No artigo anterior eu já havia dito, e repito, que aprecio muito as análises de Soffiati que envolvem o "sistema-mundo", numa perspectiva braudeliana. Ao observar os ciclos longos e a análise da estrutura, Soffiati interpreta a forma de colonização que os europeus, no século XVI, tiveram para com a produção do espaço, nos campos dos Goitacazes, numa dimensão socioambiental. Como sempre, vale muito conferir.
A quase ausência europeia na
planície dos Goitacazes no século XVI: condicionantes ambientais,
antropológicas e econômicas (final)
Arthur Soffiati
No
primeiro artigo da série, tentamos detectar e analisar os motivos que levaram
os europeus, representados pelos portugueses, a não investir na colonização do
atual norte do Rio de Janeiro por mais de um século, com exceção da malsinada
tentativa de Pero de Gois com a capitania de São Tomé. Agora, concluímos a
reflexão com uma revista panorâmica da expansão europeia em outras regiões do
mundo no século XVI.
América
A região que constitui hoje o norte
fluminense integrou-se à globalização ocidental com um século e pouco de
atraso. São Vicente foi fundado em 1532; a vila do Espírito Santo (Vila Velha)
em 1535; Olinda em 1537; Salvador em 1549; o povoado de Benevente, hoje
Anchieta, começou sua vida em 1561. Em 1556, foi erguido um povoado em Angra
dos Reis. O Rio de Janeiro nasceu diretamente como cidade em 1565, sem passar
pela condição de vila. Um núcleo ibérico foi criado em Guarapari em 1585. Belém
nasceu em 1580, como ponta de lança da colonização ibérica da Amazônia.
A vila da Rainha foi fundada em
1539. Se tivesse continuidade, seria um dos mais antigos núcleos da colonização
ibérica no Brasil. Não há qualquer lamento em nossas palavras. Talvez exista
nelas um certo alívio por saber que a região continuou a gozar por mais de um
século da liberdade que desfrutou por dois milênios, mais ou menos.
1 - Animal
exótico do Brasil segundo descrição de Hans Staden, séc. XVI
Os espanhóis conquistaram Cuba em 1511. O império asteca foi conquistado com muita violência e morte pelo ambicioso Hernán Cortez à frente de tropas espanholas em 1519. Apesar de armas de fogo, a conquista durou sete meses. As línguas dos nativos, sobretudo o náuatle, não puderam ser suprimidas. A cidade do México se tornou um dos mais importantes entrepostos do mundo, fazendo a ligação entre Europa e Ásia.
Missionários e homens de letras não puderam fazer tábula rasa da cultura ancestral. Assim, europeus que se fixaram no México, a exemplo do franciscano Bernardin de Sahagun, incorporaram o vocabulário mexicano pré-europeu e aceitaram o estilo nativo de pintura em seus livros.
2 - Chegada dos espanhóis ao México. Códice Durán - 1581 |
O códice atribuído a ele reúne informações sobre ritos e cerimônias dos astecas. Seus desenhos são tipicamente mestiços, com forte influência pré-colombiana.
3 - Códice Tovar (séc. XVI): menino no mês do escorpião (outubro) |
O império inca foi conquistado
oficialmente em 1532 por Francisco Pizarro. A ocupação e conquista espanhola do
Peru também produziram mestiços não só em tipos físicos, mas também na cultura.
O processo de aculturação vai desde Garcilaso de la Vega, inca, até Túpac
Amaru
(1545-1572), passando pelo movimento milenarista Taki-Ongoy e pelo
originalíssimo Guamán Poma de Ayala. Garcilaso de la Vega teve uma rigorosa
formação europeia. Ele pode ser considerado o pioneiro dos ocidentalistas.
Embora defendesse a cultura de seus ancestrais, Garcilaso pensa como um
europeu. Túpac Amaru sagrou-se imperador inca num movimento posterior à
conquista espanhola do Peru. O Taki-Ongoy é um movimento milenarista que
eclodiu no Peru por volta de 1570, pretendendo expulsar a cultura europeia do país.
Finalmente, Guamán Poma é um nativo convertido ao catolicismo que protestou
contra os desmandos espanhóis e católicos em “Nova crônica e bom governo”, não
apenas escrita de forma original, mas ilustrada por um grande número de
desenhos do próprio autor. Esses desenhos expressam uma fusão entre as culturas
ocidental e peruana.
4 - Desenho de Guamán Poma com a seguinte legenda: “Conquistadores das Índias. Juan Díaz de Sólis Martín Fernandez, Vasco Núñes Balboa, Colón não descansavam, não faziam nada. Só pensavam em ouro e prata. A cobiça lhes fazia perder o juízo. Às vezes, nem comiam obcecados por esse pensamento. Os piores são os corregedores, sacerdotes e encomendeiros que, com a cobiça de ouro e prata, vão para o inferno.”
África
O primeiro continente a ser atingido por europeus –
notadamente por portugueses – foi a África na sua costa atlântica. Os
portugueses foram avançando aos poucos no litoral ocidental com a intenção de
alcançar a Índia, chamada então de Índias Orientais. Na verdade, a Índia seria
a base para as conquistas portuguesas na África e na Ásia. Os portugueses
escolheram Goa como capital de suas feitorias e colônias em África e Ásia,
assim como Salvador se transformou na capital do Brasil.
A África não era um continente desabitado. Pelo
contrário. Havia povos os mais diversos em seu território, com níveis de
cultura do mais simples ao mais complexo. Os bosquímanos e hotentotes organizavam-se
ainda em sociedades paleolíticas, nômades e vivendo da coleta e da caça. A maioria
dos grupos já se encontrava no neolítico, praticando a agricultura e o
pastoreio, o que lhes permitia vida sedentária. Mas havia também sociedades
civilizadas, com grau considerável de sofisticação, como as civilizações de
Benin, da Etiópia, do Mali, de Gana e do Zimbabue.
Nos séculos XV e XVI, o contato dos portugueses com esses
povos era ainda superficial, mas já se processavam trocas culturais entre eles
e as sociedades africanas. A África era ponto de compra de escravos, de marfim,
de ouro e de especiarias. A economia mercantil começou a desestruturar as
economias tradicionais do continente, onde os muçulmanos também praticavam um
trabalho de catequese. Maomé chegou antes de Cristo na África, exceto na
Etiópia, onde o cristianismo chegou logo no primeiro século do cristianismo na
sua forma monofisista.
5 - Soldado português do século
XVI na concepção artística da civilização de Benin, África Ocidental
Os contatos entre portugueses e diversas sociedades
africanas também propiciaram trocas culturais. Logo depois dos portugueses,
chegaram à África franceses, ingleses e holandeses. A grande partilha da África
em colônias europeias foi definida no Conferência de Berlim, em 1884-85. Os
portugueses, então, já haviam instalado suas colônias na Guiné, em Cabo Verde,
São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique.
Assim como o ocidente influenciou as culturas africanas,
essas também influenciaram os europeus. A civilização de Benin registrou a
presença de portugueses. Os relatos de André Álvares de Almada, de André
Donelha, de Francisco de Lemos Coelho, de João Julião da Silva, de Zacarias
Herculano da Silva e de Guilherme Ezequiel da Silva mostram o encantamento dos
portugueses pelos rios e culturas africanas.
6 - Senegâmbia em carta de Luís
Teixeira, 1602
Ásia
No século XVI, os portugueses já estavam instalados em
Goa, na costa ocidental da Índia, onde se basearam para alcançar os grandes
entrepostos comerciais do Ceilão, de Malaca, de Macau, do Japão e de Timor, até
então controlados pelos muçulmanos. Como na África, a relação dos portugueses
com os povos nativos era de encantamento e repúdio. O hinduísmo, a princípio,
foi confundido com o cristianismo pele existência da divindade Krishna e de
imagens em fabulosos templos. Os portugueses abominavam o islamismo, cujas
mesquitas eram desprovidas de imagens.
Goa foi o centro português do oriente, algo como uma
segunda Lisboa. O processo de conquista das Índias foi violento. Na viagem de
1502, Vasco da Gama volta à Índia para se vingar das humilhações que julgava
ter sofrido em Calicute. Ainda nas costas índicas da África, Vasco da Gama
capturou uma embarcação repleta de peregrinos islâmicos que retornavam de Meca.
Além de pilhar o navio, sem resistência dos passageiros e da tripulação, Vasco
da Gama ordenou que o navio fosse incendiado com todos a bordo. O escrivão
português Tomé Lopes, ficou chocado com o massacre de 380 pessoas, entre
homens, mulheres, velhos e crianças.
Em Calicute, Vasco da Gama apreendeu, no seu navio,
pescadores e comerciantes, dos quais mandou cortar pés, mãos, narizes e
orelhas, determinando que as partes cortadas fossem postas em cestos e enviados
à terra com uma mensagem ameaçadora. Afonso de Albuquerque não foi menos
violento. Massacrar pessoas não cristãs era como massacrar vermes. Poucas vozes
se levantaram contra essa violência.
Goa, como o centro do mundo português no oriente e, entre
1580 e 1640, do império ibérico, tinha quase vida própria. Dois grandes
intelectuais viveram lá grande parte da sua vida. Um deles, o mais conhecido,
era o português Garcia da Orta. Ele embarcou como médico de Martin Afonso de
Souza em sua viagem à Goa, em 1534, e por lá ficou. Ele publicou “Colóquios dos simples e drogas da Índia” em
dois volumes, editado em Goa em 1563. Embora cristão, era grande seu
relativismo e, por consequência, sua tolerância com as diferenças.
O segundo foi o holandês Jan Huygen van Linschoten, que
escreve na linha de Garcia da Orta. Ele era protestante, mas trabalhou como guarda-livros
de Vicente da Fonseca, arcebispo de Goa. Além de escrever um livro altamente
informativo, Linschoten, como bom holandês, também desenhava. São famosas suas
ilustrações da Ásia.
7 - Árvores da Índia em gravura de
Linschoten
Em 1519-21, os espanhóis irromperam em território que,
pelo Tratado de Tordesilhas, pertencia a Portugal. Na primeira viagem de
circunavegação da história, Fernão de Magalhães atingiu o oceano Pacífico e
transformou o arquipélago das Filipinas em sua base asiática. O iminente
conflito entre Portugal e Espanha durou até a união das coroas dos dois países
na cabeça de Filipe II.
Os portugueses se instalaram também em Macau, na foz do
rio das Pérolas, na China. Logo, a pequena possessão também adquiriu vida
própria, embora subordinada a Goa. Os chineses toleraram os portugueses por ser
muito grande o seu território. Mas iberos também penetraram na China com
intenções comerciais e catequistas. No século XVI, frei Gaspar da Cruz visitou
o país oriental e dele deu notícia no “Tratado das coisas da China”.
8 - Domínios portugueses no século
XVI
Em 1543, os portugueses chegaram ao Japão. Estabeleceram
relações comerciais com o país e iniciaram o trabalho de catequese. Os
espanhóis estavam alcançando as Filipinas. Em 1580, com a morte do cardeal D.
Henrique, não havendo sucessor ao trono, a coroa portuguesa ficou com Filipe
II, o herdeiro mais próximo. Criou-se assim o maior império colonial que o
mundo conheceu até aquele momento.
Colonizadores ibéricos estavam nos quatro cantos do
mundo. Enquanto isso, os interesses do império Filipino só voltaram os olhos
para o norte do Rio de Janeiro em 1632.
9 -Nau
portuguesa em Macau em biombo japonês
Leituras
ALMADA,
André Álvares de. “Tratado breve dos rios de Guiné e Cabo Verde feito pelo
capitão André Álvares de Almada em 1594”. Lisboa: Grupo de Trabalho do
Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
1994.
COELHO,
Francisco de Lemos. “Duas descrições seiscentistas da Guiné”. Lisboa: Academia
Portuguesa da História, 1953.
CRUZ,
Gaspar da. “Tratado das coisas da China”. Lisboa: Sociedade Editora de Livros
de Bolso, 2010.
DONELHA,
André. “Descrição da Serra Leoa e dos rios de Guiné do Cabo Verde”. Lisboa:
Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977.
LINSCHOTEN,
Jan Huygen van. “Itinerário, viagem ou navegação para as Índias Orientais ou
portuguesas”. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, 1997.
ORTA,
Garcia da. “Colóquio dos simples e
drogas da Índia”, 2 vols. Lisboa: Imprensa Nacional, 1987.
POMA,
Guamán. “Los dibujos del cronista índio em Nueva crónica y buen gobierno”.
Peru: Editorial Piki, 2009.
SILVA,
João Julião da; SILVA, Zacarias Herculano da e SILVA, Guilherme Ezequiel da. “Memórias
de Sofala”. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, 1998.
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