quarta-feira, maio 29, 2019

Breve história natural e social do rio Ururaí (I), por Arthur Soffiati

O professor e eco-historiador Aristides Arthur Soffiati, nos brinda hoje, com a história de um importante bairro (freguesia, como chamam os portugueses) do município de Campos dos Goytacazes. Ururaí fica localizado no extremo sul da área urbana de Campos sendo hoje um bairro densamente ocupado. 

Soffiati viajou no tempo e no espaço para trazer alguns apontamentos sobre as origens desse simpático bairro inclusive a melhor hipótese sobre a gênese de seu nome. Um bairro cujos moradores-trabalhadores no passado alimentaram a usina de açúcar com o seu nome e hoje, ajudam a manter uma boa parte das atividades de serviços da cidade. 


Breve história natural e social do rio Ururaí (I)
Arthur Soffiati
            Entre 10 e 5 mil anos passados, o mar avançou na área continental correspondente à planície dos Goytacazes e chegou à lagoa de Cima. O antigo continente foi erodido e deu lugar a uma imensa laguna, que mantinha contatos com o mar em vários pontos. A partir de 5 mil anos, o mar começou a recuar. Aos poucos, o rio Paraíba do Sul e outros pequenos rios transportaram sedimentos da zona serra e dos tabuleiros. Esses sedimentos foram depositados na área da antiga laguna, formando uma imensa planície aluvial. A constituição de uma grande restinga pelo mar e pelo rio Paraíba do Sul completou a planície. Argila e areia formaram a maior planície do futuro Estado do Rio de Janeiro, uma planície fluviomarinha.



1 - Em 5.100, o avanço do mar sobre o continente chega perto da lagoa de cima. A futura baixada dos Goytacazes já foi mar. Chegando ao máximo, o mar começa a recuar e um novo continente passa a ser construído com material trazido da zona serrana pelo rio Paraíba do Sul e outros menores

            O rio Ururaí associa-se ao processo de formação da planície. Ela nasceu com o recuou do mar e a formação da baixada. Com origem há cinco mil anos antes do presente, é um rio novo. Ele se formou como escoadouro das águas da lagoa de Cima, que, por sua vez, é formada pelos rios Imbé e Urubu. O Imbé coleta águas de pequenos rios que descem da Serra do Mar, que funciona como divisor de águas: pelo rio Imbé, as águas da vertente direita chegam ao mar. Pelo rio Paraíba do Sul, as águas da vertente esquerda alcançam o oceano.

            Todo rio busca a parte mais baixa do terreno. O Ururaí não é diferente. Ele coleta as águas da lagoa de Cima e recebia, como afluente pela margem esquerda, o rio Preto. A tendência de qualquer rio é chegar ao mar, mas ele pode encontrar no caminho outro rio ou lagoa. Foi o que aconteceu com o Ururaí. Ele encontrou a lagoa Feia no caminho, também formada pela construção da grande planície. Esta, por sua vez, desaguava por vários pequenos braços que formaram o rio Iguaçu (hoje muito mutilado), que alcançou o mar onde hoje fica a barra da lagoa do Açu.

            Assim, podemos estabelecer uma continuidade complexa da nascente do rio Imbé à foz do rio Iguaçu: o Imbé corre ao pé direito da Serra do Mar até a lagoa de Cima, que também recebe águas do rio Urubu; deságua no rio Ururaí, que recebe a contribuição do rio Preto; corre entre a zona serrana e a planície aluvial formando algumas lagoas, das quais as mais importantes são as lagoas de Pau Funcho. Alcança a lagoa Feia, que forma o rio Iguaçu por vários distributários. Este, por sua vez, corria até o mar.

Cabe aqui uma palavra sobre o rio Preto. Seu curso o conduz ao rio Paraíba do Sul, no qual, outrora, desaguava. Com as cheias deste, porém, seu curso era obstruído e desviava-se para o rio Ururaí, do qual atualmente é tributário, mantendo, porém, uma foz facultativa fixada por ação do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), que pode funcionar também como tomada d’água. Manoel Martins do Couto Reis diz que ele se bifurca, fazendo barra no Paraíba do Sul e lançando um braço limitado para o Ururaí. Manoel Aires de Casal entende-o como uma grande curva do Ururaí que se aproxima do Paraíba do Sul, podendo comunicar-se com ele através de um canal. A tendência natural das cheias e o rio Preto demonstram a íntima ligação entre as bacias do Paraíba do Sul e da lagoa Feia.



2 - O novo continente quase formado em torno de 2500 anos antes do presente. Destaque para os rios Preto, Ururaí, Imbé, lagoa de Cima e lagoa Feia

            Por correr o rio Ururaí entre dois terrenos distintos e de idades muito distantes uma da outra, naturalmente suas formações vegetais nativas também são diferentes. Pela margem direita, a vegetação, originalmente, era formada pela Mata Atlântica na sua feição ombrófila densa. Vale dizer, a Mata Atlântica na sua fisionomia mais conhecida: úmida, complexa, de grande biodiversidade. Ela cobria as margens da lagoa de Cima e dos rios Imbé e Urubu, apresentando feição contínua até elevados pontos da Serra do Mar. Já pela margem esquerda do Ururaí, alastrava-se um tipo de vegetação que Henrique Veloso denomina de pioneira de influência fluvial, com duas formas: permanentemente alagada ou alagável em períodos de cheias. A primeira é a vegetação típica de lagoas rasas. A segunda permite o crescimento de algumas plantas arbustivas e arbóreas.



3- Os dois tipos de vegetação de influência fluvial: ao fundo, mata inundável; na frente, vegetação aquática.

            A primeira informação sobre o rio Ururaí de que se tem notícia está no “Roteiro dos Sete Capitães”. Na segunda viagem que os fidalgos empreenderam à região, em 1633, a viagem de batismo dos acidentes geográficos, o capitão Antonio Pinto proclamou a seus colegas: “Já temos dado apelido a outros lugares, é necessário ir dando a outros também, pois estamos em um país inculto, que está em uma escuridade, é necessário que nós lhe demos a luz da aurora, para os nossos vindouros e para a sua civilização.”. Seus companheiros concordaram prontamente. Assim é que, topando com um rio que formava um pântano cercado da palmeira raraí, decidiram emprestar este nome ao curso d’água. Por sua posição, tudo leva a crer que se trata mesmo do rio Ururaí. Noutra passagem do documento, escreve-se que “... seguiu a campina e atravessou alguns lagos, direito a um alto que lhe demos o apelido do “Retiro”, por estar no centro desse alto não muito longe de um riacho d’água que fica ao sudoeste à beira de um mato, vai em direitura à grande Lagoa-feia; desta beira à sua margem da parte norte, por não podermos atravessar a grande Lagoa-feia, até apanhar a barra do rio dos Macacos, vizinho do Ururaí.” O rio aparece de repente, sem ter sido nomeado antes. Ururaí, em tupi, significa água de jacaré. A espécie de jacaré que ainda ocorre na região é o ururau. Água em tupi é í. Daí Ururaí. Quanto ao rio dos Macacos, deve ele corresponder ao hoje denominado rio Macacuá, intimamente ligado ao Ururaí e com matas alagáveis que deveriam ser o abrigo de macacos, pois macacuá significa em tupi mato de macaco. 
            Manoel Martins do Couto Reis, em 1785, mais de um século depois dos Sete Capitães, explica que o rio Ururaí esgota as águas da lagoa de Cima para a lagoa Feia, descrevendo um trajeto com grandes meandros, o que tornava a navegação enfadonha. O capitão cartógrafo ainda faz um registro importante sobre o rio: “Ele dá excelente transportação às madeiras que descem do sertão em canoas ou balsas. Seria de muita utilidade se nas maiores voltas se fizessem cortaduras para encurtar e facilitar a navegação.” Pela informação do autor, o desmatamento dos tabuleiros e da zona serrana baixa já estava em curso no final do século XVIII. Sua sugestão de retilinizar o rio será acatada pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), que, no século XX, substitui os meandros do rio, entre a localidade de Ururaí e a lagoa Feia, por linhas retas. Cada sistema econômico lida coma natureza de forma distinta. O sistema capitalista é o mais radical de todos. Podemos dizer, assim, que o rio Ururaí já estava sendo ocidentalizado pelo capitalismo no século XVIII, pelo menos quanto à navegação e ao desmatamento.





















4 - O rio Ururaí entre a lagoa de Cima e a localidade de Ururaí. Como nesse trecho não houve canalização, o rio apresenta meandros acentuados

Manoel Aires de Casal observou que o Ururaí cumpria o papel de desaguadouro da lagoa de Cima. José Carneiro da Silva ressaltou que o rio Ururaí nasce na lagoa de Cima e deságua na lagoa Feia, enquanto José de Souza Azevedo Pizarro e Araujo limita-se a dizer que ele fermenta na lagoa de Cima. Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde também o menciona rapidamente, explicando que “deriva-se da extremidade oriental da Lagoa de Cima, e vem por junto da Serra do Itaoca, fazer barra na Lagoa Feia, com 6 léguas de curso. Antonio Muniz de Souza encantou-se com a lagoa de Cima. Já existiam povoadores nela, mas ainda podiam ser vistas densas florestas habitadas por antas e tamanduás-bandeira. Sobre o rio Ururaí, contudo, ele se limita a repetir o que outros autores escreveram antes dele. Por sua vez, José Alexandre Teixeira Mello repete Bellegarde apenas substituindo as 6 léguas por 52 quilômetros.

Referências

BELLEGARDE, Henrique Luiz de Niemeyer. Relatório da 4ª seção de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro apresentado à respectiva diretoria em agosto de 1837. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I.F. da Costa, 1837.
CASAL, Manuel Aires de. Corografia brasílica. São Paulo: Edusp, 1976.
COUTO REIS, Manoel Martins do.  Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reis – 1785: Descrição geográfica, política e cronográfica do Distrito dos Campos Goitacazes. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima; Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2011.
GABRIEL, Adelmo Henrique Daumas e LUZ, Margareth da (orgs.); FREITAS, Carlos Roberto B.; SANTOS, Fabiano Vilaça dos; KNAUS, Paulo; SOFFIATI, Arthur (notas explicativas) e GOMES, Marcelo Abreu. Roteiro dos Sete Capitães. Macaé: Funemac Livros, 2012.
MELLO, José Alexandre Teixeira de. Campos dos Goytacazes em 1881. Rio de Janeiro: Laemmert., 1886.
PIZARRO E ARAUJO, José de Souza Azevedo. Memórias históricas do Rio de Janeiro, 3º vol., 2ª ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945.
SILVA, José Carneiro da. Memória topográfica e histórica sobre os Campos dos Goitacases (1ª ed.: 1819). Rio de Janeiro: Leuzinger, 1907.
SOUZA, Antonio Muniz de. Viagens e observações de um brasileiro, 3ª ed.  Salvador: Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, 2000.
VELOSO, Henrique Pimenta; RANGEL FILHO, Antonio Lourenço Rosa; e LIMA, Jorge Carlos Alves. Classificação da vegetação brasileira, adaptada a um sistema universal. Rio de Janeiro: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1991.

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