domingo, julho 31, 2022

A ilusão de progresso com a expansão das redes de varejo e franquias nas cidades médias

É interessante e, ao mesmo tempo, lamentável, essa ideia colonizada - e mesmo provinciana - de se comemorar a abertura de lojas de rede ou de franquia em cidades de médio porte, como sinal de prosperidade.

Sim, o fato identifica haver capitais locais e interesse em sua captura. Porém, o que se ganha com isso? O resultado disso, é a vampirização de uma parte da renda do comércio local para outros centros que concentram as sedes destas redes.

Hoje, o comércio local já é minoria expressiva na maioria das cidades médias, mesmo no chamado circuito inferior da economia, onde se situam aqueles de baixa renda. A maior parte já é redes de lojas e/ou franquias. E isso já acontece em diferentes setores do comércio (farmácia, roupas, utensílios, etc.) e até serviços em meio às alternativas das plataformas digitais e aplicativos.

Estas franquias e lojas de redes, mesmo que tenham proprietários locais, dividem a renda do seu comércio com andar de cima. Chama-se isso de renda das marcas que é uma renda derivada, uma renda da chamada "propriedade intelectual" (RPI) sendo cada vez mais expressiva que a renda oriunda da produção.

A RPI é o "cercamento" da produção por complexos arcabouços jurídicos que aprisionam o conhecimento, como propriedade e serve para capturar rendas de vários setores e lugares. O marketing que é outra renda derivada -porque não produz riqueza -, ajuda transferir esse valor da produção para os proprietários dessas marcas.

As elites econômicas locais fazem escaramuças com as mídias corporativas dessas regiões para criar essa falsa noção de prosperidade que não se sustenta para a comunidade na totalidade, onde as desigualdades se ampliam com a precarização do trabalho e a periferização dos excluídos (sobrantes) sendo a população de baixa renda cada vez mais expressiva.

Na essência, se trata de um processo que reproduz local/regionalmente essa lógica e suas desigualdades, não sendo muito diferente do extrativismo de renda que acontece no e-commerce (comércio eletrônico) que, paulatinamente, vem engolindo setores do comércio e serviços nestas cidades de porte médio.

Esse texto visa chamar a atenção para a importância em se identificar esses movimentos que incluem as burguesias locais/regionais que navegam na ideologia da "ficção meritocrática".

Com a redução dos espaços da intermediação antes realizada pelo comércio local, que estão sendo capturados pelas redes e franquias, essa elite em boa parte caminhou para o rentismo imobiliário e financeiro.

A renda da terra das periferias destes municípios se transformaram em negócios de incorporação com valorização e capitalização de condomínios horizontais e verticais. Várias pesquisas indicam que antigos e grandes comerciantes locais destes municípios de médio porte, são hoje proprietários imobiliários e rentistas com aluguéis ou vendas relacionados à renda da terra e valorização imobiliária. Outros se transformaram em investidores de ativos financeiros, inclusive criptomoedas, ou esquemas de especulação rentista-financeira. Não por acaso, alguns caíram em negócios de pirâmide financeira.

O percentual da franquia ou os ganhos da intermediação das lojas das redes de varejo (muitas controladas como ativos por fundos financeiros) são direcionadas para a sede corporação das redes de lojas. A parte da renda que fica no município são dos salários dos empregados na loja local, impostos que em muitos casos são subsidiados com incentivos e redução de alíquotas e a parte do franqueado.

Processos de captura de rendas regionais em que as cidades de porte médio, que como polos, servem de base para essa extração de uma renda do comércio (intermediação) que antes ficava em sua maior parte da região, com a burguesia comerciante local.

Hoje, parte dessa burguesia, se transformou em rentista financeira ou rentista imobiliária e outra em franqueado, condição em que entrega parte da renda obtida com o franqueador, proprietário da marca.

Por tudo isso é possível afirmar que esses movimentos se encaixam na leitura de que eles são partes do tripé do capitalismo contemporâneo cujos três vértices são: reestruturação produtiva-digitalização / financeirização/ neoliberalismo.

A tendência desse sistema é forte, mas vale ir em sua contramão, ao apoiar o comércio e as marcas locais, ou os movimentos de cooperativa de produção serviços (escolas de idiomas, clínicas, etc.), créditos ou plataformas digitais, enquanto elas ainda sobrevivem.

Ações contra-hegemônicas como cooperativas financeiras, de produtos, serviços ou plataformas são desejadas e devem ser incentivadas, mas são processos que ainda demandam aprendizados na linha do "comum".

domingo, julho 17, 2022

“A ficção meritocrática”

O sentimento da meritocracia é inimigo da solidariedade e irmão da soberba e da vaidade. A meritocracia funciona como um “tapa olhos” que inibe que se enxergue o contexto e a sociedade como produtoras coletivas do que poderia haver de melhor em nós humanos. Ao inverso, a meritocracia realça o maniqueísmo entre poucos vencedores e a maioria de perdedores que se sentem sobrantes de uma sociedade globalizada e cada vez mais desigual.

O resultado disso tem sido o ódio, o ressentimento e a apartação violenta produzida pelo aumento das desigualdades e pelo individualismo com abandono da solidariedade como alternativa para as fases de colapso de nossos ciclos de vida individuais que poderiam ser compensados pelas fases de bonança de outros. Fora daí o que resta é o fascismo da superioridade étnica, racial e de títulos, pior que a barbárie, porque os bárbaros nunca foram assim, tão bárbaros.

Essa síntese surge da leitura de “A ficção meritocrática: executivos brasileiros e o novo capitalismo” (2022, 244 p.), livro e pesquisa organizados pelo professor Fabricio Maciel, junto com um ótimo grupo de pesquisadores. Devorei em dois dias a excelente publicação.

O livro oferece elementos empíricos e teóricos interessantes para compreendermos a sociedade produzida pelo capitalismo contemporâneo e seus agentes.

Estudar os executivos e gerentes é jogar luz sobre a origem e o percurso destes agentes, de certa forma escamoteados, que operam na alta e média direção das empresas e corporações que hoje atuam, cada vez mais sob a lógica do "capitalismo da gestão de ativos" e o controle das gestoras dos fundos financeiros. E também, em boa parte, daquilo que tenho chamado de "plataformismo", como etapa contemporânea do Modo de Produção Capitalista. 

A publicação nos ajuda a conhecer e começar a compreender o perfil, origem e "habitus" dos executivos que operam os ativos reais e financeiros do capitalismo contemporâneo. O livro faz uma análise empírica sobre a construção e naturalização do falso e individualista discurso da meritocracia que tenta expor o novo capitalismo flexível (Sennet) é estruturada em três eixos: origem social e familiar (habitus de classe), estilo de vida e o posicionamento político dos brasileiros.

É uma pesquisa e uma análise bastante rica, potente e que fortalece os argumentos teóricos de um conjunto de importantes autores do campo da sociologia como Pierre Boudier, Richard Sennet, Boltanski e Chiapello, Eric Fromm, Jessé de Souza, Wright Mills, Michael Sandel e o próprio Fabrício Maciel da UFF/UENF. 

A coletânea editada e publicada em e-book pela editora da Universidade Estadual do Norte Fluminense (edUENF) tem capítulos do organizador Fabricio Maciel e ainda dos pesquisadores: Carine Passos, Gabriel Duarte, Carolina Zetterman e Kimberly Gutierrez.

Parabéns a todos pesquisadores pela belíssima publicação que nos oferecem e que merece ser lida e aprofundada, bem para além da academia, por tudo que nos oferece para uma compreensão mais ampla da sociedade desigual em que vivemos e sobre o papel, a tirania e o totalitarismo que representa essa “ficção tecnocrática” sobre a maioria da população.

No link abaixo acesse ao PDF na integra do livro (e-book): https://drive.google.com/file/d/13-kJfzGgj3ISiexdkfom6GnZZjvmlvbl/view

terça-feira, julho 12, 2022

Sugestão aos amigos professores

Sei que por esse perfil passam muitos professores. Não quero aumentar as suas já altas cargas de trabalho. Não importa se professor de escola pública ou privada. Penso que a partir da 6ª ou 7ª série (inclusive), já seria uma idade suficiente para a abordagem. De forma especial, a partir do Ensino Médio.

Sem deixar o conteúdo próprio de cada disciplina de lado, a ideia que apresento é o de usar uma aula - ou parte dela -, para uma conversa com os alunos. Sim, diálogo. Bidirecional. Ouvir e falar, ou dialogar. Sugerir e intermediar a discussão.

O tema? É um assunto transversal e, na verdade, cabe em qualquer e em todos os conteúdos disciplinares, porque ele é também meio e método.

Sugiro que nem seja muito planejado e nem algo improvisado, mas que o colega professor se prepare minimamente sobre o tema que é algo do seu cotidiano e também dos alunos, para assim ajudar na mobilização intelectual.

Talvez seja um dos temas mais importantes para os adolescentes, jovens e estudantes maduros na atualidade. O professor não precisa dominar o assunto da tecnologia digital. Aliás, é bom que não queira saber demais sobre o tema. A ideia é que como mediador ele traga ao centro do debate um assunto que ele possa mais ouvir.

Assim, penso que o assunto não será enfadonho. Ao inverso, imagino que vá gerar ânsia para falar e ouvir os colegas. Refiro-me a um debate crítico sobre as mídias digitais e as redes sociais. Plataformas digitais como instrumento de trabalho e de comunicação. As redes sociais se tornaram onipresentes depois que entraram nos celulares (internet móvel). Informação (desinformação ou fake news). Estamos imersos em bolhas ou em guetos de grupos digitais? O que é feito com nossos dados? É legítimo a restrição de idade para uso das redes sociais? Em qual idade? Nossas relações em sociedade estão mudando muito ou sempre foi assim? Porque as tecnologias digitais são tão atrativas e simultaneamente preocupantes?

Não pretendo com esse pequeno detalhamento sugerir subtemas. Também não sugiro que apresente eles para os alunos. Eles até podem surgir, mas listo aqui apenas para ajudar o professor a pensar sobre o que poderá surgir da conversa e, se for o caso, inserir um ou outro ponto, como ponderação e reflexão na discussão, a partir do seu papel de mediador. Aliás, é um bom exercício para aquele professor que ainda vai para as aulas professar o que sabe, quando a escola e nós professores, já devíamos ter saltado para um papel que considero ainda mais importante e desafiador.

A sugestão é que seja uma conversa livre, mesmo que mediada, ou intermediada, para dar voz aos argumentos do maior número de alunos possível. Lembro que essa minha sugestão não é para aula específica de informática. Até penso que lá deveria ter espaço para essa “análise crítica”, mas a ideia é que se vá além da tecnologia como ferramenta, mas pensar como ela já influencia as nossas vidas pessoais e em sociedade num mundo em veloz transformação.

Em escolas púbicas e com alunos de baixa renda, mesmo sabendo que se vive com exclusão digital e dificuldades de acesso à internet, o tema poderá instigar a pensar sobre as desigualdades (sim, no plural) que eles vivem. Avaliações críticas surgirão tanto sobre a disponibilidade e captura de dados pelas empresas de telefonia e tecnologia, quanto a privacidade e o tempo que nos é roubado, assim como a quê e a quem tudo isso tem servido?

A ideia não é dirigir o debate para conclusões que, obviamente, podem ser produzidas por alguns, mas instigar reflexões e questões. Sugerir pesquisas relacionadas à disciplina do professor e, especialmente, estimular para tentarem “ligar as pontas das informações” que já possuem e outras que possam capturar, a partir desse diálogo, para a construção de leituras surgidas dessa mobilização intelectual.

Interessa menos o resultado e mais o processo. Aliás, é assim toda vez que se trata de construção de conhecimento e não da já superada e conhecida transferência de conteúdo.

Esse processo tende a produzir conhecimento potente, transversal e transdisciplinar. Apropriação e construção de saber (há quem prefira chamar de competência). Razão de ser (stricto-sensu) da escola. Ao final, se não for pedir demais, sugiro ainda que contem suas experiências aqui em suas redes (para nós) e para outros professores.

Se julgar a sugestão impertinente, deixe-a de lado. Apenas, guardo uma curiosidade sobre os processos que elas possam suscitar tanto aos estudantes quanto aos professores e também à escola.

sábado, julho 09, 2022

Alzheimer digital: risco a ser evitado!

Alzheimer é uma terrível, dolorosa e conhecida doença que afeta os idosos. Trata-se de uma demência neurodegenerativa desenvolvida no sistema nervoso que decorre, possivelmente, do processamento de certas substâncias.
 
Num paralelo, surgido da mania de “pensar alto”, é possível estimar que essa nossa mania digital de guardar nossas memórias nas “nuvens” e nos socorrer do buscador Google e outros, pode estar nos levando ao risco de um humano contemporâneo, em processo acelerado de desmemorização.

Um sujeito - ainda prematuramente - solto no tempo e no espaço, sem (ou com poucas) memórias, identidades, história e com vínculos mais frágeis com o passado que parecerá sempre ser de outro.

Cada vez mais nos sentimos nessa situação. Faltam palavras para exprimir ideias, para lembrar datas, pessoas, fatos, nomes e conceitos e, dessa forma, recorremos a essa muleta digital. Em troca ela recebe e arquiva nossos dados, realizando assim, uma “guarda” externa de partes importantes de nossa memória.

A memória é algo interessante. Uma capacidade de reter fatos, ideias, sensações, pensamentos. Mais ligada a um passado vivido, mas também pode ser prospectiva e mistura impressões que outros viveram. Podendo ser ainda memórias destas relações comparativas.

A memória é abstrata nas intenções e concreta nos arquivos. Individual e coletiva. Psicológica e importante para reter singularidades que ajudam na sanidade mental, mas também sociológica das lembranças das relações entre pessoas

A sua falta leva à perda do sujeito. Recuperar ou reter a memória é questão humana. Vacinas e remédios também se tornam urgentes contra o “Alzheimer digital”.

Medidas para deter o novo-velho distúrbio cerebral, interrompendo a progressividade ou mesmo buscando sua reversibilidade com retomada da memória e das habilidades de pensamento daí derivadas.

Ao contrário da doença original, esse distúrbio tende a afetar a todos que vivemos imersos no mundo digital que nos invade por longos períodos diários entre computadores, tablets e celulares.

Porém, de forma especial nesse caso, as maiores vítimas, podem ser as gerações mais novas (Z e Y), exatamente, aquelas que ainda possuem pouco passado e memórias, hoje já transmutadas, quase autonomamente e, de forma tenra, para os drives e nuvens das Big Techs: Google, Microsoft e Amazon.

O pensamento crítico que articula as várias pontas desse potente fenômeno é uma forma de cuidar da nossa memória, mas também de articulá-las para interpretações e leituras sobre essas transformações contemporâneas. 

Seria dever do Estado cuidar da saúde coletiva e da sanidade dos sujeitos. Nesse mundo distópico e encantado de forma pueril com a tecnologia observamos que estamos nos distanciando desse dever. Assim, cuidemo-nos, pois!