélis
e Campos em meados do século XIX (“Brasil
pitoresco” 2º vol. Belo Horizonte/Itatiaia; São Paulo/Edusp, 1980).
2- Rio Paraíba
do Sul em São Fidélis segundo Victor Frond, meados do século XIX
Não se conhece registro pictográfico
do rio Muriaé, último afluente do Paraíba do Sul, mas três anotações sobre ele
no passado são famosas: a do cartógrafo da infantaria Manoel Martins do Couto
Reis, entre 1783-85, a do naturalista amador Antonio Muniz de Souza (“Viagens e
observações de um brasileiro”. Salvador: IGHB, 2000), entre 1826-27, e a do historiador José Alexandre Teixeira de Mello
(“Campos dos Goytacazes em 1881”. Rio de Janeiro: Laemmert, 1886). O rio Pomba
teve em Hermann Burmeister seu grande admirador em meados do século XIX (“Viagem
ao Brasil através das Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais”. Belo
Horizonte/ Itatiaia; São Paulo/Edusp, 1980). O rio Paraibuna de Minas foi
desenhado pelo alemão João Maurício Rugendas (“Viagem pitoresca através do Brasil”. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1998). O trecho paulista do rio recebeu a ilustre
visita dos naturalistas alemães Martius e Spix.
3 - Rio Pomba
segundo Hermann Burmeister, em meados do século XIX
Mesmo
sendo muito conhecida, a bacia do Paraíba do Sul tem áreas com pouca informação.
Nos meus estudos de história ambiental regional, uma delas é a do rio Dois
Rios. A cidade de Nova Friburgo situa-se na sua bacia, mas nas margens do rio
Bengalas, um de seus afluentes. No conjunto, a bacia conta com poucas
informações ao longo do tempo. A mais antiga que conheço vem de Manoel Martins
do Couto Reis, no último quartel do século XVIII. Ele foi designado pelo
vice-rei Luís de Vasconcelos e Souza para levantar um mapa do Distrito dos
Campos dos Goytacazes, cujos limites eram os rios Macaé e Itabapoana. O
Distrito contava com três núcleos urbanos originais: Campos, Macaé e São João
da Barra. Era bem conhecido na planície fluviomarinha e nos tabuleiros, mas
bastante ignorado na zona serrana.
Na
cartografia dos séculos XVII e XVIII, a zona serrana do Rio de Janeiro aparecia
como um grande vazio ocupado, segundo os habitantes das partes baixas, por
índios ferozes. Foi assim que Couto Reis considerou a serra. Havia, na zona
serrana, apenas o núcleo de Cantagalo. Nova Friburgo só vai ser fundada em
1818. Couto Reis subiu o rio Paraíba do Sul com receio. O cartógrafo alcançou a
barra do Pomba, mas não explorou o rio por causa das condições climáticas. Ele
não conseguiu vencer a correnteza. Tentou uma segunda vez, também em vão.
4 - Floresta nos
arredores de Nova Friburgo segundo Hermann Burmeister
Nessa
incursão, ele examinou a foz do rio Dois Rios, sobre o qual escreveu: “O Rio do
Gentio – chamado vulgarmente os dois rios por equivocar-se a sua barra com um
braço do Paraíba, que abrange uma ilha e faz semelhança muito própria ao
conjunto, ou concorrência de dois rios – tem suas origens no centro da
cordilheira de onde emanam os acima nomeados, e faz também barra no Paraíba na
margem austral. Admite navegação, porém, sem uso por ser todo despovoado.”
5 - Rio do Gentio
no mapa de Manoel Martins do Couto Reis (1785)
De
fato, a defluência do rio Dois Rios no Paraíba do Sul se processa por uma
intrincada rede fluvial formadora de ilhas. Vista de certos pontos, tem-se a
impressão de que, de fato, existem dois rios. Talvez essa seja a mais remota
explicação para o nome do rio que desce da Serra do Mar pela vertente direita
até alcançar o Paraíba do Sul.
6 - Encontro do
rio Dois Rios com o Paraíba do Sul. Imagem do Google Earth
O
nome original do rio era do Gentio, por ser povoado por índios ainda não
integrados à cultura europeia. Ele anota em seu mapa, junto à desembocadura do
rio, uma observação: “Aqui haviam moradias de índios coroados que depois se
concentraram na nova aldeia.” Ele se referia a São Fidélis como a nova aldeia.
Ela foi fundada em 1780 como redução indígena, isto é, núcleo destinado a
reunir índios para a catequese e para protegê-los do ataque dos brancos.
Como
o rio do Gentio ou Grande ou Dois Rios, os rios Piabanha e do Colégio também
nascem na e descem da Serra do Mar pela vertente interior até alcançar o rio
Paraíba do Sul. O primeiro é bastante conhecido por erguer-se às suas margens o
núcleo urbano de Petrópolis, na primeira metade do século XIX, local de
veraneio da família imperial.
O
rio do Colégio talvez merecesse desconhecimento semelhante ao rio Dois Rios se
sua foz não se encontrasse no caminho entre Campos e São Fidélis, bastante
percorrido.
Na terceira década do século XIX, o major Henrique Luiz
de Niemeyer Bellegarde o definiu nos seguintes termos: “O rio denominado Dois
Rios é formado pelo grande de Cantagalo e pelo Negro, que se juntam a 4 léguas
acima da barra que aquele faz no Paraíba 8¹/² acima de Campos; pouca habitação
há em suas ribas.” (“Relatório da 4ª Seção de Obras Públicas da Província do
Rio de Janeiro apresentado à respectiva diretoria em agosto de 1837”. Rio de
Janeiro: Imprensa Americana de I. F. da Costa, 1837).
7 - Rio Paraibuna
de Minas, segundo Rugendas
Por último,
mas não por fim, o “Dicionário geográfico, histórico e descritivo do Império do
Brasil”, magnífica obra de J.C.R. Milliet de Saint-Adolphe explica “Grande.
Pequeno rio da província do Rio de Janeiro, no distrito da vila de Cantagalo.
Nasce na vertente setentrional da cordilheira dos Órgãos, e correndo para o
nordeste separa o distrito de Cantagalo do de Nova Friburgo, e no cabo dum
curso de 5 para 6 léguas, que se navega com mais ou menos facilidade em canoa,
ajunta-se com o rio Bengalas, 5 léguas no nordeste da vila de Cantagalo. Unidos
estes dois rios inclinam-se para o norte obra de 8 léguas, apelidando-se
indiscriminadamente ora Grande ora Bengalas até se ajuntarem pela margem
direita com o Paraíba, abaixo da aldeia de São José de Leonissa.” (Paris: Vª J.
-P. Aillaud, Guillard e Cª, 1863). Esta aldeia receberia o nome de Itaocara
posteriormente. Saint-Adolphe era francês e viveu 26 anos no Brasil.
8 - Rio Dois Rios
em São Fidélis. Foto do autor
Como, desde 1978, situo-me no que hoje se conhece como
história-mundo, procuro sempre articular a história local e regional com a
história mundial, que está sendo proposta atualmente para a compreensão de um
mundo globalizado. Vejo entendimentos questionáveis nela, como comparar China e
Europa na época da primeira revolução industrial. Parece que os historiadores
não levam verdadeiramente em conta o papel do capitalismo para explicar o “triunfo”
do ocidente, que promoveu a globalização do mundo de forma nada pacífica.
Desde a mais antiga
descrição do rio Dois Rios, o objetivo é a integração de regiões remotas e
ignotas às partes do Brasil já ocidentalizadas. No caso de Couto Reis, a
intenção é mapear para conhecer e dominar o território, os índios e os próprios
descendentes de europeus recalcitrantes às autoridades coloniais. A intenção
dos naturalistas, ainda que inconsciente, era o conhecimento científico da
natureza brasileira para integrá-lo ao conhecimento europeu.
Mas a
globalização ocidental não se efetua apenas por meio do conhecimento. Ela se
traduz principalmente por práticas. A grande floresta ombrófila e estacional
encontrada por Couto Reis na foz do rio do Gentio em 1784 e por Burmeister em
Nova Friburgo e ao longo do rio Pomba foi derrubada e substituída pela
agricultura e por pastagens. Embora pouco urbanizada, a bacia dos Dois Rios
enfrenta problemas gerados por núcleos urbanos, como a poluição do solo, das
águas e do ar. Tomemos o caso de Nova Friburgo. Trata-se do maior núcleo urbano
da bacia. Como toda cidade de padrão ocidental, ela cresceu sobre áreas de
floresta. Galgou encostas, canalizou o rio Bengalas, poluiu o solo e a água,
deixando problemas quase insolúveis para o Comitê de Bacias dos Rio dois Rios.
O quase fica por conta dos limites impostos por uma economia que cria os
problemas.