Tenho visto seguidos textos de jornalistas e colunistas da mídia mainstream (corporativa) reclamando que o novo governo Lula mantém em seus discursos a polarização com a extrema-direita que deveria abandonar.
Cabem duas leituras nessa avaliação. Uma crítica que entende
que essa avaliação desconsidera que os riscos do fascismo não estão encerrados
com a saída do militarismo-bolsonarista do poder no país. E, portanto, entende-se
que não cabe tréguas, nesse enfrentamento que continua disputando o poder com o
regime democrático e a superação do neoliberalismo.
A outra leitura, mais compreensiva, que merece ser debatida,
evidencia uma incompreensão sobre a tecnopolítica a que estamos inseridos. Essa
incompreensão vai além da leitura desses colunistas e permeia a sociedade
contemporânea, que ainda insiste em enxergar política dissociada da indústria
tech, da plataformização e do neoliberalismo, que juntos e imbricados nos
rodeiam, nos envolvem e produzem o mal-estar e as distopias que sentimos.
Por tudo que se percebe, essa ladainha que reclama da
polarização não nos abandonará tão cedo. A busca pela racionalidade e contra a
realidade paralela que convive bem com a extrema-direita parece salutar e desejável.
Porém, não se deve deixar de lado a constatação da não linearidade com que a
disputa política pelo poder hoje está imersa, no interior de uma imensa
infraestrutura técnico-digital controlada pelas big techs, em que as redes e
mídias sociais são partes importantes e indissociáveis.
No caso do Brasil, com Lula-3, a questão não é se deve ou
não fazer revogaço de atos abusivos, absurdos, anticientíficos e anticivilizatórios
do governo anterior, responsabilizar e pedir julgamento, sem anistia para
nenhum dos atos genocidas e irresponsáveis dos agentes do
militarismo-bolsonarista de extrema-direita. Só que isso não tem a ver com a
polarização e, sim, com a disputa civilizatória da democracia contra o
autoritarismo no Brasil e no mundo.
A tecnopolítica segue
junto do mal-estar que provoca entre indivíduos e o sistema social que estimula
“padrões antiestruturais” que parecem buscar uma nova ordem. Os sujeitos e o
sistema técnico-digital de algoritmos se imbricam, intermediados por
plataformas digitais estruturadas como startups e financiadas pelos fundos
financeiros.
Cesarino (2022, p. 89) diz que “os ambientes das novas
mídias são construídos a partir do pressuposto inverso àquele que orienta a
normatividade e o senso comum na modernidade liberal: o usuário humano não é o
agente, mas o ambiente, para a agência de sistemas não humanos”. [1]
É desse imbricamento entre sujeito e máquinas da indústria
tech que a política tem se desenvolvido. Esses sistemas técnico-digitais deixam
evidentes, os vieses que ajudam a explicar porque a política vem sendo subjugada
à técnica, ampliando suas características centralizadoras e autoritárias, em
detrimento da propalada e desejada descentralização, flexibilidade e democracia.
O professor Rodrigo Nunes (2022) em seu bom livro “Do transe
à vertigem: ensaios sobre bolsonarismo e um mundo em transição” lembra que a
construção do bolsonarismo, a ascensão global da extrema direita e as
polarizações políticas da última década são objetos de estudo complexos, multifacetados,
compostos de diferentes dimensões e temporalidades”. “Aquilo que estamos
vivendo tem raízes suficientemente profundas para que uma simples mudança de orientação
política no topo não baste para mudar o que ocorre na base da sociedade”. [2]
Nunes (2022, p.26) cita o sociólogo Gabriel Feltran que identificou
três “matrizes discursivas” na composição do bolsonarismo: “militarismo
policial” (apoio a políticas de lei e ordem e ao uso extrajudicial da força); “anti-intelectualismo
evangélico” (rejeição da ciência e da educação formal em favor da religião e da
experiência pessoal); “empreendedorismo monetarista” (um ethos de “empreendedor
de si mesmo” no qual a precariedade equivale a autonomia).
A polarização, a tecnopolítica e o neoliberalismo avançam
também a nível global, como fenômenos em curso, em meio à crise de legitimidade
na política mundo afora. Esse processo se desenvolve junto da queda de
crescimento da economia global que vem ampliando a temporalidade das crises, surgidas
junto do avanço da hegemonia financeira no capitalismo contemporâneo.
Neste contexto é que o filósofo inglês, Mark Fisher se
referiu, já em 2009, ao “realismo capitalista” questionando se era “mais fácil
imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, mas sobretudo criticando as
contradições e inconsistências do neoliberalismo, que se impunha contra aquilo
que é, efetivamente real. [3]
Para fechar, entendo que tudo isso expõe um debate maior que
é a reação à essa realidade num mundo em transformação veloz, extensa e
profunda. Aguardar que essas transformações fiquem mais claras para se intervir
não seria aceitável. É nesse contexto que se deve olhar a importância do
mandato Lula-3.
Assim, há que se refletir e agir com ambição transformadora
dentro do que é possível. Porém, para isso é também necessário compreender
melhor, os fenômenos estruturais, conjunturais, políticos, econômicos, sociais
e geopolíticos em curso no Brasil e no mundo.
E nesse campo, nada indica que a polarização sairá de nosso
quotidiano e do nosso horizonte mais próximo. Será nesse ambiente, que
haveremos de intervir nos limites do possível (ou do impossível, em termos de
utopia), em meio a todas as infraestruturas técnicas, gigantismo e concentração
que buscam controlar os sujeitos, seu modo de ver o mundo, as pessoas, as coisas
e o modo de agir politicamente.
Referências:
[1] CESARINO, Letícia. O mundo do avesso: verdade e política
na era digital. Ubu Editora. São Paulo, 2022.
[2] Nunes, Rodrigo. Do transe à vertigem: ensaios sobre
bolsonarismo e um mundo em transição. Ubu Editora, 2022.
[3] FISHER, Mark. Realismo capitalista. Autonomia Literária, São Paulo, 2009 (1ª edição) e 2022.
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