sexta-feira, março 08, 2019

A quase ausência europeia na planície dos Goitacazes no século XVI, por Soffiati

O tema já havia sido abordado pelo historiador e ecologista Aristides Soffiati aqui, em seu primeiro desses dois artigos que ganharão uma nova seção do blog aqui do lado direito. Organizado como poucos, Soffiati cumpriu o que ele mesmo estabeleceu de dividir a publicação da pesquisa, em dois textos.

No artigo anterior eu já havia dito, e repito, que aprecio muito as análises de Soffiati que envolvem o "sistema-mundo", numa perspectiva braudeliana. Ao observar os ciclos longos e a análise da estrutura, Soffiati interpreta a forma de colonização que os europeus, no século XVI, tiveram para com a produção do espaço, nos campos dos Goitacazes, numa dimensão socioambiental. Como sempre, vale muito conferir.




A quase ausência europeia na planície dos Goitacazes no século XVI: condicionantes ambientais, antropológicas e econômicas (final)
Arthur Soffiati
         No primeiro artigo da série, tentamos detectar e analisar os motivos que levaram os europeus, representados pelos portugueses, a não investir na colonização do atual norte do Rio de Janeiro por mais de um século, com exceção da malsinada tentativa de Pero de Gois com a capitania de São Tomé. Agora, concluímos a reflexão com uma revista panorâmica da expansão europeia em outras regiões do mundo no século XVI.
América
            A região que constitui hoje o norte fluminense integrou-se à globalização ocidental com um século e pouco de atraso. São Vicente foi fundado em 1532; a vila do Espírito Santo (Vila Velha) em 1535; Olinda em 1537; Salvador em 1549; o povoado de Benevente, hoje Anchieta, começou sua vida em 1561. Em 1556, foi erguido um povoado em Angra dos Reis. O Rio de Janeiro nasceu diretamente como cidade em 1565, sem passar pela condição de vila. Um núcleo ibérico foi criado em Guarapari em 1585. Belém nasceu em 1580, como ponta de lança da colonização ibérica da Amazônia.
            A vila da Rainha foi fundada em 1539. Se tivesse continuidade, seria um dos mais antigos núcleos da colonização ibérica no Brasil. Não há qualquer lamento em nossas palavras. Talvez exista nelas um certo alívio por saber que a região continuou a gozar por mais de um século da liberdade que desfrutou por dois milênios, mais ou menos.

1 - Animal exótico do Brasil segundo descrição de Hans Staden, séc. XVI

        Os espanhóis conquistaram Cuba em 1511. O império asteca foi conquistado com muita violência e morte pelo ambicioso Hernán Cortez à frente de tropas espanholas em 1519. Apesar de armas de fogo, a conquista durou sete meses. As línguas dos nativos, sobretudo o náuatle, não puderam ser suprimidas. A cidade do México se tornou um dos mais importantes entrepostos do mundo, fazendo a ligação entre Europa e Ásia. 

          Missionários e homens de letras não puderam fazer tábula rasa da cultura ancestral. Assim, europeus que se fixaram no México, a exemplo do franciscano Bernardin de Sahagun, incorporaram o vocabulário mexicano pré-europeu e aceitaram o estilo nativo de pintura em seus livros.

2 - Chegada dos espanhóis ao México. Códice Durán - 1581

          Entre os nativos, a catequese formou também homens letrados que escreveram sobre o passado e o presente mexicano. Um dos nomes mais notáveis foi o do jesuíta de origem mexicana Juan de Tovar. 

        O códice atribuído a ele reúne informações sobre ritos e cerimônias dos astecas. Seus desenhos são tipicamente mestiços, com forte influência pré-colombiana.

3 - Códice Tovar (séc. XVI): menino no mês do escorpião (outubro)

            O império inca foi conquistado oficialmente em 1532 por Francisco Pizarro. A ocupação e conquista espanhola do Peru também produziram mestiços não só em tipos físicos, mas também na cultura. O processo de aculturação vai desde Garcilaso de la Vega, inca, até Túpac Amaru (1545-1572), passando pelo movimento milenarista Taki-Ongoy e pelo originalíssimo Guamán Poma de Ayala. Garcilaso de la Vega teve uma rigorosa formação europeia. Ele pode ser considerado o pioneiro dos ocidentalistas. Embora defendesse a cultura de seus ancestrais, Garcilaso pensa como um europeu. Túpac Amaru sagrou-se imperador inca num movimento posterior à conquista espanhola do Peru. O Taki-Ongoy é um movimento milenarista que eclodiu no Peru por volta de 1570, pretendendo expulsar a cultura europeia do país. Finalmente, Guamán Poma é um nativo convertido ao catolicismo que protestou contra os desmandos espanhóis e católicos em “Nova crônica e bom governo”, não apenas escrita de forma original, mas ilustrada por um grande número de desenhos do próprio autor. Esses desenhos expressam uma fusão entre as culturas ocidental e peruana.


4 - Desenho de Guamán Poma com a seguinte legenda: “Conquistadores das Índias. Juan Díaz de Sólis Martín Fernandez, Vasco Núñes Balboa, Colón não descansavam, não faziam nada. Só pensavam em ouro e prata. A cobiça lhes fazia perder o juízo. Às vezes, nem comiam obcecados por esse pensamento. Os piores são os corregedores, sacerdotes e encomendeiros que, com a cobiça de ouro e prata, vão para o inferno.”

África
            O primeiro continente a ser atingido por europeus – notadamente por portugueses – foi a África na sua costa atlântica. Os portugueses foram avançando aos poucos no litoral ocidental com a intenção de alcançar a Índia, chamada então de Índias Orientais. Na verdade, a Índia seria a base para as conquistas portuguesas na África e na Ásia. Os portugueses escolheram Goa como capital de suas feitorias e colônias em África e Ásia, assim como Salvador se transformou na capital do Brasil.
            A África não era um continente desabitado. Pelo contrário. Havia povos os mais diversos em seu território, com níveis de cultura do mais simples ao mais complexo. Os bosquímanos e hotentotes organizavam-se ainda em sociedades paleolíticas, nômades e vivendo da coleta e da caça. A maioria dos grupos já se encontrava no neolítico, praticando a agricultura e o pastoreio, o que lhes permitia vida sedentária. Mas havia também sociedades civilizadas, com grau considerável de sofisticação, como as civilizações de Benin, da Etiópia, do Mali, de Gana e do Zimbabue.
            Nos séculos XV e XVI, o contato dos portugueses com esses povos era ainda superficial, mas já se processavam trocas culturais entre eles e as sociedades africanas. A África era ponto de compra de escravos, de marfim, de ouro e de especiarias. A economia mercantil começou a desestruturar as economias tradicionais do continente, onde os muçulmanos também praticavam um trabalho de catequese. Maomé chegou antes de Cristo na África, exceto na Etiópia, onde o cristianismo chegou logo no primeiro século do cristianismo na sua forma monofisista.


5 - Soldado português do século XVI na concepção artística da civilização de Benin, África Ocidental
            
            Os contatos entre portugueses e diversas sociedades africanas também propiciaram trocas culturais. Logo depois dos portugueses, chegaram à África franceses, ingleses e holandeses. A grande partilha da África em colônias europeias foi definida no Conferência de Berlim, em 1884-85. Os portugueses, então, já haviam instalado suas colônias na Guiné, em Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique.
            Assim como o ocidente influenciou as culturas africanas, essas também influenciaram os europeus. A civilização de Benin registrou a presença de portugueses. Os relatos de André Álvares de Almada, de André Donelha, de Francisco de Lemos Coelho, de João Julião da Silva, de Zacarias Herculano da Silva e de Guilherme Ezequiel da Silva mostram o encantamento dos portugueses pelos rios e culturas africanas.


6 - Senegâmbia em carta de Luís Teixeira, 1602

Ásia
            No século XVI, os portugueses já estavam instalados em Goa, na costa ocidental da Índia, onde se basearam para alcançar os grandes entrepostos comerciais do Ceilão, de Malaca, de Macau, do Japão e de Timor, até então controlados pelos muçulmanos. Como na África, a relação dos portugueses com os povos nativos era de encantamento e repúdio. O hinduísmo, a princípio, foi confundido com o cristianismo pele existência da divindade Krishna e de imagens em fabulosos templos. Os portugueses abominavam o islamismo, cujas mesquitas eram desprovidas de imagens.
            Goa foi o centro português do oriente, algo como uma segunda Lisboa. O processo de conquista das Índias foi violento. Na viagem de 1502, Vasco da Gama volta à Índia para se vingar das humilhações que julgava ter sofrido em Calicute. Ainda nas costas índicas da África, Vasco da Gama capturou uma embarcação repleta de peregrinos islâmicos que retornavam de Meca. Além de pilhar o navio, sem resistência dos passageiros e da tripulação, Vasco da Gama ordenou que o navio fosse incendiado com todos a bordo. O escrivão português Tomé Lopes, ficou chocado com o massacre de 380 pessoas, entre homens, mulheres, velhos e crianças.
            Em Calicute, Vasco da Gama apreendeu, no seu navio, pescadores e comerciantes, dos quais mandou cortar pés, mãos, narizes e orelhas, determinando que as partes cortadas fossem postas em cestos e enviados à terra com uma mensagem ameaçadora. Afonso de Albuquerque não foi menos violento. Massacrar pessoas não cristãs era como massacrar vermes. Poucas vozes se levantaram contra essa violência.
            Goa, como o centro do mundo português no oriente e, entre 1580 e 1640, do império ibérico, tinha quase vida própria. Dois grandes intelectuais viveram lá grande parte da sua vida. Um deles, o mais conhecido, era o português Garcia da Orta. Ele embarcou como médico de Martin Afonso de Souza em sua viagem à Goa, em 1534, e por lá ficou. Ele publicou “Colóquios dos simples e drogas da Índia” em dois volumes, editado em Goa em 1563. Embora cristão, era grande seu relativismo e, por consequência, sua tolerância com as diferenças.
            O segundo foi o holandês Jan Huygen van Linschoten, que escreve na linha de Garcia da Orta. Ele era protestante, mas trabalhou como guarda-livros de Vicente da Fonseca, arcebispo de Goa. Além de escrever um livro altamente informativo, Linschoten, como bom holandês, também desenhava. São famosas suas ilustrações da Ásia.


7 - Árvores da Índia em gravura de Linschoten

            Em 1519-21, os espanhóis irromperam em território que, pelo Tratado de Tordesilhas, pertencia a Portugal. Na primeira viagem de circunavegação da história, Fernão de Magalhães atingiu o oceano Pacífico e transformou o arquipélago das Filipinas em sua base asiática. O iminente conflito entre Portugal e Espanha durou até a união das coroas dos dois países na cabeça de Filipe II.
            Os portugueses se instalaram também em Macau, na foz do rio das Pérolas, na China. Logo, a pequena possessão também adquiriu vida própria, embora subordinada a Goa. Os chineses toleraram os portugueses por ser muito grande o seu território. Mas iberos também penetraram na China com intenções comerciais e catequistas. No século XVI, frei Gaspar da Cruz visitou o país oriental e dele deu notícia no “Tratado das coisas da China”.


8 - Domínios portugueses no século XVI
            Em 1543, os portugueses chegaram ao Japão. Estabeleceram relações comerciais com o país e iniciaram o trabalho de catequese. Os espanhóis estavam alcançando as Filipinas. Em 1580, com a morte do cardeal D. Henrique, não havendo sucessor ao trono, a coroa portuguesa ficou com Filipe II, o herdeiro mais próximo. Criou-se assim o maior império colonial que o mundo conheceu até aquele momento.
            Colonizadores ibéricos estavam nos quatro cantos do mundo. Enquanto isso, os interesses do império Filipino só voltaram os olhos para o norte do Rio de Janeiro em 1632.


9 -Nau portuguesa em Macau em biombo japonês

Leituras
ALMADA, André Álvares de. “Tratado breve dos rios de Guiné e Cabo Verde feito pelo capitão André Álvares de Almada em 1594”. Lisboa: Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1994.
COELHO, Francisco de Lemos. “Duas descrições seiscentistas da Guiné”. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1953.
CRUZ, Gaspar da. “Tratado das coisas da China”. Lisboa: Sociedade Editora de Livros de Bolso, 2010.
DONELHA, André. “Descrição da Serra Leoa e dos rios de Guiné do Cabo Verde”. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977.
LINSCHOTEN, Jan Huygen van. “Itinerário, viagem ou navegação para as Índias Orientais ou portuguesas”. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997.
ORTA, Garcia da. “Colóquio dos simples e drogas da Índia”, 2 vols. Lisboa: Imprensa Nacional, 1987.
POMA, Guamán. “Los dibujos del cronista índio em Nueva crónica y buen gobierno”. Peru: Editorial Piki, 2009.
SILVA, João Julião da; SILVA, Zacarias Herculano da e SILVA, Guilherme Ezequiel da. “Memórias de Sofala”. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998.  

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