segunda-feira, janeiro 23, 2023

O ciclo de desemprego nas Big Techs: tecnologia, plataformização e captura do valor do trabalho

Ao contrário do que muitos pensam, a redução expressiva de funcionários das Big Techs que deve superar uma centena de milhares em todo o mundo, não retirará delas, o poder que exercem como empresas de infraestrutura digital. A Forbes fala (23/01) em quase 60 mil demitidos e diz que "as demissões nas big techs afetam mais de 200 mil pessoas nos Estados Unidos". [1]

Como tudo no capitalismo, trata-se de um ciclo que alterna suas fases de expansão (boom) e colapso. Nestas ocasiões ocorrem fenômenos que já são mais ou menos conhecidos, em especial me refiro aos Ciclos Sistêmicos de Acumulação (CSA) explicado por Giovani Arrighi desde 1997, a partir da Economia Política. [2]

Os altíssimos investimentos que as Big Techs receberam nos últimos anos, oriundos, em sua maioria, de grandes fundos financeiros, possibilitaram a expansão que a digitalização vista de forma mais clara na Pandemia.

O aumento do valor de mercado, que se quintuplicou neste curto período, antecipou a fase de sobrevalorização e sobreprodução dos serviços que elas oferecem a todos os setores da economia e à sociedade na totalidade.

Nesta virada de fases do ciclo da "indústria tech", essas “big companies” mantiveram e ampliaram a sua hegemonia em relação às demais, até porque elas conseguiram concentrar os aportes de capital dos investidores, sobre possíveis concorrentes, ampliando a concentração e o processo de dominação que exercem em todo o ocidente.

A partir desta fase de corte de investimentos, as Big Techs enxugarão seus custos (farão a famosa reengenharia, sic), mas certamente, manterão, ou até ampliarão, as suas taxas de lucro, mesmo que com isso estejam levando milhares de trabalhadores superqualificadas ao desemprego. Além das Big Techs, os setores de tecnologia da informação (TIC) de grandes corporações também estão sofrendo fortes demissões. Um corte transversal e similar à atuação deste setor na economia.

No médio prazo, a tendência é que parte desse pessoal de alta qualificação em TIC, desenvolva outras ideias (não nas garagens, sic) para lá adiante (nem tanto assim, pois os ciclos hoje são mais curtos) atraírem novos investidores de risco (venture capital), dentro dos processos hoje chamados de startupização. Aí estaremos seguindo o vaticínio do Lampedusa que dizia que algo precisava ser mudado para que, ao final, tudo permaneça do jeito que está.

O caso da "indústria" tech tem especificidades, em relação a outros setores da economia, mas no geral obedecem aos movimentos cíclicos do regime capitalista. Não esqueçamos disso.


A intensa relação entre dominação tecnológica-digital e a hegemonia financeira   
A tecnologia é transversal e com a digitalização de tudo, a demanda por essa infraestrutura continuará a crescer, mas em velocidade um pouco menor. Esse capital, que agora tende a ser atraído para outros setores, de alguma forma continuará a depender dessa gigante infraestrutura digital e assim voltará a puxar a "indústria tech" para nova fase de expansão, em um novo ciclo.

A valorização e a capitalização das empresas de tecnologia já cresciam e se multiplicaram, mas foi com a Pandemia, que houve uma explosão, que acelerou no tempo o ciclo de expansão levando a um pico sequer imaginado. No final de 2021, nove das dez corporações globais com maior de mercado, nove eram do setor de tecnologia e apenas uma do setor petróleo. [3]

Assim, na média, nos últimos cinco anos se pode dizer que o valor de mercado delas se quintuplicou, número aproximadamente igual ao fator multiplicador observado na contratação de empregados. Neste mesmo período, nas maiores Big Techs o número de trabalhadores do setor digital aumentou cerca de 600% e hoje estaria entre 150 mil e 200 mil funcionários em todo o mundo.

No atual "freio" de contratações derivado da redução de investimentos e do valor de mercado destas corporações, já se contabiliza que suprimirá mais que seis dezenas de milhares de empregos. Algo superior a um terço da mão de obra (ou braços e mentes de tecnologia), hoje, a serviço de todo o setor.

É um erro tentar investigar esse fenômeno desgarrado de outros no processo histórico e sem a leitura da Economia Política. Porém, é um equívoco ainda maior - e hoje cometidos por muitos – analisar esse processo sem considerar, a relação entre o desenvolvimento da tecnologia e a financeirização. A utilização do instrumento dos fundos financeiros (capital de risco e startupização, ou capitalismo sem risco) e numa lógica individualista, meritocrática e neoliberal. [3] [4]

Essa leitura mais totalizante permite que se compreenda melhor o que passei a chamar de dominação tecnológica que contribui para o avanço da hegemonia financeira e do ideário neoliberal.

Para aqueles que desejarem entender um pouco mais esse processo da intensa relação entre o avanço das Big Techs e a financeirização e as estratégias dos donos dos dinheiros nessa hegemonia, vou sugerir três séries que estão aí nos streamings, também empresas- plataformas e com dinheiro de investidores.

Em que pese o ar triunfalista dos roteiros - e às vezes caricatural -, mesmo com alguma crítica, os roteiros dão pistas claras de como foi se construindo essa relação entre a inovação, startupização e financeirização, em especial, a partir do Vale do Silício nos EUA: 1) Super Pumped: a batalha pela Uber (roteiro a partir do livro "A guerra pela Uber" de Mike Isaac, 2019, Intrínseca); 2) Som na caixa: a história do Spotify; 3) Batalha Bilionária: o caso do Google Earth.


Plataformização, IA e captura rentista do valor do trabalho
A redução do número de empregos nas grandes corporações de tecnologia e empresas-plataformas de mídias sociais é expressivo, e seus controladores seguem testando limites de cortes. O Twitter recentemente comprado pelo polêmico e direitista, Elon Musk, já está trabalhando com menos de um terço do número anterior de empregados, sem que ainda se perceba alterações maiores, a não ser no direcionamento feito pelos seus algoritmos que agora seguem novas orientações ideológicas.

Muito do trabalho dos trabalhadores demitidos é hoje executado pelas máquinas que eles mesmo programaram. O aprendizado de máquina e a Inteligência Artificial (IA) reprogramam os sistemas e exigem menor número de trabalhadores reais nestas empresas-plataformas. Aqui vale lembrar que tudo isso não deixa de ser criação e trabalho humano, porque as tecnologias sempre têm origem a partir do trabalho humano.

O desenvolvimento destas tecnologias, incluindo o “machine learning” (aprendizado de máquina) ou, o “deep learning” (aprendizado profundo), na prática, são forças produtivas e relações de produção "recheadas de geleias de trabalho humano" (Grohmann, 2020). [5]

Observando esse desenvolvimento em termos sistemas e numa perspectiva de totalidade, é possível afirmar que a plataformização do trabalho e das empresas vieram para ficar, independente da velocidade da implantação da tecnologia e de seus efeitos. Porém, o que não mudará será a necessidade de organização de quem a desenvolve, de forma a similar a quem dirige esse processo a partir do capital. Só a organização dos trabalhadores poderá fazer algum enfrentamento a esse processo e as estratégias nele embutido.

Ao dono do capital (investidores, donos dos dinheiros) e destas empresas-plataformas interessa a extração e captura do maior valor possível de todo esse trabalho desenvolvido pelo humano (trabalhador), que nos faz relembrar da existência permanente das classes sociais, dividida entre os proprietários e os trabalhadores.

Isso na essência não se transformou, a despeito do uso que todos fazemos da tecnologia como Infraestrutura transversal que atravessa as várias dimensões da vida em sociedade, assim como da economia e da política, como partes do regime que nos aprisiona.


Referências:

[1] Forbes em 23 jan. 2023. Quase 60 mil demitidos pelas bigs techs e os cortes continuam. Disponível em: https://forbes.com.br/forbes-money/2023/01/demissoes-pelas-bigs-techs-e-os-cortes-continuam/  

[2] ARRIGHI, G. A ilusão do desenvolvimento. Petrópolis, Editora Vozes, 1997.

[3] Pessanha, Roberto Moraes. Inovação, financeirização e startups como instrumentos e etapas do capitalismo de plataformas. In: GOMES, M.T.S., TUNES, R. H. OLIVEIRA, F.G. Geografia da Inovação: território, redes e finanças. Consequência. Rio de Janeiro. 2020. P.433-468.

[4] MACIEL, Fabrício (org.) Ficção meritocrática: executivos brasileiros e o novo capitalismo. Eduenf. Campos dos Goytacazes. 2022.

[5] GROHMAN, Rafael. Plataformização do Trabalho: características e alternativas. In: ANTUNES, Ricardo. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. BoiTempo. São Paulo. 2020.

Um comentário:

Unknown disse...

Muito do trabalho dos trabalhadores demitidos é hoje executado pelas máquinas que eles mesmo programaram.
É isso. E é importante levar em consideração que este uso do registro pelas máquinas do trabalho intelectual também se espraia por outros setores da economia que estão sendo apropriados pelo capital, como a educação superior, por exemplo. As universidades privadas estão montando banco de questões produzidas pelos atuais professores, acompanhadas das respostas corretas, e há notícias de que podem eventualmente exigir que o professor abra mão de direitos autorais, Isto indica intenção de seu conveniente reuso posterior. A coincidência neste momento das demissões nas redes de TV no Brasil precisa ser estudada como possivelmente associada a este ciclo do capitalismo apoiado no trabalho intelectual. Tudo isto exige um nível de organização dos trabalhadores intelectuais sem precedentes, o que ainda não se vê.