O sociólogo e cientista político José Luís Fiori, professor de economia política internacional da UFRJ, publicou ontem,
aqui no bom blog Tutameia, outra interessante análise sobre a conjuntura na América Latina, incluindo o Brasil.
Porém, Fiori vai adiante e observa que além da conjuntura é preciso observar os movimentos sob a perspectiva o processo história, da superestrutura e dos ciclos. Assim, recorre a Polany, em seu olhar sobre ordem liberal do século 19, apogeu, crise e transformação, tudo a um só tempo, a partir de 1870, para observar os fenômenos que percorrem os estados-nações latinos, naquilo que chamou de "reincidência neoliberal tardia", interpretando ainda que todo esse movimento "está rigorosamente na contramão do sistema capitalista mundial".
Fiori levanta questões importantes: por que esse novo ciclo neoliberal foi tão curto? E o que se deve esperar para o futuro? para concluir que "o Brasil terá que enfrentar o desafio extremamente complexo de reconstruir seu Estado, suas instituições e sua própria sociabilidade, ao mesmo tempo em que define os novos caminhos da sua economia. E isto só será possível a partir de um grande acordo civilizatório entre as forças políticas democráticas".
Por tudo isso, não se pode deixar de ler este novo texto do Fiori que o blog republica abaixo.
O “outubro vermelho" e a esclerose brasileira
“Por qué protestan? Es por la desigualdad económica. Y los
bajos salários. También por la baja o nula movilidad social y la falta de un
futuro mejor para los jóvenes. Es por los servicios públicos infames. Y por la
globalización y la pérdida de puestos de trabajo…” Moisés Naim, El País, 27 de octubre de 2019
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Desta vez tudo passou muito rápido. Como se, em apenas uma
noite, a América Latina tivesse dormido de direita e acordado de esquerda.
Depois da avassaladora vitória de Lopez Obrador no México, em 2018, em apenas
um mês, outubro de 2019, as forças progressistas venceram as eleições
presidenciais na Bolívia, Uruguai e Argentina, elegeram um jovem economista de
esquerda para o governo de Buenos Aires e ganharam as eleições na Colômbia, para
o governo de suas principais cidades, como Bogotá e Medellín. E quase
simultaneamente, uma sucessão de revoltas populares derrubou ou colocou de
joelhos os governos direitistas de Haiti e Honduras e impôs pesadas derrotas
aos presidentes de direita do Equador e do Chile.
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Manifestações em Santiago, Chile. Postagem Paulo Soares FB. |
Muitos analistas se surpreenderam com essa sequência de
derrotas da direita, como se fosse inesperada, um verdadeiro raio em céu azul.
Mas isto não é verdade, sobretudo nos casos iminentes da rebelião do povo
chileno e da derrota de Mauricio Macri na Argentina. No caso do Chile, já tinha
havido uma gigantesca manifestação de mais de um milhão de pessoas, em 1988,
pelo fim da ditadura do General Pinochet, acossada pelo fracasso de uma
economia que havia crescido apenas 1,6%, em média, durante os 15 anos da
ditadura militar, deixando como herança um desemprego de 18%, e 45% da
população abaixo da linha da pobreza.
Logo depois da redemocratização do país, a partir de 2006,
sucederam-se grandes mobilizações estudantis contra a privatização e os altos
custos da educação, da saúde, da água e do saneamento básico, que haviam sido
privatizados durante a ditadura e permaneceram privados depois da
redemocratização. Uma mobilização quase contínua, que alcançou uma
extraordinária vitória em janeiro de 2018, com a aprovação pelo Congresso
Nacional chileno de um novo sistema de educação universitária, universal e
gratuita, tanto pública quanto privada. E foi na esteira dessas manifestações
que a população chilena voltou a sair às ruas, neste mês de outubro, contra uma
sociedade que, apesar do seu “equilíbrio macroeconômico”, segue sendo a mais
desigual dentre todos os países da OCDE, com a concentração de 33% da riqueza
nacional nas mãos de apenas 1% da população chilena. E contra os sistemas de
saúde, água e serviços básicos que seguem privatizados e com custos
exorbitantes, e contra um sistema de previdência privada que entrega aos
aposentados apenas 33% do seu salário ativo. Um quadro de descontentamento que
já prenuncia a derrota provável das forças de direita nas eleições
presidenciais chilenas de 2021.
No caso da Argentina, a vitória peronista foi uma resposta
imediata e explícita ao fracasso do programa econômico neoliberal do presidente
Mauricio Macri, que conseguiu destruir e endividar a economia argentina,
deixando como herança um crescimento negativo do PIB, com um taxa de inflação
de 50%, um desemprego de 10% e 32% da população abaixo da linha de
pobreza. Sabe-se que a Argentina foi, até bem pouco tempo atrás, a sociedade
mais rica e com melhor qualidade de vida e nível educacional de toda a América
Latina. Ou seja, resumindo o argumento, a rebelião chilena e a vitória
peronista na Argentina não têm nada de surpreendentes, como acontece também com
a sucessão em cadeia das demais derrotas da direita latino-americana.
Que consequências imediatas se devem esperar, e que lições
extrair desse “outubro vermelho”? A primeira e mais contundente é que os
latino-americanos não suportam nem aceitam mais viver em sociedades com um
nível de desigualdade tão extrema e vergonhosa. A segunda é que o mesmo
programa neoliberal que fracassou na década de 90 voltou a fracassar exatamente
porque não produz crescimento econômico sustentado e acentua violentamente a
precarização, a miséria e a desigualdade que já existem em toda a América
Latina. Por outro lado, do ponto de vista estritamente brasileiro, esse
fracasso neoliberal, sobretudo o fracasso do Chile e da Argentina, caem como
uma bomba em cima do programa de promessas e blefes ultraliberais do senhor
Guedes, cuja insistência na mesma tecla, depois de tudo o que aconteceu, sugere
tratar-se de um financista que, além de fanático, parece ser cego ou burro.
Assim, permanecem no ar duas perguntas importantes: por que
esse novo ciclo neoliberal foi tão curto? E o que se deve esperar para o
futuro? Para refletir sobre essa questão, entretanto, é necessário afastar-se
um pouco da conjuntura e de seus debates mais acalorados, recorrendo a uma
hipótese de mais logo prazo sobre a natureza contraditória do desenvolvimento
capitalista, que foi formulada pelo economista e historiador austríaco Karl
Polanyi, na sua obra “A Grande Transformação”, publicada em 1944. Polanyi
se propunha a explicar o fim da “ordem liberal do século 19”, que alcança seu
apogeu e começa sua crise e transformação, a um só tempo, a partir de 1870.
Segundo o economista austríaco, essa simultaneidade se deve à existência de um
duplo princípio que comanda a expansão capitalista: “O princípio do liberalismo
econômico, que objetiva estabelecer um mercado autorregulado, e o princípio da
proteção social, cuja finalidade é preservar o homem e a natureza, além da
organização produtiva.” E teria sido exatamente por isso que os Estados e
sociedades capitalistas mais avançados e suas populações teriam começado a se
defender do avanço do liberalismo desenfreado no exato momento em que tal
avanço alcançou seu apogeu. Como consequência, segundo Polanyi, a partir de
1870, “o mundo continuou a acreditar no internacionalismo e na
interdependência, mas agiu cada vez mais sob os impulsos do nacionalismo e da
autossuficiência”. Por isso, na mesma hora do padrão-ouro, da desregulação dos
mercados financeiros e da expansão imperialista do final do século 19, os
Estados europeus começaram a praticar o protecionismo e a desenvolver as formas
embrionárias de seus sistemas de proteção social, que iriam alcançar seu ápice
com a criação do Estado de Bem-Estar Social, após a Segunda Guerra Mundial.
Seguindo Polanyi, podemos também formular a hipótese de que
o sistema capitalista voltou a experimentar um grande impulso de
internacionalização, liberalização e promoção ativa dos mercados desregulados,
a partir dos anos 80 do século 20, e que esse “surto internacionalizante”
entrou em crise terminal com as guerras do início do século 21 e o colapso
econômico-financeiro de 2008. E foi essa crise terminal que desencadeou ou
acelerou um novo grande movimento de autoproteção por parte dos Estados e
economias nacionais, que começou na Rússia e na China, no início do século 21,
alastrou-se pela periferia do sistema europeu e acabou atingindo o próprio
núcleo financeiro e anglo-americano do sistema capitalista mundial, na hora do
Brexit; e ainda mais, na hora da eleição de Donald Trump e seu “America first”.
Dessa perspectiva, podemos também conjeturar que a onda neoliberal da América
Latina dos tempos de Menem, Fujimori, Fernando H. Cardoso e Salinas fez parte
do movimento geral de internacionalização, desregulação e globalização das
décadas de 80/90, liderado pelos países anglo-saxônicos. E a “virada à esquerda”
do continente, da primeira década do século 21, com seu viés
nacional-desenvolvimentista, também fez parte desse novo e grande movimento de
autoproteção estatal, econômico e social que está em pleno curso sob a
liderança das quatro grandes potências que deverão liderar o mundo no século
21: EUA, China, Rússia e Índia.
Olhando para o mundo dessa maneira, pode-se entender melhor
por que o revival neoliberal latino-americano dos últimos cinco
anos durou tão pouco: porque está rigorosamente na contramão do sistema
capitalista mundial. Apesar disso, essa reincidência neoliberal tardia pode
fazer parte de uma disputa pelo futuro do continente, que ainda está em pleno
curso e que pode se prolongar ainda por muitos anos, incluindo a possibilidade
de um impasse sem solução. Ou seja, desse ponto de vista, apesar da grande
vitória progressista deste outubro vermelho, o futuro da América Latina segue
incerto e dependerá muitíssimo do que venha a passar na Argentina, Chile e
Brasil, nos próximos tempos.
No caso da Argentina, o novo governo de Alberto Fernandez
enfrentará desafios de grande proporção quase imediatos e que podem levar o
país a repetir o dilema das últimas décadas, prisioneiro de uma “gangorra” que
não deslancha, ora sob o comando dos “liberistas”, ora sob o comando dos
“nacionalistas”, sem conseguir sustentar uma estratégia de desenvolvimento que
seja coerente, consistente e duradoura. A diferença entre Fernandez e Macri foi
de 8%, e apesar de que Fernandez terá maioria no Senado, não o terá no Congresso,
onde será obrigado a negociar com Macri e com os demais partidos para aprovar
seus projetos. Além disso, Fernandez começará seu governo no mês de dezembro,
com um país quebrado e endividado, com reservas que já estão quase inteiramente
comprometidas com o pagamento de dívidas de curto prazo, com altas taxas de
inflação, desemprego e miséria. E com a ameaça permanente de ver seu governo
torpedeado por novas explosões inflacionárias e crises financeiras que se
repetem periodicamente na Argentina.
Por outro lado, no caso do Chile, as forças progressistas só
poderão recuperar o governo em 2021, e até lá terão que negociar com o governo
de Sebastián Piñera um programa de reformas constitucionais que terá que
enfrentar o problema da reestatização dos serviços de saúde, água e saneamento
básico, pelo menos, além da rediscussão do sistema de previdência social por
capitalização, que fracassou rotundamente do ponto de vista dos aposentados. E
a aceitação conjunta de que o desempenho macroeconômico chileno das duas
últimas décadas é insuficiente para dar conta das necessidades concretas dos
cidadãos comuns que não se interessam pelas cifras e querem apenas sobreviver
com um mínimo de decência e qualidade de vida.
Por fim, o futuro brasileiro está cada vez mais difícil de
prever depois dessa revolta continental. Mesmo que o país consiga se desfazer
desse grupo de pessoas que se apoderou do estado brasileiro, evitando portanto
a instalação autoritária de um regime controlado por milicianos e
narcotraficantes, mesmo assim, depois do que já fizeram, eles já deixarão para
trás, como uma herança funesta, um Estado e uma economia aos pedaços e uma
sociedade dividida e moralmente destruída. O que foi construído pelos
brasileiros nos últimos 90 anos está sendo destruído e entregue,
sistematicamente, por esses senhores, em troca de promessas e blefes que não
têm a menor base científica ou histórica. Mesmo sem voltar a falar da cegueira
ideológica do senhor Guedes, basta ver o estrago que já foi feito pelo novo
chanceler brasileiro à imagem internacional do país e à toda sua história
diplomática, induzido pelos seus delírios religiosos e milenaristas, e pela sua
decisão de “purificar” os costumes “ocidentais e cristãos”. A sua invasão da
Venezuela já virou piada internacional, o seu Grupo de Lima implodiu e o seu
servilismo aos Estados Unidos abriu portas para a formação de um novo eixo
político-diplomático no continente, articulado em torno do México e da
Argentina, enquanto ele próprio, se seguir por esse caminho, acabará passando para
a história da diplomacia brasileira como um personagem patético: “Ernesto, o
Idiota”.
Concluindo, mesmo depois que esse grupo de marginais e
fanáticos seja devolvido ao seu devido lugar de origem, o Brasil terá que
enfrentar o desafio extremamente complexo de reconstruir seu Estado, suas
instituições e sua própria sociabilidade, ao mesmo tempo em que define os novos
caminhos da sua economia. E isto só será possível a partir de um grande acordo
civilizatório entre as forças políticas democráticas, que tenha como ponto de
partida o rechaço terminante do projeto atual de destruição do Estado e de
submissão do país à direção econômica e ao protetorado militar dos Estados
Unidos.