Para quem vem acompanhando o protagonismo do comando militar dos generais haitianos no Palácio do Planalto e o desenvolvimento do seu projeto de poder de longo prazo, vale conferir este interessante artigo do Observatório da Defesa e Soberania, vinculado ao
GEDES (Grupo de Estudos de Defesa e Segurança) da Unesp.
O artigo tem como autores os pesquisadores Ana Penido, Jorge M. Rodrigues e Suzeley Kalil Mathias, todos do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) da Unesp.
O texto traz dados sobre a gênese desse movimento dos generais, desde as participações nos governos anteriores, a missão no Haiti e faz ainda um resgate sobre as intervenções mais recentes na política do Brasil, desde o impeachment (golpe parlamentar-midiático-jurídico-militar), às pressões sobre o STF visando as eleições de 2018, a escolha de Bolsonaro como seu primeiro instrumento para chegada ao poder pela via institucional, aproveitando uma conjuntura de oportunidades e como melhor opção ao golpe militar tradicional.
O Partido Militar trata-se de um projeto de poder político de longo prazo que o texto delineia de uma forma com relativamente precisão, ao citar a "subordinação automática e auto-imposta aos EUA, estes preocupados com a geopolítica energética" e também a "forte ligação entre Bolsonaro e as milícias armadas".
É um texto longo, mas com um interessante resgate histórico, além de leitura que se aproxima até a presente conjuntura da crise do Coronavírus, em que os "militares enxergam como uma janelas de oportunidades que se apresenta". Vale a leitura.
As Forças Armadas no governo Bolsonaro
Instituto Tricontinental de Pesquisa Social
Observatório da Defesa e Soberania – 14 de abril de 2020
Por Ana Penido*, Jorge M. Rodrigues** e Suzeley Kalil Mathias***
“Quem chega ao principado com a ajuda dos grandes mantém-se com mais dificuldade do que o que se torna príncipe com a ajuda do povo, porque o primeiro se vê cercado de muitos que parecem ser seus iguais, não podendo, por isso, comandá-los nem manejá-los a seu modo.” Maquiavel
Antes de mais nada é preciso dizer que este é um texto escrito no calor dos acontecimentos. Isso significa que, diferente de formulações que podem contar com o distanciamento histórico, ou de escritos que focam no debate teórico, este texto é escrito conforme o desenrolar dos fatos. Se essa característica, por um lado, dificulta a leitura de fundo sobre alguns fenômenos que ainda se desvelam, por outro, permite o exercício mais detalhado do acompanhamento de movimentações das forças militares. Se há dias que valem por anos, as ações políticas de militares que ocorrem desde o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff ajudam a compreender melhor aspirações e ressentimentos da corporação, que talvez tenham ficado mais de uma década sob névoa, assim como a fragilidade do controle político sobre as Forças Armadas (FFAA).
Comportamento militar nos governos petistas
Após um período de relativa estabilidade durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011), as relações civis-militares experimentaram um período de deterioração. Cabe salientar que a estabilidade ocorreu em virtude das ações das FFAA e dos civis na condução política, que mantinham certa equidistância. Em outras palavras, especialmente durante o governo Lula, as FFAA mantiveram-se mais restritas a participar politicamente apenas nas questões que, no entendimento delas, traziam dilemas para a segurança nacional. Apesar das Forças Armadas terem uma doutrina bastante ampla sobre as questões que consideram de segurança nacional, essa amplitude é escalonada ao adotarem comportamentos ativos, reativos ou neutros a depender da situação. Os debates em torno da segurança pública,
demarcação de terras indígenas e nas políticas da área de Defesa são alguns exemplos de momentos que contaram com a participação das FFAA. Por outro lado,
o petista não adotou medidas que confrontassem a corporação. Em momentos de tensão,
a autonomia prevaleceu, como na demissão de José Viegas, primeiro ministro da Defesa de Lula, que não teve apoio do presidente no exercício de sua autoridade frente ao então comandante do Exército,
que permaneceu no cargo. O episódio deixa entrever que, diante das inúmeras necessidades de mudanças que exigiam o capital político do presidente, a área de defesa não seria a prioridade, como também não testaria a subordinação das FFAA ao poder civil, talvez por considerar que a própria posse de um operário eleito pelo voto popular já fosse prova suficiente da consolidação da Democracia.
Durante esse período, embora com pouca participação da sociedade civil ou mesmo da comunidade intelectual da área, houve pontos positivos, como a elaboração da Política Nacional de Defesa, da Estratégia Nacional de Defesa e do Livro Branco de Defesa nacional, três documentos capazes de definir e elucidar um pouco melhor o tema no Brasil e as
pretensões do país para os seus vizinhos. Nesses documentos, um saldo doutrinário importante foi o conceito de dissuasão, ao esclarecer a tarefa externa a que os militares devem se dedicar e o consequente fortalecimento do poder civil. Como ponto negativo, destaca-se, em conflito com a doutrina, o crescimento expressivo do emprego das Forças Armadas em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO),
retomando a ideia de inimigo interno e estabelecendo um conceito de dissuasão ‘para dentro’, o que implica na existência, no caso anterior, de dissuasão ‘para fora’.
A deterioração das relações com as FFAA se aprofundou paulatinamente no governo de Dilma Rousseff (2011-2016). Segundo o General Etchegoyen, durante palestra em 2019 no Instituto FHC, os militares entraram em rota de choque com Dilma por questões objetivas e subjetivas. Como questões objetivas, ele cita a
Comissão Nacional da Verdade, a troca do ministro
Nelson Jobim por Jacques Wagner e o decreto 8515/15, que subordinava a promoção dos generais ao Ministério da Defesa,
assinado por Wagner. O rebaixamento do Gabinete de Segurança Institucional (2015) também pode ser destacado enquanto fonte de tensão, uma vez que se trata de um órgão de notório prestígio historicamente ocupado pelas FFAA. Quanto às questões subjetivas, o general foi pouco claro ao dizer que a presidenta afrontava valores da classe média da qual os militares fazem parte. Pode-se inferir que ele se refere a uma visão de mundo expressa na Doutrina de Segurança Nacional, em que políticos de esquerda são considerados populistas, carentes de iniciativa e entusiastas de medidas que provocam polarização ideológica, consideradas por eles disfuncionais ao país. Soma-se a isso o forte machismo, marca indelével dos quartéis brasileiros. Assim, ter uma comandante-em-chefe mulher e ex-guerrilheira, provavelmente foi entendido como uma afronta aos valores castrenses.
Durante o rito processual do golpe, as FFAA mantiveram majoritariamente seu papel institucional. Afirma-se ‘majoritariamente’ e não totalmente, pois a anuência é uma forma de ação perceptível como, por exemplo, a não reação do general Villas Boas aos diversos pronunciamentos críticos à comandante em chefe da nação feitos por militares ainda na ativa, como o atual vice-presidente Hamilton Mourão. Entretanto, o desenrolar das ações dos militares a posteriori, em particular sua postura de fiadores do governo de Michel Temer, deixam dúvida se havia apenas um desejo individual com movimentações golpistas no seio da tropa, ou ainda se ocorreu algum envolvimento extra oficial mais coletivo. Comparado ao processo de impeachment de Fernando Collor de Mello, destituído em 1992, a inação dos comandos militares frente ao processo de Dilma parece mais explicitamente favorável à sua saída do governo.
O governo Temer e o protagonismo sorrateiro
Desde o início do governo Temer (2016-2019), as FFAA colocaram-se como
fiadoras da sua legitimidade especialmente em duas dimensões. A primeira, sob demanda delas, Temer recriou o
Gabinete de Segurança Institucional e entregou o órgão ao influente Sérgio Etchegoyen, que passou a coordenar o Sistema de Inteligência Nacional, reestruturado por decreto (8793/2016) do presidente. A segunda questão relevante foi o emprego massivo da GLO, seja diante dos protestos sociais que ocorreram fortemente durante todo o período do governo, com pautas e ações variadas, seja utilizando a violência urbana como justificativa, como na intervenção federal no Rio de Janeiro e na crise desencadeada pela
greve dos caminhoneiros. Cabe pontuar que Temer aprovou a Lei nº13.491/17, que estabelece que os crimes de morte cometidos por militares contra civis nas operações GLO sejam julgados pelos tribunais militares e não civis.
Não é de se espantar no governo Temer uma postura tutelar das FFAA diante do Estado brasileiro. Uma vez extinto o regime militar, basicamente a tutela política constitui a forma de controle indireto do poder de Estado pelas FFAA. Substitui o exercício direto do poder político pelo controle indireto daqueles que legalmente o exercem, quase numa atitude paternal diante do sujeito tutelado, considerado incapaz de ser responsável pelos seus atos. Há duas interpretações clássicas que derivam
desse comportamento. A primeira pressupõe que as FFAA intervenham de maneira cirúrgica e esporádica, porém contundente, diante de situações de crise ampla. Após sanear a situação, as FFAA devolveriam o poder aos civis. A segunda interpretação parte da ideia de que quando as FFAA têm força suficiente para intervir, elas não devolvem o poder que conquistaram, o que culmina na instalação de um governo ditatorial ou autoritário militarizado.
O termo tutela também apresenta outra conotação: os militares se consideram melhores preparados para pensar estrategicamente que os demais grupos, e por isso capazes de tutelar as decisões. Nesse sentido, as Forças Armadas não são um poder moderador, muito menos neutro, para casos de crise. Os militares têm consciência da postura civil de tentar utilizá-los a serviço da facção no poder ou de suas oposições. Ao mesmo tempo, o estrato castrense tem seus interesses corporativos, como formular uma doutrina compatível com a importância que atribuem a si mesmos. Eventualmente os dois interesses convergem, como no fim do governo Dilma.
O governo Temer foi marcado por uma postura intermediária entre as duas posições. O Exército brasileiro, comandado pelo general Villas Boas, não deu um golpe, mas manteve as instituições sob pressão contínua, inclusive inovando ao se utilizar de tuíteres – em especial na véspera do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do
Habeas Corpus de Lula. O próprio Alto Comando reconhece esse comportamento tutelar e tenta
desconstruí-lo continuamente em declarações públicas. Nesse sentido, embora as FFAA sempre afirmassem que suas ações estavam pautadas pela estabilidade, legalidade e legitimidade, foram elas próprias que definiram os limites desses
três conceitos. E o fizeram, isto é, definiram tais limites, ao longo de todo o processo de transição (1979-1990) e dos governos democráticos (1990-atual). Pode-se inclusive dizer que definiram o próprio entendimento de democracia, pois em nenhum momento se intimidaram quando autoridades
reagiram ao esgarçamento das regras, como no próprio caso do tuíter mencionado anteriormente.
Devido a esse protagonismo imediato, há de se acreditar que houve sim um grupo de militares que conspirou sorrateiramente pelo golpe, ainda que as três Forças institucionalmente tenham passado quase ao largo disso. Entretanto, isso não significa que o golpe tenha sido fruto de uma conspiração militar, mas um trabalho de, no mínimo, três grupos com objetivos diferentes que se articularam paralelamente, mas em um determinado momento se unificam e derrubam Dilma Rousseff. A primeira e a mais óbvia é a conspiração dos políticos, capitaneada por Aécio Neves, que desde sua derrota eleitoral adotou um comportamento golpista, e a quem se somaram Temer, Romero Jucá, Eduardo Cunha e outros, cujo objetivo era trocar o grupo político que dominava o poder Executivo. A segunda conspiração, que passa a ficar mais clara com o governo Bolsonaro e com a venda massiva de empresas brasileiras aos Estados Unidos, em evidente disputa geopolítica com a China, foi
protagonizada pela Lava Jato e setores do Poder Judiciário,
sob os auspícios dos EUA. A terceira conspiração, a mais antiga entre elas, foi a de setores militares, com ressentimentos que datam da criação da Nova República, mas que foram ampliados e se tornaram
força golpista com a Comissão da Verdade. Esse desejo de protagonismo das FFAA não foi explícito, por isso chamamos esse comportamento de protagonismo sorrateiro26.
O principal sentimento militar transformado em discurso e utilizado para encobrir o desejo de protagonismo foi a suposta formação de bons quadros técnicos pelas FFAA, continuamente mal aproveitado pelos governos, em virtude da permanência de uma mágoa na liderança civil sobre o que ocorreu durante a ditadura militar. Esse é um sentimento real que muitas vezes coloca os militares até mesmo como
vítimas de uma revanche civil.
As últimas eleições que elegeram Jair Bolsonaro à presidência da República não foram marcadas pela técnica ou pelo debate entre programas, mas profundamente por diferenças ideológicas, com forte recorte religioso e uso massivo de notícias falsas, e que contaram com um protagonismo ativo das FFAA. O episódio que talvez tenha maior relevo por ser público e institucional foi a sabatina feita por Villas Bôas aos
candidatos à presidência. Não há notícias de outros grupos de servidores públicos do Estado que tenham o mesmo comportamento, típico de corporações e organizações privadas.
O governo Bolsonaro e o partido militar
Se é verdade que as FFAA se utilizam da tutela para se posicionar politicamente, ao mesmo tempo essa postura exige certo distanciamento das decisões rotineiras, de maneira a influenciar o jogo, mas apresentando-se moral e intelectualmente superior diante dos demais jogadores. Portanto, são evitadas ações cotidianas que geram desgaste político existentes em todos os governos, e o jogador em função tutelar aparece apenas em momentos decisivos. Pelo seu desejo de protagonismo, pelo grande número de militares no governo, assim como pela convicção da “necessidade conjuntural” desse tipo de intervenção para estabilizar e reorganizar uma hegemonia da qual fazem parte, as FFAA continuam a exercer as ações sorrateiras, mas de maneira cada vez mais protagonista, formando um dos grupos que desde o início sustenta o presidente Bolsonaro. O maior exemplo dessa nova postura é o general
Augusto Heleno. Militares em geral são discretos, mas quando Heleno sobe em um palanque de uma manifestação, ainda que lá embaixo estejam misturados vários recrutas com as mesmas opiniões dos manifestantes, e mesmo que ele não esteja mais na ativa, a instituição Exército fica exposta.
Desde o período da transição do governo Temer para o governo Bolsonaro, as FFAA ocuparam 8 ministérios e cargos chave em diversas secretarias, com um número significativo de militares ainda na ativa. Os generais levaram consigo um enorme contingente de coronéis e majores, nomeando mais de 100 pessoas e adotando o princípio de
ocupação em massa do Palácio do Planalto. Além do discurso da técnica, também se mostravam como uma força moralizante e capaz de combater a corrupção no Executivo. Nas palavras de Etchegoyen, Bolsonaro decidiu usar o know how militar. Em outros termos, viraram o
‘Posto Ipiranga’ em várias frentes. Porém, diversos generais rapidamente foram percebendo que as coisas não eram bem assim, como o caso de Jesus Correa,
afastado do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Tal afastamento não ocorre em virtude de divergências sobre a política de regularização fundiária ou do modelo produtivo do agronegócio, mas pela constatação prática de que a corrupção tem relação com o sistema político. ‘Combatê-la’ não é uma mera questão de vontade – muito menos tendo à frente Jair Bolsonaro.
Um ponto importante para pensar os militares no governo é a hierarquia. Dentro das FFAA, por exemplo, um general quatro estrelas manda nos demais, bem como nas demais forças de segurança, como policiais e bombeiros. Da mesma forma, dentro de cada patente ou posto, o mais antigo (aquele que chegou no posto a mais tempo) e mais graduado (aquele que, sendo da mesma turma, atingiu as melhores notas), é considerado superior diante dos semelhantes. Sob esta lógica, seria ‘antinatural’ que militares de patentes mais altas ficassem sob a coordenação de patentes mais baixas, como algumas vezes acaba ocorrendo ao assumirem cargos políticos ou burocráticos fora das FFAA. Essa relação é conduzida com contrariedades, da mesma forma em que há um desconforto com o fato da base bolsonarista tradicional estar predominantemente nas polícias, sendo que o primeiro escalão governamental é composto pelas FFAA.
Da vidraça às pedras
As FFAA não foram para o governo enquanto instituição. Porém, os militares no governo se mostraram um grupo bastante coeso e representativo dos interesses das Forças. O efeito direto e imediato disso foi a exposição da instituição, que se tornou alvo de diversos acontecimentos, como a apreensão de
cocaína no avião presidencial e os 80 tiros disparados pelo Exército em um
carro de família durante uma ronda na cidade do Rio de Janeiro. Tornaram-se, assim, vidraça, e, dessa maneira, se expuseram às pedras. Em contrapartida, a Aeronáutica e a Marinha, ainda que também estejam no governo, mantiveram um perfil mais discreto do que o Exército. Um dos efeitos dessa atuação foi o esvaziamento político do Ministério da Defesa, com cada Força levando adiante a sua própria política, mesmo considerando que o Ministério nunca tenha sido civilizanido36.
Vale ressaltar que os desdobramentos do último período provavelmente não eram o que as FFAA almejavam. Pelo seu comportamento no início do governo Bolsonaro, é possível pensar que elas desejavam exercer uma tutela direta sobre o presidente, tomando decisões concretas por meio do general Heleno, chefe do GSI, e do general Hamilton Mourão,
vice-presidente da República. É difícil afirmar em que termos ocorreu esse acordo entre o partido militar e Bolsonaro, mas alguns questionamentos podem ser levantados: eles teriam o poder de veto em algum tema? Levariam adiante o que desejassem implementar nas suas pastas e quem deteria o poder de veto seria Bolsonaro? Há uma combinação entre os dois grupos, com ações coordenadas de “morde e assopra” a depender do tema? Apesar das dúvidas, o que é possível apontar é que esse acordo já sofreu reformulações ao longo do
primeiro ano de governo.
Também é possível aventar que as FFAA tivessem o desejo de se afastarem das pautas negativas. Porém, considerando os grupos de apoio ao presidente eleito, e a personalidade de Bolsonaro, é algo praticamente impossível. Os militares tentaram se apresentar como os moderados no governo, em contraponto a uma “facção” radical com o núcleo Olavista, como Damares, Weinjtraub e Ernesto Araújo, responsáveis por executar um conjunto de manobras diversionistas enquanto o projeto de destruição nacional é levado adiante. De fato, no início do governo, aparentavam a voz da razão em alguns temas. Continuam buscando esse papel. Mas não foi possível sustentá-lo por muito tempo, e manifestações irritadas do general Heleno soaram com muito mais radicalidade para a população do que os conselhos sexuais da ministra Damares, com forte apoio popular. Nesse sentido, o
“Foda-se” de Heleno para o Congresso Nacional, uma manifestação de golpismo aberto, ocorre apenas num segundo momento, depois da linha do poder tutelar já ter sido cruzada há muito tempo, e a atuação do partido militar ter se tornado mais nítida.
Entretanto, o desenrolar do governo deixou claro que as FFAA não conquistaram a hegemonia do governo durante o primeiro ano, embora o tenham ocupado massivamente. O que sustentou o governo são suas medidas econômicas e argumentos extremistas que mantêm viva uma base reacionária, incluindo militares, em especial das baixas patentes, mas certamente não expressa as posições da instituição, algo facilmente verificável na postura das Forças Armadas sobre a Venezuela. Por outro lado, os militares emprestam a credibilidade da instituição ao governo, pois existe a ideia, pelo menos para parte da elite política (até mesmo à esquerda) de que eles têm a possibilidade de colocar limites às “loucuras” do Bolsonaro, tornando-se uma alternativa, caso o presidente seja afastado.
Pontos de comunhão
Para além das contradições entre FFAA e governo Bolsonaro, há diversos pontos de comunhão entre ambos. Um deles é o
revisionismo histórico. As FFAA sempre priorizaram a batalha das ideias, e viviam um sentimento de injustiça por terem ficado com a responsabilidade pelo regime autoritário (1964-1984). Em outros termos, consideram errada a forma como passaram para a História após terem ‘salvado a nação do comunismo e levado ordem e progresso ao país”. Essa luta pelas narrativas se expressa em cada vírgula e representa as FFAA em geral. Chega-se ao ponto de inventar tradições históricas, como a Batalha de Guararapes, apenas para se justificar como a instituição mais antiga do país.
Outra confluência entre as FFAA e Bolsonaro é a forte crítica ao identitarismo e outras pautas contemporâneas. Villas Bôas já expressou isso em algumas falas, mas como um todo, entendem que brancos e negros, homens e mulheres, homossexuais e heterossexuais, são divisões que atacam a identidade de povo brasileiro, formulação clássica da Doutrina de Segurança Nacional. Nesse sentido, há uma convergência com formulações dos neopentecostais no conservadorismo de costumes, base do governo Bolsonaro. Isso se expressa num sentimento difuso, de uma nostalgia de tempos passados e na ideia de “guardiões das tradições”. Para alguns, uma das maiores ameaças atuais às Forças Armadas é um hipotético crescimento do
homossexualismo nas suas fileiras. Nessa mesma lógica, questões complexas como drogas e violência entre adolescentes recebem respostas maquiadas nas escolas cívico-militares, por exemplo, por meio da qual as FFAA pretendem
regular a socialização civil.
Outro elemento comum é o discurso de defesa da pátria. A corporação acredita que tem como ‘destino manifesto’ salvar a nação. Esse ethos salvacionista é muito forte culturalmente, assim como a ideia de que eles representam o que há de mais puro na nação brasileira. Com isso, parte dos militares que vão para o governo não são necessariamente bolsonaristas, mas acreditam fazer uma “revolução” moralizante e modernizadora do país, corrigindo o rumo e ajustando coisas que julgam pertinentes pelos seus próprios parâmetros. Para outros, a intervenção militar de 1964 proporcionou a preservação e reorganização da democracia, na lógica do “golpe preventivo” ao comunismo.
Neste sentido, as FFAA também se encontram com outra base bolsonarista: o partido da Lava Jato e com a classe média alta. A aliança entre as FFAA e essa parcela do Judiciário parece ser mais
firme do que com o próprio presidente. Se não existem guerras reais, inventamos as nossas para combater o que são consideras disfuncionalidades do sistema; nesse caso, como em outros momentos da história, o ‘combate à corrupção’ atua como entrave para o avanço de tentativas progressistas no processo político nacional.
Ainda sobre o patriotismo, é preciso pontuar que, no Brasil, essa ideia sempre esteve associada ao um tipo de nacionalismo, próprio do campo simbólico, e é esse que se apresenta
no Bolsonaro e nas FFAA. Sob esse entendimento, a cessão do Centro Espacial de Alcântara não é uma medida antinacional. Assim, a noção de território assume contornos cartográficos, e não de espaço onde habita um povo.
Essa compreensão particular sobre patriotismo também é presente no pensamento sobre a região Amazônica. Há pelo menos 30 anos, a Amazônia passou a ser considerada o principal território para se defender no Brasil. Todavia, mais de 70% do efetivo militar segue no Comando Sul e Sudeste. Isso tem relação com uma cultura institucional muito forte, assim como o baixo interesse pela defesa [do país] e com a pouca noção de “missão”,
quando se pensa o próprio bem estar (servir no Sul, Sudeste, ser adido militar, missão de paz ou fazer cursos no exterior é melhor do ir para a Amazônia). Esse fato leva a outro questionamento: teria a corporação capturado as FFAA? O deslocamento para a Amazônia não deveria ser mais intenso? Claro que não se trata de uma decisão pautada apenas na estratégia de defesa, mas deve-se levar em conta custos políticos e econômicos, e mesmo conflitos com as identidades das Armas (das FFAA), como a Cavalaria, bastante atrelada ao Sul. Em última instância, a discussão recai sobre a pergunta: para que servem as FFAA brasileiras?
A pauta econômica é outro ponto de confluência entre FFAA e Bolsonaro. Foi-se o tempo dos nacionais-desenvolvimentistas, herdeiros do projeto tenentista. Atualmente, os generais têm a visão econômica da
Fundação Getúlio Vargas, que atua como verdadeiro intelectual orgânico [dos entreguistas] defendendo a
privatização inclusive de setores estratégicos. Neste sentido, não surpreende que o ministro de Infraestrutura e engenheiro do Exército, Tarcísio Gomes de Freitas, que leva adiante a agenda de privatização, é considerado um dos melhores ministros pelo empresariado, como comprova o
prêmio da LIDE. Eventualmente, há alguma dissidência, como as declarações do general Juarez Cunha, contrário à privatização dos Correios. Mas a
venda da Embraer foi a medida mais significativa que corrobora essa tese.
As FFAA também sofreram cortes orçamentários, já que algumas unidades não tinham recursos nem para o rancho (refeição dos soldados) no final de 2019. Mas esse cenário foi modificado em 2020. Mesmo com a crise econômica, a pasta da Defesa teve
aumento orçamentário, foram inaugurados um novo campus da Escola Superior de Guerra (ESG), em Brasília, e a nova
base na Antártica. Na mesma toada, a Engeprom teve um considerável crescimento e foi fechado um importante acordo de fomento industrial
com o BNDES. Importa lembrar que a indústria de defesa tem o Estado como maior comprador.
No caso de Brumadinho, por exemplo, helicópteros foram reparados 24 horas pelas empresas para continuar voando nas buscas pelos desaparecidos. Uma aparente contradição nesse tema é a postura de Eduardo Bolsonaro, presidente da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, que critica o que chama de “monopólio da Taurus” e deseja maior abertura do mercado brasileiro para as empresas estadunidenses de armamentos.
Um ponto que deveria ter gerado contradições entre os dois atores é a política externa, o que não ocorreu. O Brasil vinha se construindo na lógica de uma
inserção autônoma no mundo. Do ponto de vista objetivo, as relações atuais entre EUA e Brasil são absolutamente diferentes de 1964. Apesar da China ter se transformado no maior
exportador de capitais para a América Latina, o Brasil seguiu dependente em termos de equipamentos e doutrina dos EUA na área militar, mesmo com a diversificação de parceiros. Há também grupos militares que acreditam que a cooperação com os EUA e a OTAN renderá ao país compras vantajosas de equipamentos,
mesmo se estes forem obsoletos. Nesse sentido, é importante destacar o novo status do Brasil diante da OTAN e o recente acordo militar
assinado entre Brasil e EUA.
Para além das questões objetivas, há vínculos simbólicos, como a reedição de alguns
raciocínios da Guerra Fria, quando se aponta a necessidade de se aliar aos EUA diante da guerra comercial com a China. Ou mesmo pensamentos como “nossa bandeira jamais será vermelha”. A partir disso, Bolsonaro tem redefinido o papel do Brasil na guerra de quarta geração: controle interno da ordem por meio da segurança integral (todo o país) e preventiva (inteligência e espionagem). Já que não existe um projeto para desenvolver o Brasil enquanto uma “potência”, as FFAA serviriam para acomodar as forças sociais aos interesses internacionais (repressão interna). De fato, existe um grupo que acredita no marxismo cultural62, que estamos em guerra permanente e o inimigo interno deve ser combatido. Essa ideia do emprego interno das FFAA foi consolidada pelas operações GLO, citadas no início do texto. Cabe pontuar que esse é um inimigo interno de ocasião, podendo ser
caracterizado como petista, comunista, crime organizado, corruptos ou terrorista, a depender dos interesses. Algumas medidas legislativas estão sendo tomadas nesse sentido, politicamente alinhado ao Bolsonaro e ao general Heleno, como o PL 1595, do Major Vitor Hugo, que pretende dar poderes excepcionais ao Estado brasileiro para reprimir manifestações populares.
Relações estremecidas
A demissão do general Santos Cruz da Secretaria de Governo é muito significativa. Existem muitas explicações para a demissão. A maioria aponta para uma resistência do Santos Cruz a cumprir ordens que contrariavam princípios éticos e morais que ele alimenta. Outros argumentam que o general não se subordinou ao capitão, ou que havia uma disputa por status político dentro do partido militar, derivada dos diferentes reconhecimentos recebidos pela ONU em virtude da participação na Minustah. Quem saiu em defesa do general demitido não foi nenhum dos militares do governo, mas o fiador do governo Temer,
o general Etchegoyen. Outro episódio digno de menção foram as
ofensas de Olavo de Carvalho a Villas Boas. Por fim, também existiram farpas que partiram dos filhos do presidente em diversos episódios, como a desconfiança em torno da segurança do GSI estimulada por Carlos Bolsonaro, mas ‘amortecida’
pelo próprio general Heleno. Nunca ocorreu na Nova República uma escalada de ofensas às FFAA e aos militares nessa proporção.
O fato é que a demissão de Santos Cruz fragilizou a ideia de bloco e do projeto militar, e ganhou peso os interesses individuais. Isso não significa que eles tenham começado a concorrer entre si, pois em primeiro lugar, vale a corporação militar. Mas fica clara a
busca por status, pois mesmo figuras populares na caserna como o general Heleno e Mourão, eram pouco conhecidas da sociedade civil. O mesmo vale para generais com destaque no exterior, como Santos Cruz e Floriano. Para um militar profissional, a maior vaidade da carreira é conseguir a quarta estrela. Entretanto, generais com 4 estrelas, ainda que desempenhem impecavelmente sua tarefa, são esquecidos. A ocupação de cargos políticos e a projeção pública alimentam a vaidade e passaram a ser almejadas. Contrariando qualquer discussão coerente com a profissionalização, seria possível encontrar generais de 2 ou 3 estrelas fazendo cálculos sobre o que vale mais a pena: as estrelas que lhes faltam ou um Ministério. Outro exemplo possível de buscar se projetar publicamente é a utilização massiva das redes sociais, que permite que generais mantenham contato direto com a população. Com isso, pronunciamentos que deveriam ser orientados profissionalmente passam a ser feitos em busca de popularidade. Se isso tem relação com algum sentimento de falta de reconhecimento proveniente das missões no Haiti, é algo que merece aprofundamento,
mas não é objeto desse texto.
No entanto, aparentemente ocorreu um afastamento da Instituição Exército em relação ao governo no final do ano de 2019, seja pelos
baixos índices de avaliação ou pela dificuldade de conseguir resultados no campo econômico. Como ficaram com o ônus do golpe de 64 nos anais da história, o partido militar tem se precavido e tenta um duplo movimento, aparentando afastamento institucional do governo,
coordenado pelo general Pujol, e a manutenção de uma postura tutelar, por exemplo, diante do
Supremo Tribunal Federal.
São muitos os sinais para essa hipótese:
1. A ordem do dia do soldado citando o general Leônidas é um recado claro do alto comando: “Bolsonaro, te expulsamos uma vez,
podemos expulsar de novo”;
2. Etchegoyen está com diversas movimentações para ‘conter’ o bolsonarismo nas fileiras, e vem fazendo palestras em todo país sobre liderança militar (hierarquia e disciplina) diretamente para baixa oficialidade, enquanto se articula com o setor industrial nacional,
que vem tendo perdas com medidas do governo;
3. Desconfortos sobre a distribuição de medalhas militares a congressistas, numa nítida compra de votos para o projeto de reestruturação da carreira;
4. Os militares queriam Etchegoyen para a embaixada de Washington, mas o presidente desejava alguém de sua famiglia;
5. A negativa da quarta estrela para
Rego Barros.
6. A indicação do general Amaro para o Comando Sudeste, mesmo ele tendo
trabalhado tantos anos com Dilma;
7. Novas baixas entre militares que ocupavam cargos
estratégicos no governo.
O projeto de reestruturação da carreira militar,
PL1645, foi um momento bastante tenso. Há quem acredite que essa seria uma oportunidade de diálogo à
esquerda com a base das FFAA. De fato, o projeto contém benesses aos altos escalões que não se estendem ao conjunto das FFAA, o que poderia gerar
contradições hierárquicas. As Forças Armadas contam com um conjunto de direitos que as demais polícias não possuem, e o projeto reforça ganhos na carreira para as patentes mais altas, o que tem gerado insatisfação entre os praças, que deixaram claro que vão seguir o exemplo de insubordinação de Villas Bôas. Existem segmentos dessas baixas patentes que entendem a não manifestação de Bolsonaro a respeito como uma traição, forçando o presidente a
adotar medidas paliativas.
Bolsonaro, entretanto, respeitou a hierarquia e aprovou o projeto, favorecendo os altos escalões e prejudicando sua base eleitoral mais antiga. Para mitigar a situação, outras fontes alternativas de renda vêm sendo construídas para esses setores, como o
aumento em diárias e ocupações extras, como nas escolas cívico-militares e no INSS. Embora absurdas, seja do ponto de vista das regras da administração pública ou da defesa, essas medidas são coerentes com o
objetivo de atender sua base.
A conivência das FFAA no governo com essas e outras medidas que prejudicam a defesa nacional deixa claro algo já argumentado anteriormente. Não adianta os
acenos à direita ou à
esquerda. Quando a instituição se compromete nesse nível, ela passa a fazer parte do problema, e não da solução. Enfatize-se: não existe um divórcio das baixas patentes militares com o governo, e as dissidências não são contrárias à
política econômica adotada nem favoráveis às forças democráticas e progressistas.
Esse conjunto de medidas não ocorreu por divergências ideológicas do Alto Comando com Bolsonaro, mas porque querem mostrar independência e deixar claro aos que almejam entrar na institucionalidade que não falam em nome das FFAA. A finalidade disso é afirmar a autonomia do Estado-Maior no interior da aliança e reforçar quem comanda o partido militar.
A ida de militares para diversos postos no governo foi tão grande que o Ministério da Defesa tomou medidas institucionais, como rotatividade, passagem à disposição, impactos na carreira, etc. Isso reforça o desejo de se autopreservarem. Por exemplo, à exceção dos ministros, eles se reservam o direito de indicar qual militar ocupará determinado cargo quando for requisitado. Por outro lado, o mesmo decreto 10171/2019 escancara o desejo dos militares de participarem da política de Brasília, se distanciando de suas funções e dos trabalhos considerados penosos, como as fronteiras. Essas atitudes apenas reforçam o que analistas de defesa vinham afirmando desde o período eleitoral: quando a política entra nos quartéis por uma porta, a
profissionalização sai pela janela. A portaria também reforça o corporativismo, já que define que mesmo em cargos civis, os crimes cometidos por militares serão julgados pela Justiça Militar.
Levando em consideração a história das outras intervenções militares no Brasil, existe mais um ponto digno de nota. Militar importante está em comando de tropa, no serviço de informações ou nas escolas de formação. Com Ramos promovido a secretário de governo, Bolsonaro tirou o único comandante alinhado com ele dos comandos de tropa, pois este agora passou a ser mais um palaciano.
Ao chegar ao governo, Ramos fez uma promessa, a de “colocar ordem na casa”. Tal promessa aparentemente expressa o ethos militar, que é ter os meios e o desejo de ordem. No entanto, sua função no governo é a de atuar como articulador, fazendo reuniões com os líderes de governo no legislativo, com bancadas de estados, além de desenhar agendas estratégicas com líderes empresariais e com a imprensa. Assim, Ramos desnuda a ação castrense no poder: é atuação partidária, representando o partido militar, e este é fiel ao presidente da República.
A geopolítica interferiu para fortalecer e para enfraquecer a consonância entre o partido militar e o presidente. A conjuntura na América Latina, que terminou o ano de 2019 com explosões sociais em vários países, entre os quais se destacam Chile e Colômbia, fortaleceu a parceria. Havia uma preocupação nas FFAA de que o mesmo se repetisse no Brasil, o que justificaria medidas de repressão às iniciativas de sublevação dos povos. Por outro lado, em virtude do conflito Irã e EUA, essa proximidade se fragilizou. Se não bastasse o alinhamento incondicional brasileiro aos EUA nas suas
formulações sobre terrorismo, o governo ofereceu o Brasil para testar uma aliança contra o Irã. Medidas como essa mostram o Brasil como celeiro de Trump, esvaziam os organismos internacionais e expõem o país a ataques estrangeiros. As declarações atrapalhadas do presidente do ponto de vista de defesa nacional mereceram comentários do gen.
Etchegoyen , que junto com
Santos Cruz, vem formando um polo de
crítica ao governo. Tais atitudes apontariam fraqueza do Ministro Fernando, da Defesa, junto ao presidente.
Mas é bom observar com cautela essas diferenças. A mídia hegemônica tenta aumentar a distância entre os dois grupos, seguindo o desejo das FFAA de se apresentarem apenas como moderadores do governo, embora estejam
enfronhados nele até os cabelos. Porém, esquecem que o partido militar, enquanto partido político, tem suas tendências internas, importantes inclusive para representar os diversos interesses existentes nos quartéis na construção do consenso. Todavia, não se pode esquecer do elemento básico na construção do partido, que é a espinha dorsal da profissão, a obediência disciplinada à hierarquia. Por isso, ao fim e ao cabo, tomada a decisão, o partido militar agirá como corporação, valendo o princípio dos “3 Ds”: não duvidar, não divergir, não discutir.
2020 e a consolidação do Partido Militar
As FFAA entram no ano de 2020 com um projeto mais elaborado quanto à sua participação no governo, atuando como um verdadeiro partido. Estão bem posicionados para isso, com quase 2.500 pessoas em cargos de assessoria ou chefia, em
ministérios ou repartições. Também reivindicaram para sua coordenação assuntos que consideram mais relevantes para defesa e segurança nacional, como a questão da Amazônia, que passou a ser coordenada pelo vice-presidente Mourão, depois das trapalhadas que envolveram as intensas
queimadas no ano de 2019. Até recentemente, Bolsonaro era funcional para esse projeto.
O mais importante acontecimento que mostra a
mudança de qualidade na atuação do partido militar foi a nomeação do general Braga Netto, ex-interventor federal no Rio de Janeiro, para a Casa Civil. A partir dessa movimentação, o Palácio do Planalto se torna exclusivamente militar. Essa nomeação revela a unidade de ação da reserva e da ativa, ou seja, a unidade do partido, mesmo não sendo homogêneo como qualquer outro partido.
Embora poucos defendessem uma divisão entre militares e Bolsonaro, muitos analistas percebiam um distanciamento ao final do primeiro ano de governo. A nomeação de Braga Netto vem no sentido contrário. Ele está na ativa (antecipou sua ida para a reserva), assim como Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, e Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia. Até o fim do ano passado, Rego Barros (Comunicação) também estava na ativa. A nomeação também parece apontar uma ação mais ordenada do Alto Comando, contradizendo argumentos surgidos na nomeação do Ramos, que apontavam para a antiga amizade com o presidente ou na coincidência religiosa. Praticamente todos os generais de todas as estrelas da geração do capitão estão empregados no governo (1975-79), e foram formados sob a mesma estrutura de pensamento e atuam sob o princípio de ocupação em massa e em “ordem unida”. Estão organicamente vinculados ao restante, especialmente ao ministro Sergio Moro.
A questão não é apenas pragmática. Óbvio que muitos militares estão no governo motivados por ganhos pessoais ou para a corporação, ainda que travestidos de projetos políticos. Mas importa destacar que esses são bônus advindos da entrada no governo, não seu objetivo principal. Existe um projeto de poder e um objetivo, como passar a limpo acordos feitos na Constituinte, situações em que os militares se consideram prejudicados. As diferenças internas não são significativas no espectro político–ideológico, mas corporativas. São, como aconteceu durante a ditadura, pequenas disputas por vaidades, hegemonia nas armas, regionais, especializações, referências internacionais. Os principais generais são garantidores das privatizações e desnacionalizações (na linha do que é defendido pelos doutores em economia da Fundação Getúlio Vargas), alinhamento automático aos EUA na Política Externa (linha OTAN, embora aqui caibam contradições e não aceitem o chanceler de bom grado), esvaziamento das estruturas de Ciência, Tecnologia e Educação, em especial das Universidades Públicas, e controle de Artes e Cultura. Enfim, da soberania nacional. Fundamentalmente, veem-se a si mesmos como representantes da ‘verdadeira’ nacionalidade, aquela que afirma que o brasileiro é essencialmente cumpridor dos seus deveres, ciente de seu lugar e, portanto, ordeiro, cordial e pró-EUA.
Essa atualização conjuntural acontece em pleno estouro da crise do Coronavírus. Enquanto as forças progressistas pensam em salvar o povo brasileiro, sem dúvida há um conjunto de militares pensando nos efeitos colaterais que a crise traz, assim como na janela de oportunidades que se apresenta. Certamente cálculos sobre a utilidade de manter Bolsonaro na presidência estão sendo feitos pelas FFAA e pelos diversos grupos político-econômicos. Em meio a crise, o presidente convocou uma manifestação, usando imagens dos militares para
passar credibilidade e foi criticado por isso. Também conclamou manifestações na porta dos quartéis pedindo intervenção militar no aniversário do golpe de 64, entrando em conflito direto com o STF e Congresso Nacional, além de conflitar com os governos estaduais e seu próprio Ministério da Saúde sobre as medidas sanitárias adequadas. Em um momento que todos os governos devem buscar a unidade nacional, Bolsonaro continua com seu discurso polarizador e de enfrentamento.
Embora este texto não tenha focado em questões de defesa, obviamente estas vêm sendo impactadas pelo governo Bolsonaro e pelo comportamento partidarizado dos seus principais servidores públicos: os militares. Num cenário de crise, é difícil explicar que apenas essa área seja beneficiada com aumento orçamentário. Há denúncias de benefícios individuais a militares, que tiveram o acesso ampliado para si e para a sua família a cursos e viagens internacionais. Essas denúncias são sérias e expressariam a cooptação individual de militares em ascensão, a fim de manter apoio político ao governo, mesmo que em detrimento da defesa nacional. Exemplo claro nesse sentido e que expôs o país a constrangimento internacional e mal estar com seus vizinhos foi o documento vazado com cenários prospectivos para 2040, elaborado pela Escola Superior de Guerra do RJ, que chega a mencionar a
hipótese de conflito com a França. Segundo eles, foram feitas 11 reuniões regionais e ouvidas 500 pessoas. Em outros termos, o conteúdo não é um delírio localizado. É um plano de governo, reflexo da subordinação automática e auto-imposta aos EUA, estes preocupados com a geopolítica energética.
Hipóteses de cenários
Entre todas as questões que seriam pertinentes, selecionamos três elementos fundamentais a serem aprofundados. O primeiro diz respeito à perda do monopólio do exercício da força estatal por parte das FFAA. O segundo, relacionado ao primeiro, é sobre a quebra de hierarquia generalizada. O terceiro trata da destruição das instituições estatais e sua reorganização enquanto Estado autoritário.
A primeira hipótese ocorre em virtude da forte ligação entre Bolsonaro e as
milícias armadas. É estranho que as FFAA não soubessem dessas ligações antes da eleição, devido ao seu acesso privilegiado às ferramentas de informações, ao seu envolvimento em várias GLOs no Rio de Janeiro, e mesmo na intervenção federal em que se destacou o chefe da Casa Civil, gen. Braga Netto. Ao que se sabe, as milícias se profissionalizaram, passando não somente a controlar territórios, populações e economias locais, mas também a ter arranjos com
organizações criminosas internacionais. Se as FFAA sabiam dessas ligações, também é estranho terem endossado um presidente fortemente apoiado por essas forças também armadas, ainda que milicianas, mas que disputam com as próprias FFAA o monopólio de usar a força do Estado. Existiria um medo de que, caso as FFAA não ocupassem seu espaço formal no governo, esse vácuo de poder seria ocupado por forças armadas informais (paramilitares)?
Esse medo faz sentido não apenas diante de forças informais, mas também das formais, como as polícias militares. Por muito tempo, as polícias (ou guarda nacional) tiveram efetivos maiores e até equipamentos melhores que as FFAA. A missão militar francesa, por exemplo, veio antes profissionalizar a força pública de São Paulo, hoje polícia militar, e só depois o Exército brasileiro. Foi uma conquista das FFAA, portanto, a subordinação das polícias, com a criação da Inspetoria Geral de Polícias Militares dentro do Exército. Todos os projetos de mobilização das FFAA em território nacional em caso de grave ameaça contam com a utilização dessa força auxiliar extremamente pulverizada. Mas o que vemos hoje são disputas das FFAA até mesmo com a Polícia Federal, pelo controle do Palácio do Planalto, por exemplo. Nesse processo, a autoridade moral sobre as demais vai sendo contestada.
A maioria dos intelectuais escreve sobre o medo da policialização das FFAA devido ao seu emprego em GLO. Do ponto de vista de um cidadão comum isso é correto, mas do ponto de vista das FFAA, o verdadeiro medo é o aumento da militarização das polícias, de modo a se tornarem mais importantes do que elas. O mesmo vale para as milícias, sobre as quais, cabe lembrar, não houve nenhuma medida por parte do combatente ministro Sérgio Moro. Perder esse monopólio seria o fim das FFAA brasileiras, que diferente de outros países da América Latina, não conviviam com forças paramilitares, mas têm na memória institucional momentos em que essas disputas ocorreram.
Essa preocupação foi recentemente confirmada com o motim da polícia militar do Ceará. As FFAA foram empregadas, a pedido do governo estadual petista e por pressão das mesmas, conformando uma GLO. Bolsonaro resistiu até onde pode, pois se a situação naquele estado saísse do controle, teria como bônus a demonstração da sua força de mobilização nas polícias, criando caldo para a nacionalização das milícias cariocas, além de desestabilizar um governo opositor. O ministro da justiça Moro
atuou muito fracamente. Outro militar que também passou panos quentes na indisciplina foi o coronel comandante da Força Nacional de Segurança, Aginaldo de Oliveira, que
elogiou a atuação dos PM. Se já havia dúvidas no Alto Comando sobre as relações carnais entre a família do presidente e as forças de segurança, estatais ou não, o episódio ligou a luz vermelha.
Passemos ao segundo cenário: a hipótese de quebra de hierarquia, pilar fundamental das FFAA junto à disciplina. Quando entraram no governo, as FFAA tinham a firme crença de que tutelariam Bolsonaro. Na realidade, Bolsonaro foi mais habilidoso e fez o que sempre fez: sindicalismo militar e política para o baixo clero. Ele fala diretamente com a baixa oficialidade e com os praças. Não perde nenhuma formatura, assim como fazia quando era deputado. A baixa oficialidade pode argumentar que a desobediência à hierarquia é exemplo do próprio comando, e Villas Bôas já deu diversas demonstrações de proteger insubordinações militares contra o poder civil, cometidas pelo próprio Mourão.
Sabendo dessa fragilidade, Bolsonaro disputa os estratos inferiores e força os generais a posicionamentos públicos mais radicais, sob pena de perderam uma base mais ideologicamente bolsonarista nas próprias FFAA. As diferenças também surgirão entre os oficiais. Por exemplo, um coronel no Banco Central receberá um salário condizente ao de outros gestores do mesmo nível, maior que o de generais em final de carreira. Em outras palavras, a hierarquia vai sendo solapada pela distribuição de oficiais em empregos a partir de critérios distintos para a promoção, salário e benefícios. A profissionalização é desestabilizada pela nova divisão de trabalho e suas recompensas.
Num país que não vive em guerra, os oficiais se diferenciavam dos sargentos pela sua formação. Agora a maioria dos soldados tem curso superior, alguns até pós-graduação em Universidades civis. Os comandantes precisam encontrar outras formas para demonstrar sua autoridade, para além das simbólicas, como medalhas e demais identificações. Quando se trata do poder civil, esse fosso é ainda maior. Exemplo recente foi visto na formatura da Polícia Militar de São Paulo. Na ocasião, o chefe da Polícia, o governador João Doria, foi vaiado,
enquanto o presidente Bolsonaro foi aclamado.
A fraqueza do comandante que cede à pressões, sejam elas internas ou externas, é uma das variáveis que compõe nossa terceira hipótese, de que o bolsonarismo estaria conseguindo desestabilizar todas as instituições do Brasil, incluindo as mais tradicionais, como as FFAA e o Judiciário. Nesse sentido, o governo vem distribuindo cargos para militares por
toda a administração federal. A justificativa é que militares e policiais são técnicos e, por isso, bem preparados para gerir a burocracia sem se corromper.
Regimes nos quais o sistema de controles mútuos entre os poderem funcionam, temem a paralisia decisória que conflitos entre os poderes podem provocar. Tomando o mesmo desenho, a militarização da burocracia pode levar ao seu colapso. Por um lado, agrada sua base, inclusive com ganhos financeiros – quebrando a hierarquia militar. Por outro lado, ao colocar pessoas despreparadas e, ao mesmo tempo, que tem por missão uma determinada ação que contraria sua própria função – por exemplo, um produtor de agrotóxico cuidar do financiamento para agricultura orgânica – em cargos chave, desestrutura o processo de corrente de transmissão de decisões, levando ao colapso da burocracia.
Sem resultados na economia, o governo se sustenta a partir de uma forte retórica ideológica, elegendo pautas que alimentam uma base social militante em torno de 15% a 30% da população, segundo as pesquisas. Bolsonaro organizou e mantém mobilizado esse exército informal militante. Porém, um elemento altamente preocupante é que parte desse exército é armado, como é caso do apoio miliciano e das polícias militares. Essa foi uma das características básicas de sustentação de governos fascistas.
Independentemente da confirmação dos cenários anteriores, com a perda ou não do monopólio da força e a quebra de hierarquia, Bolsonaro tem hoje um forte
exército pretoriano, jamais visto por algum outro governante da Nova República.
Nesse cenário, também não é descartável a hipótese de
militarização da política, distinta de 1964, mas com uma questão comum. Antes de mais nada, para garantir sua própria existência, as FFAA precisam garantir a existência do Estado. Sem uma estrutura de mediação política (função da República) para os conflitos estruturais que inevitavelmente surgirão num cenário de crise social, triunfa a mediação da violência. O problema moral e político das FFAA é que seu cliente é algo abstrato, como instituições coletivas ou até imaginadas, como a Constituição, maiorias eleitorais, nação, líder, frequentemente em conflito entre si. Elas não são responsáveis por essas tensões, mas recorrentemente conduzem as FFAA a impasses.
Por outro lado, as FFAA não querem ficar mais uma vez com a pecha de golpistas, afinal, Bolsonaro foi eleito. Da mesma maneira, não desejam abrir espaço para um retorno da esquerda ao governo. Nesse sentido, tão importante quanto acompanhar a movimentação das camadas superiores do governo é perceber a
militarização que ocorre no seio da sociedade, bem como as alterações que ocorrem na
percepção do povo brasileiro sobre as FFAA. Para isso, é preciso levar em conta a cultura violenta e autoritária que estrutura o país e o tipo de transição do regime burocrático autoritário para o governo democrático que aqui se construiu. Mas isso é tema para outro artigo.
Terminamos este texto diante da explosão dos casos de Coronavírus no Brasil. Até agora, as respostas do presidente mantiveram a subordinação ao raciocínio dos EUA no combate a crise, até mesmo
negando a gravidade da pandemia. Essa não é uma guerra, mas é sem dúvida o maior teste que as FFAA terão, como reconhecido em recente pronunciamento do comandante do Exército, gen.
Edson Pujol. Suas capacidades de comando, mobilização, logística, articulação política, cooperação com outras instituições, apoio humanitário, pronta resposta e muitas outras serão colocadas à prova. Simultaneamente, é uma janela de oportunidade para a militarização da política. Sem dúvida, as FFAA sairão desse processo em outro patamar. Se melhor ou pior, veremos. Assim como em todo o mundo, os próximos meses determinarão o que esse século será para o Brasil. Todavia, uma certeza deve guiar a todos nós: O povo brasileiro não pode entregar seu destino aos generais.
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Ana Penido é pesquisadora em estágio de pós doutoral (bolsista Capes) do Instituto de Políticas Públicas em Relações Internacionais (IPPRI – UNESP), investigadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).
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Jorge M. Rodrigues é mestre em Relações Internacionais pelo Programa ‘San Tiago Dantas’, investigador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).
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Suzeley Kalil Mathias é professora Associada em Relações Internacionais (FCHS-Unesp; Programa ‘San Tiago Dantas’), investigadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq-PQ2).