A ESQUERDA E O
GOVERNO: suas ideias e lições históricas
José Luís Fiori
Entre 1922 e 1926, Leon Blum desenvolveu uma distinção
conceitual entre a “conquista do poder” e o “exercício do poder”. A
“conquista do poder” era uma ideia revolucionária embora não fosse
necessariamente um ato violento, que levaria a uma nova ordem social baseada em
novas relações de propriedade[ASG1] [..] E o segundo
conceito - de “exercício do poder” – funcionaria como uma justificação
teórica para quando o Partido Socialista Francês fosse obrigado a governar,
antes que as condições da conquista do poder estivessem maduras”
D. Sassoon, “One Hundred
Years of Socialism”, Fontana Press, London, 1997, p. 53
Ao
começar a terceira década do século XXI, a esquerda e as forças progressistas da
América Latina estão sendo chamadas para governar o México e a Argentina, e o
mesmo deve acontecer no Chile e na Bolívia, depois de suas eleições
presidenciais de 2020. E não é impossível que isto se repita no Brasil, e até
mesmo na Colômbia, depois de 2022. Num momento em que cresce em todo o
continente latino-americano – menos no Brasil, por enquanto – a consciência de que as políticas neoliberais não
conseguem atender à necessidade de um crescimento econômico acelerado, nem
muito menos a urgência da eliminação da miséria e da diminuição da desigualdade
social. Mas em um momento em que também cresce a consciência de que o velho modelo
nacional-desenvolvimentista esgotou seu potencial, depois de completar a agenda
da Segunda Revolução Industrial, e depois perder o apoio norte-americano, no final
dos anos 70.
Mesmo
no caso do “social-desenvolvimentismo” do governo Lula, que teve um grande
sucesso econômico e social em seus primeiros dez anos, discute-se ainda hoje
por que ele não conseguiu dar uma resposta adequada à desaceleração da economia
mundial, à perda do seu apoio empresarial e ao boicote parlamentar que sofreu das
forças conservadoras. Muitos ainda pensam que tudo foi consequência de algum
“erro” de política econômica, quando de fato o governo foi surpreendido por uma
grande mutação sociológica interna, promovida por suas próprias políticas, e
por um “tufão” geopolítico e geoeconômico internacional que colocou o Brasil de
joelhos, numa “bifurcação histórica” em que as fórmulas e soluções tradicionais
já não funcionam mais.
Nesse
momento, para não perder a luta pelo futuro, é fundamental que a esquerda
releia e repense sua própria história, em particular a história de sua relação
com o governo, e com a dificuldade de governar e reformar – a um só tempo – uma
economia capitalista periférica e extremamente desigual.[ASG2] .
O problema da
“gestão socialista” do capitalismo só se colocou efetivamente para os partidos socialistas
e comunistas europeus no momento em que foram chamados a participar, de forma
urgente e minoritária, nos governos de “unidade nacional” e nas “frentes
populares” que se formaram durante a Primeira Guerra Mundial e a crise
econômico-financeira de 1929/30.[1]
Duas situações “emergenciais” em que a esquerda abriu mão – pela primeira vez -–de
seus objetivos revolucionários para ajudar as forças conservadoras a
responderem a um desafio grave e imediato que ameaçava suas nações.
Naquele
momento, os principais problemas eram o desemprego massivo e a hiperinflação,
provocados pelo colapso das economias europeias, e os partidos de esquerda não
tinham nenhuma posição própria sobre este assunto, que não estava previsto,
literalmente, nos seus debates doutrinários do século XIX. Por isso, quando
foram chamados a ocupar posições de governo, e em alguns casos os próprios
ministérios econômicos, acabaram repetindo as mesmas ideias e políticas ortodoxas
praticadas pelos governos conservadores de antes da guerra. A notável exceção foram
os social-democratas suecos, que enfrentaram a crise de 30 com uma política
original e ousada de incentivo ao crescimento econômico e ao pleno emprego,
através das políticas anticíclicas propostas pela Escola de Estocolmo, de Johan
Wicksell.
Logo depois
da Segunda Guerra, ao conquistar o governo da Inglaterra e da Áustria, Bélgica,
Holanda e da própria Suécia, os trabalhistas ingleses e os governos
social-democratas desses pequenos países experimentaram, com grande sucesso, um
novo tipo de “pacto social” visando regular preços e salários, e um novo tipo
de planejamento econômico democrático, inspirado na própria experiência das
duas Grandes Guerras. Depois disso, já nos anos 50,
a esquerda europeia acabou formulando progressivamente as ideias básicas de
duas grandes estratégias fundamentais: a primeira e mais bem-sucedida, de
construção do “Estado de bem-estar social”, adotado por quase todos os partidos
e governos social-democratas e trabalhistas da Europa, nas décadas de 60 e 70;
e a segunda, associada mais diretamente aos comunistas franceses, que propunha
a construção de um “capitalismo organizado de Estado”, mas que foi muito pouco
utilizada pelos governos social-democratas daquele período, apesar de ter
exercido grande influência sobre a esquerda “nacional-desenvolvimentista”
latino-americana.
O programa
social-democrata de construção do “Estado de bem-estar social” combinava uma
política fiscal ativa do “tipo keynesiano”, com o objetivo do pleno emprego,
através da construção de sistemas de saúde, educação e proteção social públicos
e universais, junto com um forte investimento estatal em redes de
infraestrutura e de transporte público. Já o projeto do “capitalismo” propunha
a criação de um setor produtivo estatal que fosse estratégico e que liderasse o
desenvolvimento de uma economia nacional capitalista dinâmica e igualitária.
A partir dos
anos 80, mas sobretudo depois da “Queda do Muro de Berlim” e da crise do
comunismo internacional, os socialistas e social-democratas europeus aderiram à
grande “onda neoliberal” iniciada e difundida pelos países anglo-saxões. Nesse
período, a transição democrática e o neoliberalismo do governo socialista de
Felipe González transformaram-se numa espécie de um “show case” que teve
grande impacto sobre a esquerda mundial, e de maneira particular, sobre a
esquerda latino-americana. Muito mais do que a “deserção keynesiana” do governo
de François Mitterrand, com seu estatismo mitigado e “gaullismo europeizado”.
González foi eleito com um programa clássico de governo de tipo keynesiano, com
um plano negociado de estabilização e crescimento econômico voltado para o
pleno emprego e para a diminuição da desigualdade social. Mas logo no início do
seu governo, assim como Mitterrand, González abandonou sua política econômica
inicial e seu projeto de “Estado de bem-estar social”, trocando a ideia de um
“pacto social” pela ortodoxia fiscal e o desemprego, como forma de controlar
preços e salários, e abandonando completamente a ideia de utilização e
fortalecimento do setor produtivo estatal espanhol, que vinha do período
franquista e era bastante expressiva.
No final do
século XX, entretanto, já havia ficado claro que as novas políticas e reformas
neoliberais tinham diminuído a participação dos salários na renda nacional,
restringido e condicionado os gastos sociais, acabado com a segurança do
trabalhador e promovido um aumento gigantesco do desemprego, sobretudo no caso
espanhol. Com o passar do tempo, foi ficando claro que as novas políticas tinham
um viés fortemente “pró-capital”, como no caso das políticas anteriores, mas não
produziam os mesmos resultados favoráveis aos trabalhadores, como foi o caso do
“Estado de bem-estar social” e do pleno emprego do ”período keynesiano”. Como
consequência, a esquerda europeia sofreu sucessivas derrotas eleitorais e
acabou perdendo inteiramente sua própria identidade, ao contribuir para a
destruição de sua principal obra, que havia sido o “Estado de bem-estar
social”. Culminou com o caso dramático da vitória e humilhação sucessiva, pela
União Europeia, do governo de esquerda de Alexis Tsipas, na Grécia, em 2015.
Dali para a frente, o que se assistiu foi um avanço generalizado das forças de
direita e uma verdadeira “ressaca progressista” que só começou a se dissipar
recentemente, com a vitória eleitoral e a formação dos governos de esquerda em
Portugal e na Espanha, apesar de ainda não se ter uma perspectiva bem clara
sobre o seu futuro nesta terceira década do século XXI.
Na América
Latina, a história da esquerda e de sua experiência governamental seguiu uma
trajetória diferente da Europa, mas sofreu grande influência das ideias e
estratégias discutidas e seguidas pelos europeus. De forma muito sintética,
pode-se afirmar que tudo começou com a proposta revolucionária do Plano Ayala, apresentado
em 1911 pelo líder camponês da Revolução Mexicana, Emiliano Zapata. Zapata
propunha a coletivização da propriedade da terra e sua devolução à comunidade
dos índios e camponeses mexicanos. Zapata foi derrotado e morto, mas seu
programa agrário foi retomado alguns anos depois, pelo presidente Lázaro
Cárdenas, um militar nacionalista que governou o México entre 1936 e 1940 e
criou o Partido Revolucionário Institucional (PRI), que governou o país durante
quase todo o século XX. O governo de Cárdenas fez a reforma agrária, estatizou
as empresas estrangeiras produtoras de petróleo, criou os primeiros bancos
estatais de desenvolvimento industrial e de comércio exterior da América
Latina, investiu em infraestrutura, fez políticas de industrialização e
proteção do mercado interno mexicano, criou uma legislação trabalhista, tomou
medidas de proteção social dos trabalhadores e exercitou uma política externa
independente e anti-imperialista.
O fundamental
dessa história, no entanto, para a esquerda latino-americana, é que esse
programa de políticas públicas do governo de Cárdenas se transformou, depois
dele, numa espécie de denominador comum de vários governos latino-americanos – “nacional-populares” ou
“nacional-desenvolvimentistas” – como foi o
caso de Perón, na Argentina; de Vargas, no Brasil; de Velasco Ibarra, no
Equador; e de Paz Estensoro, na Bolívia. Nenhum deles era socialista, comunista
ou social-democrata, nem mesmo era de esquerda, mas suas propostas políticas e
posições no campo da política externa se transformaram numa espécie de
paradigma básico que acabou sendo adotado e apoiado por quase toda a esquerda
reformista latino-americana, pelo menos até 1980.
Em grandes
linhas, foram esses mesmos ideais e objetivos que inspiraram a revolução
camponesa boliviana de 1952; o governo democrático de Jacobo Arbenz, na
Guatemala, entre 1951 e 1954; a primeira fase da revolução cubana, entre 1959 e
1962; o governo militar reformista do general Velasco Alvarado, no Peru, entre
1968 e 1975; e o próprio governo de Salvador Allende, no Chile, entre 1970 e
1973. No caso de Cuba, entretanto, a invasão de 1961 e as sanções americanas
apressaram a opção socialista, que levou o governo de Fidel Castro à
coletivização da terra e a estatização e planejamento central da economia. O mesmo
modelo que orientaria, mais tarde, a primeira fase da revolução sandinista da
Nicarágua, de 1979, e o próprio “socialismo do século XXI”, proposto pelo
ex-presidente da Venezuela, Hugo Chávez que voltou a despertar a ira dos
Estados Unidos e acabou transformando a Venezuela no segundo país da América
Latina a desafiar a Doutrina Monroe. (CONTINUA)
28 de janeiro de 2020
[1]
Este artigo reedita, atualiza e desenvolve informações e ideias que apareceram
no texto “Olhando para a esquerda latino-americana”, publicado em Diniz, E.
(Org). Globalização, Estados e Desenvolvimento, FGV Editora, Rio de
Janeiro, 2007.