domingo, dezembro 29, 2019

Fiori: "A esquerda, os militares, o imperialismo e o desenvolvimento"

As análises do professor José Luiz Fiori merecem ser acompanhadas e discutidas. Faço isso desde que li alguns de seus livros que me ajudam a interpretar fenômenos políticos dentro do que ele chama do sistema interestatal capitalista e da geopolítica.

Neste último artigo, Fiori fala sobre como os países se colocam em relação à potência dominante no interior do sistema mundial e numa interessante e sintética leitura que envolve o papel dos militares. Assim, mostra como os EUA, como potência dominante da América Latina, no presente momento radicalizou sua posição com o aprofundamento do pensamento neoliberal (e defesa do ultraliberalismo), "com forte viés autoritário, sem nenhum tipo de preocupação social ou promessa para o futuro, seja de maior justiça ou de maior igualdade", que determina sua forma de atuar sobre o Brasil e os demais países do continente,

Vale a leitura e o debate porque o texto propõe ao final que diante das "bifurcações históricas”, é preciso ter coragem de mudar a forma de pensar, é preciso “rebobinar” as ideias, mudar o ângulo e trocar o paradigma". Ou seja, é necessário ter a compreensão das relações de poder na disputa por um projeto de nação e de desenvolvimento.



A esquerda, os militares, o imperialismo e o desenvolvimento
As grandes potências são aqueles Estados de toda parte da Terra que possuem elevada capacidade militar perante os outros, perseguem interesses continentais ou globais e defendem estes interesses por meio de uma ampla gama de instrumentos, entre eles a força e ameaças de força, sendo reconhecidos pelos Estados menos poderosos como atores principais que exercem direitos formais excepcionais nas relações internacionais.” (Charles Tilly, Coerção, Capital e Estados Europeus. São Paulo: EDUSP, 1996, p. 247)
Foi depois da Primeira Grande Guerra que o movimento socialista internacional repudiou o colonialismo europeu e transformou o “imperialismo” no inimigo número um da esquerda mundial. Assim mesmo, quando os socialistas chegaram pela primeira vez ao poder, na Europa, e foram obrigados a governar economias capitalistas, não conseguiram extrair consequências da sua própria teoria do imperialismo para o plano concreto das políticas públicas. E quando foram chamados a comandar diretamente a política econômica, como no caso de Rudolf Hilferding, entre outros, seguiram o receituário vitoriano clássico, do “sound money and free markets” – até muito depois da Segunda Guerra, quando aderiram, já nos anos 60 e 70, às ideias, propostas e políticas keynesianas. Mas na década de 80, estes mesmos partidos se converteram ao programa ortodoxo da austeridade fiscal e das reformas liberais que levaram à desmontagem parcial do Estado de Bem-estar Social.

Esse mesmo problema reapareceu de forma mais dramática quando lhes tocou aos socialistas e às forças de esquerda governarem países “periféricos” ou “subdesenvolvidos”. Também nestes casos, os teóricos do imperialismo e da dependência tiveram muita dificuldade para decidir qual seria o modelo de política econômica “ideal” para as condições específicas de um país situado no “andar de baixo” da hierarquia mundial do poder e da riqueza.

No caso da América Latina, a CEPAL formulou nos anos 50 uma teoria “estruturalista” do comércio internacional e da inflação, e propôs um programa de industrialização por “substituição de importações” que lembrava as teorias e propostas de Friederich List, economista alemão do século XIX, com a diferença de que as ideias cepalinas não tinham nenhum tipo de conotação nacionalista, ou de coloração anti-imperialista. Na prática, entretanto, dentro e fora da América Latina, os governos de esquerda dos países periféricos acabaram, quase invariavelmente, derrubados ou estrangulados financeiramente pelas grandes potências do sistema mundial, sem terem conseguido descobrir o caminho do crescimento e da igualdade, dentro de uma economia capitalista subdesenvolvida, e no contexto de um sistema internacional assimétrico, competitivo e extremamente bélico. Apesar de tudo, essas experiências deixaram um ensinamento fundamental: que os modelos e as políticas econômicas que funcionam em um país do “andar de cima” não funcionam necessariamente em países situados nos escalões inferiores do sistema, e menos ainda, quando estes países do “andar de baixo” tiveram a ousadia de querer mudar sua posição relativa dentro da hierarquia mundial do poder.

Desta perspectiva, para poder avançar neste debate, é útil distinguir pelo menos quatro tipos ou grupos de países,[1] do ponto de vista de sua estratégia de desenvolvimento e de sua posição com relação à potência dominante em cada um dos grandes tabuleiros geopolíticos e econômicos do sistema mundial. No primeiro grupo, encontram-se os países que lideram ou lideraram a expansão do sistema mundial, em distintos níveis e momentos históricos, as chamadas “grandes potências”, do presente e do passado, desde a origem do sistema interestatal capitalista; no segundo grupo, estão os países que foram derrotados e submetidos pelas grandes potências, ou que adotaram voluntariamente estratégias de integração econômica com as potências vitoriosas, transformando-se em seus dominiums econômicos e protetorados militares; no terceiro grupo devem ser situados os países que lograram se desenvolver questionando a hierarquia internacional estabelecida e adotando estratégias econômicas nacionais que priorizaram a mudança de posição do país dentro do poder e da riqueza mundiais; e por fim, no quarto grupo, podemos situar todos os demais países e economias nacionais situadas na periferia do sistema e que não puderam ou não se propuseram sair dessa condição, ou mesmo sofreram um processo de deterioração ou decadência depois de terem alcançado níveis mais altos de desenvolvimento, como no caso de alguns países africanos e latino-americanos.

No caso da América Latina, a potência dominante sempre foram os Estados Unidos. E desde a Segunda Guerra Mundial, até o final da década de 70 pelo menos, os Estados Unidos defenderam e patrocinaram na sua “zona de influência” um projeto de tipo “desenvolvimentista” que prometia rápido crescimento econômico e modernização social, como caminho de superação do subdesenvolvimento latino-americano. Mas depois da sua crise dos anos 70, e em particular na década de 80, os norte-americanos mudaram sua estratégia econômica internacional e abandonaram definitivamente seu projeto e patrocínio desenvolvimentista. Desde então, passaram a defender, urbe et orbi, um novo programa econômico de reformas e políticas neoliberais que ficou conhecido pelo nome de “Consenso de Washington”, que se transformou no núcleo central de sua retórica vitoriosa depois do fim da Guerra Fria. Combinavam a defesa dos mercados livres e desregulados com a defesa da democracia e da desestatização das economias que haviam seguido seu ideário anterior, que propunha um crescimento econômico rápido e induzido pelo Estado. Foi o momento em que o neoliberalismo se transformou no pensamento hegemônico de quase todos os partidos e governos da América Latina, incluindo os partidos socialistas e social-democratas. Na segunda década do século XXI, entretanto, os Estados Unidos voltaram a redefinir e mudar radicalmente seu projeto econômico para a periferia latina e mundial, defendendo um ultraliberalismo radical e com forte viés autoritário, sem nenhum tipo de preocupação social ou promessa para o futuro, seja de maior justiça ou de maior igualdade.

É nesse contexto hemisférico que se deve ler, interpretar e discutir a trajetória econômica brasileira da Segunda Guerra Mundial até hoje, começando pelo sucesso econômico do seu “desenvolvimentismo conservador”, que foi sempre tutelado pelos militares e apoiado pelos Estados Unidos. Em troca, durante todo esse período, os militares brasileiros submeteram-se à estratégia militar dos Estados Unidos durante a Guerra Fria, transformando-se no único caso de sucesso no continente latino-americano daquilo que alguns historiadores econômicos costumam chamar de “desenvolvimento a convite”, que se encaixa diretamente no segundo tipo de estratégia e de desenvolvimento da nossa classificação anterior. Ressalva deve ser feita ao governo Geisel, que se manteve fiel ao anticomunismo americano, mas ensaiou uma estratégia de centralização e estatização econômica e de conquista de maior autonomia internacional, que foi vetada e derrotada pelos Estados Unidos e pelo próprio empresariado brasileiro.[2]

É exatamente o período “geiselista” do regime militar brasileiro que deixa muitos analistas confundidos quando o comparam com o ultraliberalismo do atual governo “paramilitar” instalado no Brasil em 2018. Na verdade – excluída a “excrecência bolsonarista” – os militares brasileiros seguem no mesmo lugar, ocupando a mesma posição que ocuparam nos golpes de 1954 e de 1964: aliados com as mesmas forças conservadoras e com a extrema-direita religiosa, e alinhados de forma incondicional e subalterna com os Estados Unidos. E é por isto exatamente que não representa nenhum constrangimento para eles o fato de terem sido “nacional-desenvolvimentistas” na segunda metade do século XX, e serem agora “nacional-ultraliberalistas” neste início do século XXI. Acreditam que, uma vez mais, seu alinhamento automático com os Estados Unidos lhes garantirá o mesmo sucesso econômico que tiveram durante a Guerra Fria, só que agora através de mercados desregulados, desestatizados e desnacionalizados.

O que os atuais militares brasileiros ainda não perceberam, entretanto, é que a estratégia de desenvolvimento ultraliberal esgotou-se em todo mundo, e em particular no caso dos Estados e economias nacionais de maior extensão e complexidade, como o Brasil. E que os Estados Unidos já não estão em condições nem querem assumir a responsabilidade pela criação de um novo tipo de “dominium canadense” ao sul do continente americano. Além disso, nesta nova fase os Estados Unidos estão inteiramente dedicados à competição entre as três grandes potências que restaram no mundo;[3] não têm mais nenhum tipo de aliado permanente ou incondicional, com exceção de Israel e Arábia Saudita; e consideram que seus interesses econômicos e estratégicos nacionais estão por cima de qualquer acordo ou aliança com qualquer tipo de país, que por definição será sempre passageira. Por sua própria conta, a agenda ultraliberal pode garantir um aumento da margem de lucro dos capitais privados, sobretudo depois da destruição da legislação trabalhista, e durante o período das grandes privatizações. Mas, definitivamente, a agenda ultraliberal não conseguirá dar conta do desafio simultâneo do crescimento econômico e da diminuição da desigualdade social brasileira.

No entanto, esse “fracasso anunciado” traz de volta o grande desafio e a grande incógnita da esquerda e das forças progressistas, até porque o antigo desenvolvimentismo brasileiro não foi uma obra de esquerda, como já dissemos, mas sobretudo uma obra conservadora e militar que não teria tido grande sucesso se não tivesse contado com o “convite” norte-americano. E exatamente por isso fica muito difícil querer reinventá-lo utilizando apenas novas fórmulas e equações macroeconômicas. Talvez por isto mesmo às vezes se tem a impressão, hoje, de que a esquerda econômica vive prisioneira de um debate circular e inconclusivo, sempre em busca da fórmula mágica ou ideal que supõe ser capaz de responder por si só triplo desafio do crescimento, da igualdade e da soberania.

Nesses momentos de grandes “bifurcações históricas”, é preciso ter coragem de mudar a forma de pensar, é preciso “rebobinar” as ideias, mudar o ângulo e trocar o paradigma. Isto é muito difícil de esperar dos militares porque eles foram educados para pensar sempre da mesma maneira, e foram treinados para fazer a mesma coisa todo dia, em ordem unida. O problema maior, entretanto, vem da resistência dos economistas progressistas que, quando ouvem falar em “imperialismo”, “dependência” ou em “assimetria do poder internacional”, preferem se esconder atrás do argumento velho e preguiçoso de que se trata de uma “visão conspiratória” da História, sem querer enfrentar a dura realidade revelada por Max Weber, quando nos ensinou que “os processos de desenvolvimento econômico são lutas de poder e dominação [e por isto] a ciência da política econômica é uma ciência política, e como tal não se conserva virgem com relação à política quotidiana, a política dos governos e das classes no poder, e pelo contrário, depende dos interesses permanentes da política de potência das nações”.[4]

30 de dezembro de 2019

Referências:
[1] Fiori, J.L., “História, estratégia e desenvolvimento”, Editora Vozes, Petrópolis, 2015, p: 43 e 44

[2] “O governo Geisel tentou impor um novo movimento de centralização econômica, mas já não encontrou o apoio social e político – nacional e internacional – de início do regime militar. Por isso fracassou, e apesar da aparência em contrário, seu intento acelerou a divisão interna dos militares, que cresceu ainda mais nos anos seguintes e acabou levando-os à impotência final”. FIORI, J.L. Conjuntura e ciclo na dinâmica de um Estado periférico. Tese de Doutoramento, mimeo, USP, 1985, p. 214.

[3] COLBY, E.A. e MITCHELL, A.W. The Age of Great-Power Competition. How the Trump Administration Refashioned American Strategy. Forerign Affairs This Week. December 27, 2019.

[4] Weber, M. “Escritos Políticos”, Folio Ediciones S.A., México, 1982, p: 18.

sexta-feira, dezembro 27, 2019

A catequese contemporânea do deus dinheiro!

Virou moda falar em "educação financeira".

Aos incautos parece a alfabetização para chegar à riqueza como se essa pudesse prescindir do trabalho.

Os bancos, os fundos e as fintechs falam em educação financeira, como se existisse um saber possível de retirar alguém da pobreza, apenas por por ele.

Na verdade todos eles estão de olho em aumentar a captura de "rendas não bancarizadas" ou "não financeirizadas" através de papeis.

Os bancos e as gestoras de fundos estão levando a tal educação financeira para as zonas rurais, para as favelas das periferias urbanas, pequenas igrejas, etc. e agora até para povos e aldeias indígenas.

Engraçado é que reclamam que estes grupos são muitos comunitários e assim possuem dificuldades para compreender os princípios da educação financeira que querem passar, que é fundamentalmente individual, porque as pessoas - nas suas singularidades - tratam de forma distinta a relação com a riqueza e os meios de troca que é o dinheiro.

Daí se tem um exercício difícil para eles. Tirar as pessoas de suas tradições de pensar a vida mais coletivamente e não de forma individual e monetizada.

Tem-se aí uma espécie de catequese contemporânea do império do dinheiro e das finanças ampliando os ganhos e a acumulação dos capitalistas, dentro do sonho (pesadelo) de um crescimento guiado pelas finanças.

O império do capital busca estender e extrapolar as fronteiras das colônias e dos povos, a concepção mental que sustenta a abstração do valor do dinheiro como forma de manter sua hegemonia. Há limites para tudo isso!


PS.: Atualizado às 17:34: A catequese financeira visa também ao aumento do poder do império e de sua capacidade de controle quase totalizante no capitalismo contemporâneo que é hegemonicamente financeiro. Quem resiste a ele sofre o estado de exceção (Agamben).

terça-feira, dezembro 24, 2019

Banqueiro-ministro dá presente de Natal aos amigos com recursos do Estado (nosso)

A notícia está nos jornais de hoje. Na FSP "BC propõe projeto de socorro a bancos e prevê uso de recursos públicos".

Banqueiro-ministro Paulo Guedes (posto Ipiranga e sua trupe) agindo com o poder de ministro de Estado da Economia, a favor dos seus.

Estado para si e para os amigos ricos.

Sua iniciativa oportunística na véspera de Natal, reforça o que de pior existe na chamada velha política, que seu chefe dizia e falseava, dizendo querer combater.

A origem da medida permite interpretar dois cenários.

O primeiro é se aproveitar do leve e curto voo da galinha da economia, para garantir em lei, que o risco de atividade bancária seja garantida pelo Estado (por todos nós), se já não bastassem os bilionários lucros (este só para os amigos todos ricos), inclusive, e em especial nos períodos de crise. Reforçando a contradição do capitalismo que alega que os riscos justificam os lucros.

O segundo é que ministro-banqueiro Guedes também não acredita no voo da galinha da economia brasileira e assim, já antevê e pretende se prevenir de problemas no sistema bancário e financeiro que, evidentemente, negará.

Quem tem reservas e aplicações em fundos - e não é amigo de banqueiros - que se cuide.

sábado, dezembro 14, 2019

A economia do compartilhamento e o capitalismo de plataformas nascem à luz da modernidade, mas caminham para o subterrâneo das cavernas (underground capitalism)

No Brasil, segundo o IBGE já são mais de 4 milhões de pessoas vendendo trabalho (a maioria na informalidade) para as plataformas digitais. No atual estágio do capitalismo, essa forma de trabalho acaba sendo quase a única alternativa para obter renda e garantir a sobrevivência. Mesmo que explorado e percebendo que uma boa parte do sua renda líquida é capturada pelos vampiros modernos. Sob o manto e a aura da modernidade digital das chamadas startups, os vampiros digitais chupam parte da renda originada no trabalho local de transporte de passageiros e de entrega de alimentos, em processos ainda pouco observados pela maioria  das pessoas. [1]

O caso do transportes de passageiros, já chamados de "uberização", mesmo que com outras plataformas para além do Uber, serviu de referência para outras modalidades de intermediação entre produtor e consumidor, desde o transporte de pessoas às entregas de comida, que se espalham numa velocidade enorme, em que os trabalhadores desta rede logística se espremem pelas vias urbanas em motos e bicicletas, que em muitos casos são alugadas, como os carros nos aplicativos de transportes.

Do lado do consumidor este tipo de demanda parece que dá status de modernidade a quem o solicita por estar "antenado" e por ter o conhecimento sobre o uso destas plataformas digitais, hoje acessíveis por quase todos os celulares, além de propiciar economias, em relação às refeições feitas nos restaurantes, mesmo que self-service, onde o trabalho do garçom já foi sendo abolido.

Para os trabalhadores destas plataformas digitais, alguma renda é melhor que nenhuma renda. Para aqueles que produzem os alimentos, o argumento é que sem a entrega barata dos pratos, não há como sobreviver no mercado, numa época que a chamada comodidade e um novo modus de vida dos tempos atuais "brotaram nas pessoas" chamadas quase permanentemente de consumidores. 

Para os donos das plataformas digitais, estes dois argumentos servem para apresentar sua conta e os seus ganhos, onde a modernidade e o conhecimento digital justificariam a vampirização da renda em proporções absurdas. Mesmo não fazendo e nem entregando os alimentos, essas plataformas ficam com um percentual entre 15% e 30%. Além disso, são os únicos a conhecer a fundo todas as informações de todo esse processo de produção e consumo de algo que todos precisam: os alimentos.

Os proprietários das plataformas digitais montam seus bigdatas e assim, sabem quais são os pratos preferidos, os horários e regiões de pedido e entrega, quem vende mais e o quê, para onde e com pessoas de que perfil. Quem paga e como paga. 

Enquanto isso, os trabalhadores das entregas com aqueles enormes isopores pendurados nas costas são obrigados a se submeterem a práticas cada vez mais precárias e sem nenhuma proteção e sem direitos nas vias conturbadas e caóticas das cidades. Os consumidores consomem e pensam que não têm nenhuma relação ou culpa dos processos e o sistema serem dessa forma que são, ao mesmo tempo que comemoram, individualmente, a conquista da comodidade, fruto da chamada modernidade que serve a alguns, enquanto quase escravizam a quem lhe serve. Escravos da pós-modernidade.

Por conhecerem as pontas de quem atua no processo como produtor ou consumidor, os gestores das plataformas digitais passam a interferir na definição dos cardápios - defendendo que sejam reduzidos -, para objetivar escolhas que não gerem dúvidas, numa lógica da velocidade contemporânea, para aumento da produtividade, que inclui novas localizações das cozinhas para reduzir os custos de percursos, terem vantagens de aglomeração e massificação, etc. 

Neste processo, os donos das plataformas digitais (vampiros tecnológicos) já avançaram em suas atividades. Além de conectar produtor, consumidor e trabalhador das entregas, eles já estão usando as informações que possuem de todo o processo para interferir nos negócios destas pontas, aumentando ainda mais os seus ganhos e buscando a massificação (oligopolização), exigindo em troca destes agentes uma fidelização, assim como fazem aos consumidores com descontos para quem mais utiliza as plataformas.

O caso mais recente que se tem conhecimento é o das cozinhas escuras e subterrâneas (dark kitchens) quando os restaurantes passaram a ser apenas produtores das comidas, orientados pelas plataformas digitais (IFood, Uber Eats e Rappi). Ainda na busca do discurso da modernidade, há quem chame essas dark kitchen (ou cloud kitchens) de restaurantes virtuais. [2]

Hoje, boa parte dos consumidores destas comidas só conhecem os produtores de alimentos pelas redes sociais. A cozinha está indo para os subterrâneos para ampliar os ganhos de quem faz a intermediação deste negócio. As plataformas sugerem aos produtores de alimentos que eles estejam estrategicamente localizados, no centro da maioria dos pedidos, sem precisar ser visível, com pontos comerciais mais baratos e com ganhos para produção em maior escala e sem conhecer os seus consumidores.

Algumas plataformas já são também responsáveis pela montagem destas grandes “cozinhas subterrâneas” em estruturas que chamam de hubs (canais). No Brasil, a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) estima que o setor já movimente R$ 15 bilhões por ano, com crescimento anual de 20%, mas reclamam que os donos de plataformas deveriam compartilhar os dados dos clientes. [2]

Em todo esse processo de mergulho das cozinhas e seus trabalhadores nos subterrâneos da modernidade, se observa que a chamada economia do compartilhamento que nasceu com o discurso de ampliação da sociabilidade e da cooperação, serve hoje para o capturar as rendas locais para o andar superior das finanças que hoje controlam essas plataformas digitais.

Trata-se de um processo com ampla utilização da ideia da gestão do território e da intermediação entre os agentes do sistema para aspirar – como vampiros digitais – as rendas geradas pelos fluxos de dinheiros, promovendo ainda enorme concentração de renda e ampliando as desigualdades sociais. O capital necessita fazer imersão no território, através de agentes locais, para articular os negócios e assim aspirar e desenraizar as rendas regionais até o andar de cima das finanças.

O uso da internet e das comunicações online segue transformando profundamente as nossas relações sociais. Ao contrário das expectativas iniciais de democratização econômica e inclusão social, o que se vê desde então é uma concentração absurda, uma oligopolização com a captura da vida das pessoas e das rendas locais, por parte de um sistema que tem reforçado a hegemonia financeira global no capitalismo contemporâneo.

Vivemos um movimento intenso e em várias dimensões e por isso difícil de ser observado e interpretado em toda a sua totalidade por aqueles que correm e buscam sobreviver. Realizar a leitura deste processo, mesmo que de forma paulatina e ainda fragmentada, exige a junção das partes soltas deste fenômeno real e contemporâneo que deve ser investigado e analisado de forma multidimensional (dimensão social, territorial e econômico-financeira entre outras) e em várias escalas simultaneamente, ou seja, de forma transescalar. Desde o fenômeno real analisado no local, às suas relações nacionais e articulações intersetoriais e de interligações globais.

Este mergulho do capitalismo real para o “underground capitalism” é um processo que está sendo ainda mais amplamente investigado por este autor, que já identificou que boa parte do controle destas plataformas digitais são feitas por grandes investidores, através de fundos financeiros (já tratados em pesquisa divulgada), que também, e não coincidentemente, se trata de outra atividade invisibilizada para o grande público, ficando nos subterrâneos e cavernas, onde se busca a acumulação como etapa e parte do circuito de valorização e de capitalização no capitalismo contemporâneo.


Referências:
[1] IBGE em pesquisa da PNAD (abril de 2019) identificou que 3,8 milhões de brasileiros trabalham com as plataformas representando 17% dos 23,8 milhões de trabalhadores nessa condição, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no trimestre até fevereiro de 2019. Matéria da revista Exame: "Apps como Uber e iFood se tornam “maior empregador” do Brasil - Apps de serviços são fonte de renda para 4 milhões de brasileiros; se reunidas em uma mesma folha de pagamento, ela seria mais longa do que a dos Correios". Disponível em: < https://exame.abril.com.br/economia/apps-como-uber-e-ifood-sao-fonte-de-renda-de-quase-4-milhoes-de-pessoas/...>.

[2] Reportagem do Valor, em 11 de dezembro de 2019, P. B1. MADUREIRA, Daniele. "Aplicativos de entrega dão as cartas na cozinha". Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2019/12/11/aplicativos-de-entrega-dao-as-ordens-na-cozinha.ghtml


PS.: Atualizado às 13:04 de 16/12/2019: A plataforma 99 de transportes seguindo a Uber Eatas, também lançou o 99 Food. Essas plataformas de entrega de comidas agora estão avançando para entrega de supermercados. O IFood já tem acordo com 200 supermercados e planeja ampliar este acordo para mil supermercados em 2020. De certa forma, a entrega de comidas impacta em parte o negócio de supermercado. Observa-se aí uma ampliação da atuação do "capitalismo de plataformas".


PS.: Atualizado às 16:06 de 16/12/2019: Vale ler matéria do The Guardian (5 dez. 2019) "Uber’s new loan program could trap drivers in cycles of crushing debt". O Uber Money busca ampliar seu leque de atuação e controle sobre o trabalhador de aplicativos com dívidas a serem pagas com a renda do trabalho de transportes de passageiros ou entrega de comida. Ciclo de dívidas para prender o trabalhador e garantir maior captura sobre suas rendas. Uma Neoescravização digital em curso através do capitalismo de plataformas.

Trechos da reportagem: 
"Um programa de empréstimos criar uma nova e cruel forma de peonagem digital. A peonagem, usada como substituto da escravidão definitiva no sul da América pós-guerra civil, é um sistema de exploração econômica em que os trabalhadores são obrigados a trabalhar para pagar dívidas a seus empregadores... 
... Peonagem digital poderia ser muito mais explorador pelo uso de dados da empresa para determinar preços de viagens e ganhos com motoristas... 
... Os empréstimos do dia de pagamento da Uber poderiam ajudar a empresa a manter o controle coercitivo sobre sua força de trabalho supostamente independente. Com dados sobre o quanto os motoristas precisam ganhar para sobreviver, o Uber pode personalizar os juros, calibrar exatamente quanto tempo um motorista deve trabalhar para pagar esses juros e pressioná-lo para - e talvez ultrapassar - seus limites." 

Voltando às interpretações do texto principal. Temos aí uma renda derivada da escravidão (trabalho livre controlado), onde o sujeito é livre para admitir ser explorado para sobreviver. 
Por tudo isso, mais que nunca ler é necessário estudar a história da escravidão humana para entender o capitalismo contemporâneo. O servo que usa os meios digitais (bigdata) para exercer o controle coercitivo com quem precisa sobreviver e hoje possui seus dados e por algoritmos controla a força de trabalho da qual pode realizar ainda maior captura de renda derivada do trabalho.

André Araújo no GGN: "A elite americana prevê o fim do neoliberalismo"

André Araújo aqui no portal GGN publicou um texto com uma breve análise que merece ser replicada. Em resumo, o autor mostra como o esgarçamento do ciclo neoliberal puxado pela hegemonia financeira que tanto temos comentado aqui neste espaço, pode esta mostrando seus limites.

O pesadelo começa pelo lado de quem tem mais a perder e começa a vislumbrar necessidade de fazer concessões para manter o capitalismo.

Decisões como essa têm um período temporal possível, depois será depois.


A elite americana prevê o fim do neoliberalismo

As 200 maiores corporações americanas, reunidas no BUSINESS ROUNDTABLE, principal entidade de cúpula do capitalismo americano, presidido por Jamie Dimon, CEO do mega banco J.P. MORGAN CHASE, pela voz de seus executivos principais reunidos, decidiram que o credo neoliberal praticado há 40 anos, segundo o qual p principal objetivo das corporações é gerar “valor para o acionista”, está errado e deve ser revisto porque esse ideia causou um desastre que vai COLOCAR EM RISCO O PRÓPRIO CAPITALISMO. Esse desastre se chama “CONCENTRAÇÃO DE RENDA”.

Há 40 anos, segundo o Business Roundtable, 1% da população americana detinha 7% da riqueza. Hoje os mesmos 1% detém 22% da riqueza, a concentração de riqueza aumentou TRÊS VEZES. O mito neoliberal, de que se o acionista ganhar mais toda a economia prospera, ERA FALSO. A riqueza se concentra e não beneficia o conjunto da sociedade. Hoje o crescimento dos EUA está estagnado e não passa de 2% anual, inexplicável quando o desemprego é baixo. Na prática, os EUA têm pleno emprego, mas há truques embutidos nessa constatação, há muitos trabalhando abaixo de sua competência porque não conseguiram prosseguir suas carreiras pela falta de crescimento da economia, há uma estagnação e até regressão social nítida nos EUA.

A explicação do Business Roundtable é clara: NÃO CRESCE PORQUE OS SALÁRIOS SÃO BAIXOS E A POPULAÇÃO ESTÁ ENDIVIDADA, quer dizer, não basta o pleno emprego, é preciso DISTRIBUIR RENDA para que a economia cresça e as grandes corporações NÃO DEVEM TER O LUCRO PARA O ACIONISTA COMO ÚNICO OBJETIVO, PORQUE ISSO VAI DESTRUIR A ECONOMIA DE MERCADO por causa de uma crise social que pode levar à implosão do País.


O fim do ciclo neoliberal
O chamado “ciclo neoliberal’, que é uma exacerbação dos princípios da Escola Austríaca, uma espécie de crença cega no mercado muito além dos princípios da primeira fase do capitalismo moderno com Adam Smith e David Ricardo, propagado pela então Primeira Ministra Margaret Thatcher, hoje demonizada no Reino Unido, com sua biografia histórica revista muito para baixo, partia da lógica errada de que a economia de mercado, LIVRE DAS AMARRAS DO ESTADO, seria boa para todos, ricos, classe média e pobres. Segundo a conclusão do Business Roundtable, evidenciado o pensamento de 178 CEOs das maiores corporações da economia produtiva e do mercado financeiro dos EUA, essa crença É FALSA. A economia de mercado sem Estado NÃO É BOA PARA TODOS, só para os ricos e se isso não for corrigido o capitalismo não terá futuro porque ele só funciona dentro de uma sociedade organizada.


O papel do Estado
A conclusão do Business Roundtable vai mais além. Julga que é fundamental reconsiderar o papel do Estado como regulador e garantidor dos direitos da população em suas relações com o mercado, que, ao contrário do que imaginavam os neoliberais de raiz, NÃO SE AUTOREGULA porque não é de sua natureza e nem de sua capacidade. É necessário um Estado forte para que a população seja protegida da ganância excessiva do mercado.


O Brasil na contra mão adora o neoliberalismo dos anos 80
O Brasil, sempre atrasado na absorção de tendências do pensamento econômico elaboradas nos países centrais quer, em 2019, implantar no País a ideologia já caduca dos anos 1980, as ideias de Mrs. Thatcher já foram desmontadas na própria Inglaterra e sua biografia revista e piorada, a deputada Glenda Jackson, ex-artista de Hollywood, é hoje o maior algoz do papel histórico de Mrs. Thatcher e a crise de 2008 nos EUA foi atribuída à desregulamentação do mercado financeiro efetuada pelo Presidente Reagan, também sob revisão histórica.

O neoliberalismo dos anos 1980 foi desmontado no Chile pelos efeitos catastróficos que causou nas classes média e pobre do Chile, enquanto enriquecia o topo dos ricos.

O neoliberalismo com desmanche do Estado está em franca implantação no Brasil ao mesmo tempo em que é rejeitado nos países centrais, produzindo terríveis efeitos em um Pais com enorme população de baixa renda, produziu péssimos resultados em países ricos ao empobrecer a classe média, em países emergentes produzirá catástrofes de miséria e involução social. Vemos hoje no Brasil um sólido pensador econômico neoliberal de primeira linha, Arminio Fraga, fortemente preocupado, mais do que qualquer outro fator, com o desequilíbrio social, ao mesmo tempo em que neoliberais ideológicos, como o Ministro da Economia, incapaz de evoluir, pregando e colocando em prática no Brasil o receituário neoliberal antigo dos anos 1980, que fracassou redondamente no seu principal laboratório, o Chile. Cego a esse fracasso o atual núcleo que comanda a economia no Brasil insiste na fórmula chilena.

Agora, com a revisão dessas premissas nos EUA, alguma luz deve se despejar sobre a mídia e os empresários brasileiros que apoiam essa catástrofe de desmonte do Estado via privatizações absurdas e concessões fantasiosas, com a alegação infantil de “o Brasil está quebrado”, quebrado estará pela incompetência de quem deveria ter projetos e ideias de revigoramento da economia onde o Estado ainda tem e terá PAPEL CENTRAL.


O neoliberalismo como ideologia
Há dois eixos diferentes no neoliberalismo de Thatcher e de Reagan. Mrs. Thatcher tinha o neoliberalismo como uma ideologia em oposição ao Partido Trabalhista Inglês, que era (e é) um partido social democrata clássico. Já Reagan adotou uma forma mais suave de neoliberalismo, baseado na desregulamentação e não na privatização, não havia o que privatizar nos EUA, ao contrário do Reino Unido. Reagan era a favor da desregulamentação do mercado financeiro, que foi a causa da crise de 2008, isso dito pelo então Secretário do Tesouro dos EUA e era contra os sindicatos de trabalhadores. Mas Reagan não seguia a linha de considerar o neoliberalismo uma ideologia, era apenas uma praxis útil à economia, não era uma fé religiosa, Reagan era um pragmático.

Já os neoliberais brasileiros do atual grupo no comando da economia têm o neoliberalismo como IDEOLOGIA ou SEITA, é uma forma muito mais primitiva tosca, grosseira e ignorante de operar aquilo que é apenas uma escola de pensamento econômico que serve para um ciclo e não pela eternidade.O interessante é que os neoliberais da Era FHC, como Arminio Fraga, Gustavo Franco, Pedro Malan e outros não operaram a política econômica na base de ideologia, eram práticos e não fanáticos, como pessoas cultas e inteligentes alguns revisaram suas posições para ver os defeitos do neoliberalismo, caso de André Lara Rezende e Arminio Fraga, é uma característica de cérebros de primeira ordem, a capacidade de se reciclar, rever posições, refletir, e não manter a mesma ideia até a morte, caso dos burros e limitados. Keynes se reinventou várias vezes, mudando de ideia de acordo com a época, como respondeu à observação de Lady Astor “O senhor muda de ideia a toda hora”, ao que Keynes respondeu, “My lady, eu não mudo, o que mudam são as circunstâncias”. Lara Rezende e Fraga estão hoje na mesma linha do Business Roundtable, ou o capitalismo se reforma para distribuir renda ou acaba.

E a ruptura pode vir de forma repentina, como no Chile e agora também na Colômbia, com manifestações destrutivas e intermináveis, produto da frustação acumulada de classes e pessoas que viram suas vidas serem destruídas pelo desemprego e regressão social. A elite brasileira, historicamente atrasada, cega e surda, focada no mercado financeiro, dificilmente terá a capacidade revisionista de uma elite culta, mas fica do recado da elite americana.

terça-feira, dezembro 10, 2019

Ampliação da financeirização do futebol e a nova Copa do Mundo de Clubes

Não é só o francês PSG que é controlado por fundos financeiros, no caso o QIA, fundo soberano do Qatar. O fundo QIA tem um fundo subsidiário só de esportes, o QSI (Qatar Sports Investments) que sede em Doha, na Suíça.

O QIA/QSI é dono do clube PSG e também dono do canal esportivo BeIN que tem os direitos sobre o campeonato francês, vendido para todo o mundo depois da chegada de Neymar. (Veja aqui postagem do blog em 27 de agosto de 2017 sobre o assunto)

Vários outros clubes no mundo possuem donos vinculados a fundos de investimentos financeiros que controlam também os direitos de transmissão incluindo canais de TV e outras mídias.

É um processo avassalador que demonstra como a riqueza gerada por recursos minerais (entre eles o petróleo), produção imobiliária e outras frações do capital transitam também pela área de eventos para acumulações de capital em atividades que se entrelaçam.

Pois bem, agora, além dos grandes clubes da Europa e seus rentáveis campeonatos nacionais, o capital financeiro chega para perto da Fifa para assumir controles de campeonatos.

Nesta linha, o fundo financeiro inglês (de private equity) CVC Capital Partner que possui patrimônio de US$ 111 bilhões, quase meio trilhão de reais, informa que está em negociação com a Fifa e o Real Madrid para aquisição dos direitos comerciais de novos campeonatos mundiais de (espécie de Copa do Mundo de Clubes) que consideram hoje, mais populares que as seleções nacionais de futebol.

Em última instância, a criação de uma nova Copa do Mundo de Futebol tenderá disputar espaço e popularidade com as ligas nacionais e até as copas continentais.

Vale lembrar que grande parte da corrupção no futebol que veio à tona recentemente, envolvia exatamente a Fifa, os direitos de comercialização da transmissão de alguns campeonatos e agentes financeiros instalados em paraísos fiscais (offshore). Tudo em nome dos prestígios conferidos pelas torcidas que pelo amor aos clubes fecham os olhos para os bastidores da ampliação da financeirização do futebol.

segunda-feira, dezembro 09, 2019

O golpe no Brasil extinguiu o Fundo Soberano que na Noruega é agora tido como exemplo

Observando a matéria do jornalista Rodrigo Polito, hoje (9/12/19, p. A2) no ValorFundo norueguês de US$ 1,5 tri pode servir de inspiração para o Brasil” é possível fazer vários comentários. Vamos a alguns.

No meu livro "A indústria dos fundos financeiros: potência, estratégias e mobilidade no capitalismo contemporâneo", eu tratei (entre as páginas 135 e 150) dos fundos soberanos e da relação entre eles, outros fundos e os principais agentes do circuito financeiro global.

O Fundo de Riqueza Soberana (FRS) é um instrumento financeiro adotado por alguns estados nacionais para administrar seus excedentes econômicos, em especial aqueles oriundos da extração de riquezas minerais, entre eles o petróleo.

No texto eu apresentei um quadro com os maiores fundos soberanos do mundo que já era liderado por este fundo norueguês, o SPU, que em 2016 possuía um volume de ativos de US$ 824 bilhões, e agora, em 2019, já chega a US$ 1,1 trilhão.

Em 2014, o SPU possuía US$ 5,1 bilhões em ativos distribuídos em 147 empresa no Brasil, enquanto a matéria do Valor, registra que agora, em 2019, o fundo soberano norueguês possui no país ativos de US$ 6,2 bilhões, distribuídos entre 120 empresas (incluindo 1,1% da Vale; 0,83% da Petrobras e 0,97% do Bradesco entre outras), além de US$ 2,8 bilhões em títulos de dívidas.

O fato serve para reforçar a necessidade de se observar o movimento dos fundos financeiros (soberanos ou privados) sobre as diferentes frações do capital (setores econômicos), em diferentes nações (espaços) em todo o mundo, como parte da estratégias dos donos do dinheiro, no capitalismo contemporâneo, como uma espécie de "capitalismo de fundos".

A reportagem serve ainda para relembrar porque o Brasil, que prevê estar daqui a uma década exportando 3,5 milhões de barris de petróleo, em 2016, logo após o impeachment que afastou a presidenta Dilma Roussef da Presidência da República, decidiu pela extinção do Fundo Soberano do Brasil (FSB) - que já possuía um patrimônio de R$ 26,7 bilhões, 80% aplicados nas contas do Tesouro - transferindo esse valor para os bancos que possuíam títulos da dívida pública do Brasil que somavam R$ 3,55 trilhões.

O FSB havia sido instituído pela Lei Nº 11.887/08 com recursos oriundos da extração/produção de petróleo e teria como finalidade o aporte de recursos em Educação, Saúde e Ciência e Tecnologia. Esse dinheiro entregue aos bancos para pagar uma parte irrisória da dívida pública brasileira (0,7%) poderia ainda ser utilizado em parte para capitalizar a Petrobras, evitando assim o seu desmonte e privatização, no período de baixa de preços do barril de petróleo dentro do ciclo petro-econômico.

Em síntese, se tem a riqueza nacional sendo drenada para agentes privados dentro e fora do Brasil, através do imbricamento com outros fundos financeiros globais que hoje controlam o Brasil.

Por tudo isso, vale observar as diferenças em termos de políticas públicas de um Estado a serviço da nação e sua população e o que é feito para agradar apenas os agentes do setor financeiro que define e explica o papel do dinheiro na compra do verbo da mídia comercial e na política estabelecendo na prática, a plutocracia atual, com um governo dos ricos e para os ricos.

domingo, dezembro 08, 2019

Divulgação acadêmica do artigo: "Os Circuitos Espaciais de Produção do Petróleo no ERJ e SP: Formação e Integração da Megarregião Rio-SP"

Utilizo o espaço para divulgar a publicação na revista GEOgraphia, do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFF, de um artigo em que divido a autoria com o professor Floriano Godinho de Oliveira, cujo título é: "Os Circuitos Espaciais de Produção do Petróleo no Rio de Janeiro e São Paulo: Formação e Integração da Megarregião Rio-SP."

Trata-se de uma análise sobre como essa fração do capital (petróleo), ao longo destas últimas décadas, foi se constituindo num elemento que contribuiu para o processo de metropolização e formação desta megarregião no sudeste brasileiro.

Como o assunto é bastante estudado por outros pesquisadores, resolvemos divulgar mais amplamente o acesso ao artigo, também com o objetivo de ampliar as trocas e os debates sobre o tema que perpassa nosso campo de pesquisa "Espaço e Economia".

Além do texto do artigo, chamamos ainda a atenção para dois anexos cujos links estão disponíveis na rede:
Anexo 1 – Com 14 quadros em 17 páginas.
Anexo 2 – Álbum com 57 imagens dos 10 polos operacionais de O&G CEPR/MR Rio-SP.

O acesso ao artigo e o download do mesmo pode ser obtido no link:

Abaixo disponibilizo o Mapa do Circuito Espacial do Petróleo e dos Royalties da Megarregião Rio-SP que é a Figura 4 do artigo, p.12.






sábado, dezembro 07, 2019

inDriver é alternativa ou aprofundamento do capitalismo de plataformas?

Já está no ar o aplicativo “inDriver” que faculta a quem precisa de transportes, um esquema de oferta (ou leilão) em tempo real, no qual o passageiro coloca o valor que está disposto a pagar pela viagem e a proposta será aceita ou não pelo motorista, que está disposto a fazer a viagem pelo valor proposto.

Aqui neste link é possível acessar às informações sobre esta nova plataformas de serviços de transportes e ao lado é possível ver a propaganda do aplicativo nas redes digitais no Brasil

O aplicativo começou a funcionar na fria cidade russa Yakutsk localizada na Sibéria em 2012.  Em 2013, a ideia foi incorporada pelo grupo russo Sinet. 

Entre 2017 e 2018 já eram mais de 120 cidades russas atendidas entre outras do leste asiático. Em 2018, a empresa se expandiu para a América Central e em dezembro chegou à João Pessoa no Brasil e segue se espalhando.

O aplicativo informa que hoje já estaria presente em 28 países, mais de 300 cidades e 38 milhões de pessoas já estariam usando o aplicativo pelo mundo.

O aplicativo se apresenta como uma alternativa ao Uber, 99, Cabify e outros que cobram entre 9% e 30% de taxa aos motoristas.

Ainda não sei precisar se seria exatamente uma alternativa ao esquema de transportes destas plataformas digitais hoje comandadas, em sua quase totalidade, por fundos financeiros, num esquema de capitalismo de plataformas digitais, quando inovações e recursos digitais conectam indivíduos a esquemas financeiros de pagamentos e transações online e assim espremem e sugam – como vampiros - a renda de quem efetivamente trabalha.

Desconfio que o risco é enorme para um maior esgarçamento da renda do motorista-trabalhador.
Se de um lado o aplicativo pode ser uma real alternativa para fugir das altas taxas dos donos das plataformas, de outro pode ser uma forma também perversa de espremer ainda mais a renda do real trabalhador do setor de transportes num processo de precarização mais intensiva.

A postagem visa também solicitar que eventuais usuários e motoristas deste “esquema de leilões de ofertas de transportes”, para que possam relatar suas experiências reais sobre este leilão de preços por transportes.

Será ainda interessante observar lobies que os gestores do Uber e outras plataformas possam fazer, para reagir de forma similar, ao que antes fizeram os motoristas de táxis. A conferir!

Verba & verbo em relação explícita!

Seguindo uma tendência mundial, o setor bancário e financeiro está deixando de comprar a pauta e o conteúdo das notícias para adquirir logo a empresa de mídia.

No Brasil, o banco BTG Pactual arrematou, em leilão judicial nesta semana, por R$ 72,3 milhões, a revista Exame.

Nesse caso é uma mídia já do setor financeiro, em outros casos, como a Globo, a corporação já fatura mais com investimentos financeiros do que com o seu negócio de informação.

No início deste ano, o Grupo Abril, dono da revista Veja entre outros, que foi da família Civita foi adquirida pelo fundo de investimentos, Cavalry Investimentos, de propriedade do empresário Fábio Carvalho.

O fato é que essa conexão estreita não pode mais ser considerada uma hipótese e sim uma relação biunívoca e de dependência.

Uma relação explícita entre verba & verbo.

segunda-feira, dezembro 02, 2019

"Os EUA são o maior refúgio para dinheiro sujo do mundo" diz editor do Financial Times

"Os EUA são o maior refúgio para dinheiro sujo do mundo". A afirmação é de Edward Luce, editor e colunista do Financial Times, tradicional e centenário jornal inglês, que trabalha com ênfase especial em negócios e notícias econômicas sobre o capitalismo mundial.

O texto original foi publicado aqui no Financial Times, no último dia 28 de novembro de 2019, com o título How money laundering is poisoning American democracy, foi traduzido e republicado no dia seguinte (29/11/2019), aqui, pelo jornal Valor (P. A19) com o título: "Uma ameaça à democracia americana - Os EUA são o maior refúgio para dinheiro sujo do mundo".

É um artigo que merece ser lido para quem insiste no moralismo colonizado que interpreta que o Brasil seria o pária da maior corrupção e lavagem de dinheiro do mundo, sem sem querer observar o que se passa no capitalismo central entre os EUA e Reino Unido de forma mais especial. Vou repetir o que disse Edward Luce: "os EUA são o maior refúgio para dinheiro sujo no mundo". Em outras palavras, os EUA é a maior lavanderia de dinheiro sujo no mundo. 

Imagino que você que comprou a ideia vendida pela mídia comercial tupiniquim de que o Ministério Público dos EUA ajudava a justiça brasileira a moralizar a política, como não deve se sentir vendo isto sendo falado e sustentado, não por alguém de esquerda, mas por um dos editores do Financial Times.
















Luce diz mais: "Seus fluxos de dinheiro ilícito superam de longe os de qualquer outro território, a não ser que considere o Reino Unido e seus paraísos fiscais marítimos como apenas um. O tesouro dos EUA estima que US$ 300 bilhões são lavados no país no país a cada ano. Isso é apenas uma fração do número real. Ainda pior, o governo dos EUA não tem ideia de quem controla as empresas que canalizam o dinheiro, porque o país carece de um registro central de pessoas jurídicas". 

Luce afirma também que "os bancos não relatam atividades suspeitas e muito menos as bancas de advocacia, as firma imobiliárias, negociantes de artes, empresas incorporadoras e instituições financeiras não bancárias".

Os EUA de Trump não têm o que oferecer ao Brasil: tarifaço é só mais um exemplo!

Os EUA de hoje não têm nada a oferecer, muito menos, a quem se subjuga em dependência assumida após golpe. Isso explica o novo tarifaço de Trump contra as exportações do aço do Brasil divulgado hoje. Ver aqui.

Enquanto isso, a China nos últimos anos emprestou mais recursos que o FMI e o Banco Mundial juntos em mais de 100 países, segundo o estudo "China´s Overseas Lending" sobre movimentação financeira entre países. (Acesse aqui o estudo)

A China tinha em 2018, um volume de US$ 5 trilhões (6% do PIB mundial) em créditos e títulos soberanos, volume que é dez vezes maior do que em 2000.

São empréstimos comerciais em sua maioria, muitas vezes com pagamento exigido em commodities, com prazos longos e taxas de juros abaixo do mercado. Não são bonzinhos, mas enxergam objetivos diversos dos EUA que também tem parte dos títulos do seu tesouro nas mãos dos chineses.

O desgoverno do Brasil foi à China, e mesmo com a desconfiança destes, voltou com várias propostas de acordos comerciais e financiamentos em infraestrutura.

Já os EUA quer apertar o cinto no pescoço de quem aceitou ser golpeado e controlado. Submissão é isso, o resto é conversa para boi dormir.

domingo, dezembro 01, 2019

Brasil vive maior fuga de investimentos na Bolsa em 15 anos - 50% maior do que na crise financeira global de 2008

Já se falou bastante sobre a saída de investimentos estrangeiros do Brasil nos últimos meses, em especial na Bolsa de Valores (B3). Porém, parece que a dimensão do fato ainda não foi bem absorvida e suas consequências compreendidas. Creio que o fato possa estar relacionado à invisibilidade que estas questões financeiras possuem na sociedade de uma forma geral.

O mercado financeiro na semana passada trabalhava com a previsão de que este ano (estamos no último mês) aconteça a maior fuga de capitais da Bolsa dos últimos 15 anos. Só em novembro a saída foi superior a R$ 7,72 bilhões. 

Já em todo o ano de 2019 a saída de recursos financeiros são superiores a R$ 38 bilhões, volume que supera em mais de 50%, a fuga de capital, na crise financeira mundial de 2008, quando nos primeiros onze meses a saída neste segmento alcançou 24,2 bilhões no Brasil. Isso mesmo a fuga atual é 50% superior à de 2008.
A saída de recursos no mercado de ações ainda estão compensadas, em parte, com a entrada em outros segmentos, entre eles os fundos de investimentos em ações, mas ainda assim, o déficit geral é colossal, o maior desde 2004.
Essa aversão dos investidores estrangeiros ao mercado de ações no Brasil é um fato é revelador do contrário daquilo que estimava e vendia a equipe econômica do governo. Talvez, isso explique as ameaças de ditadura do Paulo Guedes. 

Os dados da movimentação da Bolsa com crescimentos acima dos 100 mil pontos parecem reproduzir algo distante da realidade que também pode estar inflando o dólar para além das consequências da fala do ministro. O quadro pode ser ainda mais preocupante se forem observados outros fatos mundo afora. Vale conferir!