Estive em novembro passado quase vinte dias entre Portugal e Espanha. Uma passagem rápida, mais de apoio e passeio do que de observações. Mas, num período como esse, de grandes transformações no mundo, ninguém vai a outros lugares deixando de lado as manias de pesquisador.
Nos meus estudos sobre os fundos financeiros e suas
gestoras, eu tento acompanhar sempre e em mais detalhes como os investidores de
“capital de risco”, capturam oportunidades de altos rendimentos e de curto
prazo com os ativos da economia real que estão transformando a forma de
intermediação financeira.
Nesse movimento alguns setores e espaços (territórios) se
alternam como atratividade para esses investidores que buscam ganhos e
acumulação de capital. As plataformas digitais e empresas-aplicativos são cada
vez mais instrumentos que auxiliam e ampliam essa captura.
É no meio desse processo que a renda da terra, desdobrada de
forma resumida como “renda-imobiliária” vai se tornando ainda um maior atrativo
para captura de excedentes econômicos em diferentes partes e regiões das
nações, em especial, as capitais e metrópoles ao seu redor.
É nessa direção que alguns pesquisadores têm falado sobre o
rentismo da ‘indústria’ (sim, entre aspas) dos aluguéis. Um atrativo cada vez
mais forte, mesmo que segmentado e organizado no interior desse setor, entre os
fundos imobiliários (FII), mas também para fundos híbridos, multimercados
(hedge) e outros.
No Brasil passa também pelos FIPs (Fundo de Investimento em
Participações, uma composição de recursos que se destinam à aplicação em
companhias abertas, fechadas ou sociedades limitadas) que também envolve a área
de infraestrutura que direta e indiretamente se liga ao setor e ao rentismo-imobiliária,
velho conhecido desde o início do capitalismo.
Já vem sendo bastante comentado o aumento do custo de vida
para moradores de cidades-metrópoles como Berlim, Paris e mesmo Lisboa e Madri
no sul europeu, decorrentes do aumento do valor de moradias (pisos) em áreas
mais centrais que empurram os moradores para as periferias cada vez mais
distantes dos locais de trabalho e do centro.
Trata-se entre outros de fato ligado à migração de pessoas
de maior renda de outras nações, mas também à destinação de moradias para
aluguéis de temporada através de aplicativos tipo AirBnB. Isso também já é
percebido no brasil, em especial São Paulo e Rio de Janeiro, atraindo,
investidores e gestoras de fundos para esses ganhos acima da média.
Investidores estão sempre atrás de alta rentabilidade em
curtos prazos. Assim, captam donos de poupança (excedentes) que como investidores
se transformam em quotistas de fundos. Estes adquirem prédios mais antigos,
reformam prédio e as unidades habitacionais, em especial de um ou dois quartos,
que ganham tanto em valor de mercado quanto ampliam os ganhos com os aluguéis,
contratados via aplicativos, mas com alta rentabilidade e dinheiro vivo. E uma
razão alimenta a outra. Se produzem boa rentabilidade com aluguéis, também
ganham valor de mercado para a venda.
Esses fatos já são conhecidos e bem estudados por
pesquisadores que investigam a financeirização ligada ao setor imobiliário
vinculado à moradia. Aluguéis de médio ou curto prazo que garantem grandes
volumes de extração de renda e excedentes destas cidades que ficam com muito
pouco ou nada dos ganhos deste processo, a não ser as consequências.
Os municípios e as regiões se movimentam, impõem taxas para
essas locações de curto prazo, mas são reações que não modificam o quadro geral
de uma quase indústria de vampirização de rendas locais que impacta
negativamente as economias regionais e seus moradores, porém, seguem trazendo
lucros extraordinários àqueles investidores do andar de cima, em especial, após
a pandemia.
Os lucros hoje já são superiores aos que se tinha em 2019,
antes dos impactos da redução no fluxo de pessoas em todo o mundo. Hoje, as
pessoas querem e estão circulando mais do que antes da pandemia.
Os ganhos rentistas desses fundos nesse setor de locação de
curto prazo dependem muito desse estímulo ao turismo (programas de TV e
cadernos de jornais sobre viagens que parecem neutros), outro setor que se
vende como ‘indústria’ e que depende muito da precarização dos serviços e das
relações de trabalho.
Diante deste quadro, eu que me utilizei em algumas das
cidades que passei destas locações - via aplicativos - e não de hotéis (porque
hospedagem para três pessoas com esposa e filha é melhor), e assim foi possível
entender um pouco mais do que se está passando.
O caso do rentismo
imobiliário em Barcelona
Matéria no El País, 18/11/2022. |
A reportagem traz dados da terceira edição (2021) do estudo sobre “Estrutura e concentração da propriedade de moradias em Barcelona” que foi realizado pelo Observatório Metropolitano de la Vivienda de Barcelona.
Os dados chamam a atenção: a) o percentual
de moradores que vive de aluguel em Barcelona subiu cerca de 40% desde 2000,
quando se situava em torno de 30% e que a maioria das moradias (pisos) alugados
(51%) são de proprietários que possuem três ou mais moradias; b) 38,5% das
moradias de Barcelona são atualmente de aluguel, que em números absolutos chega
a 290 mil moradias do total de 754 mil existentes; c) A maioria (+de ¾) são dos
grandes proprietários com dez ou mais moradias está nas mãos de pessoas
jurídicas (77,3%), possivelmente, em boa parte, gestora de fundos de
investimentos que enxergam no setor imobiliários ótimas possibilidades de boas rentabilidades
de dinheiro vivo e a curto prazo.
Os responsáveis pelo estudo quantificaram em 720 mil pessoas vivendo de aluguel em Barcelona, dados que equiparam a região com Berlim e Paris que vivem problemas semelhantes e já implantaram algum tipo de controle para regulação de preços dos aluguéis.
Como se vê, o estudo traz indicadores claros sobre as razões da grande magnitude de moradias em situação de aluguel num momento de crise habitacional local decorrente com altos preços que estariam levando o governo provincial a propor um lei sobre a questão como vem sendo feita em algumas metrópoles do norte da Europa, em especial Belim e Paris.Na maioria dos países da Europa, o governo não dá a
titularidade de habitações públicas para moradores de menor renda, como no
Brasil. Elas se mantêm públicas e moradores de menor renda, usufruem o direito
de morar. Em Barcelona, as moradias de titularidade pública são apenas 12 mil,
1,7% do total e 4,4% do universo que estão em situações de aluguel e se situam todas
em bairros periféricos.
Renda imobiliária
alimentando os fundos, a lógica de investidores e as desigualdades sociais
Esses dados reforçam essa interpretação da ‘indústria’ dos
aluguéis que se reforça com a demanda daquelas demandas por baixa temporada, em
especial de turistas, que se dispõem a pagar valores maiores por menor período.
As plataformas digitais e empresas-aplicativos de aluguéis e estadia se
tornaram instrumentos indispensáveis para o crescimento dessa realidade.
Assim, os investidores ganham duplamente. Primeiro, com a
valorização do imóvel e sua área, onde normalmente possuem e investem em outros
prédios e apartamentos, mas com a sua alta rentabilidade, isenta da maior parte
dos impostos. Perdem, os moradores locais que acabam impactados pelos turismo.
Tem-se aí um conjunto de problemas de ordem social e
política. Surgem daí vários estranhamentos e incômodos que ajudam a explicar as
reações e o surgimento de movimentos de extrema-direita (fascistas) que se
apresentam como antiestablishment.
É um movimento paradoxal e contraditório, até porque os que
mais ganham com tudo isso são os que controlam esse setor, os investidores que
se situam no andar de cima, exatamente, os que mais faturam com esses processos
e estratégias. Porém, esse já é outro assunto, embora, fortemente vinculado.
Referências:
[1] Matéria no jornal La Vanguardia, Barcelona, em 18 de
novembro de 2022. El 36% de los pisos de
alquiler de Barcelona son de grandes propietarios. VIVIENDA: El parque de
alquiler representa el 38,5% de los tres cuartos de millón de viviendas de la
ciudad. Disponível em: https://www.lavanguardia.com/local/barcelona/20221118/8611837/36-pisos-alquiler-barcelona-son-grandes-propietarios.html
[2] Matéria do El País, Madri, em 19 de novembro de 2022, Seção
Cataluña, p. 20. (Edição Online em 18 de novembro 2022). El 365 de los pisos de alquiler son de grandes tenedores. Disponível
em: https://elpais.com/espana/catalunya/2022-11-18/el-36-de-los-pisos-de-alquiler-en-barcelona-son-de-grandes-tenedores.html
[4] Link para baixar a síntese da apresentação dos resultados do estudo Estructura i concentració de la propietat d’habitatges a Barcelona. Conjunt del parc i segment de lloguer 2021. Disponível em: https://www.ohb.cat/wp-content/uploads/2022/11/O-HB-Presentacio-Laboratori-Propietat-2022.
PS.: Atualizado às 00:42 de 05/12/2022:
Abaixo um link de matéria do Dow Jones, traduzida e republicada pelo Valor (30/11/22) que detalha estratégias da empresa-plataforma AirBnB que articula relação entre fundos e proprietários de imóveis nos EUA, exatamente para expandir o que foi comentado no texto sobre o case de Barcelona. Destaco dois trechos da matéria cujo link está referenciado abaixo. Os grifos são meus:"O Airbnb está apostando que, ao tornar mais rentável financeiramente para os proprietários permitir sublocações, mais pessoas o farão."
"Adicionar à sua plataforma mais apartamentos para alugar abriria um mercado amplamente inexplorado. Cerca de um terço das famílias americanas alugam suas casas, mas os apartamentos em prédios representaram apenas cerca de 14% dos anúncios do Airbnb em outubro, de acordo com a AirDNA, uma empresa de pesquisa de mercado."
Nenhum comentário:
Postar um comentário