A
partir da última conversa-entrevista na TV 24 (aqui), eu
recebi um contato por e-mail da professora e pesquisadora da Luciana Salazar Salgado, Universidade Federal de São Carlos, SP, que é doutora em Linguística, me felicitando pelo esforço de “esclarecer um amplo público sobre o que se passa na
atual arquitetura da rede, com os modelos de negócios hegemônicos - e sobretudo
explicar que “a rede” não tem que ser fatalmente assim”.
A seguir a Luciana me enviou um texto (está nas
referências abaixo) propondo uma interlocução com o objetivo de unir os esforços de
leituras, em diferentes dimensões, sobre o fenômeno das redes digitais, a “distribuição
algorítmica dos dizeres” e também ao "estado das técnicas e estado da
política", como elementos para a compreensão do fenômeno do capitalismo de
plataformas entre os discursos e as apropriações de toda a sorte.
A análise superinteressante da “cadeia semântica”, dos
“mídiuns digitais”, da psicosfera/tecnosfera com resgates de referências conceituais
do Debray e Milton Santos, feita por Lucina, me levaram a sugerir a elaboração
de um texto síntese, com o objetivo de estimular e ampliar o nosso conhecimento
da dimensão da linguagem que dirige as técnicas algorítmicas e as relações de poder
que manipula a política. Gentilmente, Luciana nos atendeu e aí está.
O sentido que o algoritmo faz – ou faz
fazer...
Luciana Salazar Salgado
Leio no
Portal 247 a chamada “Villas Bôas
admite ter consultado ministros e elaborado tuíte ainda mais incendiário sobre
Lula”, que trata das ameaças do general ao STF frente ao julgamento de um habeas
corpus para Lula, em 2018. O rumor público se densifica novamente em torno
do tema por conta das declarações que compõem o livro “General Villas Bôas:
conversa com o comandante”, recém-lançado pela Editora FGV. Um tuíte tem poder
incendiário! É um caso típico do tempo presente, que se caracteriza por uma
troca comunicacional intensa, densa e hipercondicionante – este é o ponto.
“Curto”
sabendo que “curtir” uma notícia escabrosa fortalece a denúncia; “curte-se” a
denúncia, e não o horror estampado na imagem ou manchete; os “likes” podem
ajudar a pôr tema na roda, valorizar um canal ou celebrizar uma pessoa. O
volume de dizeres que a lógica da plataforma enseja pautará mídias televisivas,
radiofônicas e impressas, jornalísticas ou não. O Twitter é uma “rede social”,
como se diz, que tem hoje poder de promover o rumor público na própria plataforma
e para além dela. E eu curtir essa notícia nessa plataforma me amarra numa teia
de coisas ditas e por dizer, não só porque meus rastros de navegação são
coletados o tempo todo, mas porque o próprio gesto de engajamento incita em mim
uma tomada de posição. É um gesto tão corriqueiro quanto grave. Fazemos isso à
exaustão nas navegações cotidianas que não são consideradas “produtividade”, nos
termos dos relatórios que nossas máquinas nos enviam. E com que critérios
assumimos essas posições o tempo todo, cada vez mais vezes em cada vez mais
redes?
Muito já se
disse sobre o que Sérgio Amadeu da Silveira chama de “modulação de
comportamentos”. Muitos pensadores têm nos alertado há mais de uma década para
esse aspecto da arquitetura técnica que se hegemonizou e que chamamos
tranquilamente de “internet”: são modelos de negócios que extraem da massiva
coleta de dados, metadados e rastros a definição de categorias às quais temos
de corresponder para participar da vida que se move pelos aplicativos e plataformas
– tudo é filtrado, etiquetado e ranqueado. Fornecemos o material com que nos
classificarão depois, enquadrando-nos. E mal percebemos como isso funciona. Sutilmente,
somos conduzidos com a sensação de customização: de fato, tal como funciona
hoje, esse hipersistema comunicacional pode oferecer produtos, serviços ou
ideias no exato momento da navegação de um sujeito que os cálculos o apontam
como efetivamente suscetível de comprar, contratar ou aderir.
O
termo “hipermídia” foi caindo em desuso, mas parece muito adequado para
designar algo tão abarcante, e eu me pergunto como passamos a preferir o
palatável “internet”, sugestivo de uma tranquila “rede internacional”, que é,
de fato, uma malha técnica de distribuição desigual. “Hipermídia” parece
referir melhor a modulação de comportamentos que opera com as mais específicas
idiossincrasias para estabelecer um padrão que volta pelos aplicativos e
plataformas, manejando a eterna reinserção do navegante em curvas finamente calculadas.
Chamo de hipersujeito esse navegante que nem se dá conta de que seu engajamento
é gerador de mais engajamento, e que consiste basicamente em trabalhar para dar
forma cada vez mais precisa aos cálculos que futuramente lhe darão forma (cada
vez mais precisa?).
E
aí a questão da língua se coloca. Também sorrateira e poderosa. Essa lógica da
hipermídia que produz hipersujeitos tem muito a ver com desconsiderarmos, como
usuários dessas tecnologias, o que está da tela para lá. A tela não é um ponto
zero. O que se apresenta nela é já a confluência de articulações de diversos
tipos de dados que nenhuma lei hoje obriga que sejam explicitadas. Também os
nomes que fomos adotando para falar desses dispositivos nada neutros são
incrivelmente poderosos. Um exemplo: a nuvem. Ora, não há nuvens. O marketing
engenhoso definiu uma metáfora fofinha para o que são enormes galpões hiper-refrigerados
funcionando 24 horas por dia, consumindo uma quantidade gigantesca de energia
elétrica para estocar toda informação. Os serviços de streaming são exemplos
dessa sofisticação: os de música, filme e aplicativos como Uber, Waze ou Ifood
não existem senão investindo fortunas no ir-e-vir de dados hiperprecisos que,
por exemplo, a Amazon estoca. A Amazon vive dos dados, não dos livros que vende
a preços baixíssimos, como alguns ainda creem. É uma empresa de logística, uma
intermediária, e nós somos mais mercadoria do que clientes nessa intermediação:
nossas compras fornecem dados, nossas formas de comprar deixam os rastros que ela
comercializa. Como se vê, essa questão da designação é bem importante: o próprio
nome “Amazon” merece atenção!
Sabemos
que os sentidos das palavras não estão nelas, mas nas suas relações; que as
palavras dizem o que dizem ali onde aparecem, no modo como aparecem, propondo
uma descrição do real. E é o convívio social que estabelece os parâmetros dessa
descrição. Se cultivamos uma vida em bolhas, pode-se imaginar a dificuldade de estabelecer
esses parâmetros...
Em
todo caso, dizer que os sentidos das palavras se alteram conforme variáveis não
linguísticas, conforme os repertórios dos interlocutores etc. não significa
dizer que qualquer coisa faz sentido: o material linguístico tem suas
características e os usos sociais desse material impõem certos caminhos
interpretativos. Na selva da comunicação rumorosa, há caminhos que parecem
preferenciais, porque se apoiam em sentidos mais estabilizados numa dada
comunidade, numa sociedade.
Voltemos
à notícia do tuíte do general. Boa parte de nossas trocas comunicacionais se
distribui por aplicativos e plataformas cujos funcionamentos não conhecemos,
vamos nos adaptando às “funcionalidades” delas, aprendendo como ocupá-las. A
gente quase não se lembra de como era conversar antes das figurinhas e emojis
nos mensageiros, como eram os dias antes da possibilidade de falar com muita
gente o tempo todo ao longo do dia... Nesse contexto, por que o general usa o
Twitter para ameaçar o STF? O que um enunciado curto lançado ali pode? Pode
muito, como estamos vendo. A língua é a arena das arenas, e o modo como vai se
organizando em dizeres que se põem a circular é que faz sentido. Foi usando o
Twitter como usamos que fizemos dele um lugar de exercício de poderes – de
governo, de desgoverno, da tirania institucional... Eis o hipercondicionamento.
Era só um tuíte, e condicionou os rumos da nação.
Por
definição, como disse, os sentidos de uma língua não estão dados nas palavras
soltas, mas no modo como elas aparecem onde aparecem, proferidas por quem as
profere. O que se tem chamado de “guerra das narrativas” tem muito a ver com
isso. Afinal, a disputa pelos sentidos do que se diz é a disputa pela descrição
do real. Nesse caso, o próprio termo “narrativa”, convenhamos, tem seus perigos:
faz crer que tudo são versões e não há fato.
E
um rumor público que é “hiper”, difícil de digerir, nos deixa à mercê desses
ventos. Por isso, em tempos de guerra das narrativas, só sobreviverá quem considerar
a lógica das tecnologias do dizer, o que significa que ocupar as redes tem de
vir junto com entender os funcionamentos que elas hoje impõem – e transformá-los.
Detalhamentos:
SALGADO, L.S. A
dimensão algorítmica dos discursos, pré-print disponível no Reseachgate.
SALGADO, L.S.;
OLIVA, J. Espaço comunicativo e fratura social. Belo Horizonte: Fino
Traço, 2020. (versão
digital gratuita)