Nessa virada de ano ofereço a sugestão de dois livros que merecem ser lidos, para se tentar compreender um pouco mais o fenômeno da fé e da religião evangélica - que não para crescer em todo o país - e sua relação com o crime, o tráfico e as milícias no Rio, São Paulo e em todo o Brasil.
São duas publicações editadas nesse ano de 2023. O autor do
livro “A Fé e a Religião: Crime e religião no Brasil do Século XXI” é o
jornalista Bruno Paes Manso que é quem indica e prefacia o segundo livro “Traficantes
evangélicos: Quem são e a que servem os novos bandidos de Deus” de autoria da
Viviane Costa.
Bruno Manso tem doutorado pela USP, mas se apresenta apenas como jornalista e pesquisa o assunto da violência urbana há mais de duas décadas. Ele é também o autor do livro (que ainda não li) “República das Milícias”. Já a Viviane Costa é licenciada em história, mestra em Ciências da Religião e pastora da Assembleia de Deus.
O primeiro livro, o do Manso, trata mais do fenômeno do PCC e da
expansão dos evangélicos na região metropolitana de São Paulo, mas não unicamente.
Já o segundo livro da Viviane trata mais do que autora chama de “narcoreligiosidade
carioca” que envolve ainda a periferia da região metropolitana que inclui a Baixada Fluminense. A
abrangência geográfica das duas publicações permite uma análise mais profunda,
assim como suas ligações com outras regiões do país e mesmo o interior dos
estados RJ e SP.
De cara digo, que os dois livros me impactaram profundamente
e percebi com a visão que temos desse fenômeno é superficial, preconceituoso e
quase invisível diante do todo, seja da política, da economia e/ou da vida em
sociedade no Brasil contemporâneo.
A religião evangélica está por meses ou anos para se tornar
a religião hegemônica no Brasil, embora a estimativa tenha sido feita até o ano
do 2030.
O livro “A fé e o fuzil” de 301 páginas do Manso vai além da
análise das milícias do seu livro anterior, tratando também do tráfico, mas
foca nas razões que podem explicar o crescimento da igreja evangélica pentecostal,
a partir da rede de proteção material e de solidariedade humana oferecida por
essas organizações entranhadas nas comunidades, em especial, as periféricas e de
sua a relação, quase automática, com os grupos criminosos com os quais seguem
ambiguamente convivendo e se retroalimentando.
Como bom jornalista e pesquisador, Bruno Manso ouviu muitos
assassinos, pastores e gente convertida. Muitas vezes, exatamente os mesmos
personagens, apenas em lapsos de tempo distintos. Com texto perfeito, direto,
contextualizado e que fui facilmente, o relato descortina um mar de questões e
indagações sobre a sociedade brasileira e periférica contemporânea. Penso que
se trata do relato de uma pesquisa com forte poder de contribuir com explicações
para a questão do peso dos evangélicos na ascensão da extrema-direita no
Brasil.
Manso descreve também como se dá a montagem dos “exércitos
da fé” e sua preparação para o que chama de “batalhas espirituais” da salvação
do apocalipse. A guerra do bem contra o mal aliada à teologia da prosperidade
(empreendedorismo de si próprio) que, de certa forma, ajuda na explicação (para
muitos, contraditória) sobre as razões da defesa pelos evangélicos para o uso
das armas para sua “guerra santa”.
Assim, a periferia está cada vez mergulhada nessa
alternativa, desacreditada daqueles que defendem a política, as políticas
públicas e o aperfeiçoamento do Estado que muitas dessas organizações enxergam
como problema e inimigos do seu bem-estar e da sua forma de ver o mundo.
O segundo livro “Traficantes Evangélicos: Quem são os novos bandidos de Deus” da Viviane Costa é outro relato de pesquisa que nos auxilia na compreensão sobre o fenômeno ligado às relações do narcotráfico com o pentecostalismo que compõe o que autora chama de “narcoreligiosidade carioca”. Um fenômeno que se integra à dimensão da política e da disputa pelo poder no Rio ligado ao surgimento da facção bolsonarista e da guerra urbana dos territórios pentecostalizados (a autora não separa a fração do neopetencostalismo).
Viviane em sua publicação de densas 170 páginas, expõe um pentecostalismo
fluido do “espírito santo” que protege a todos que se associam contra o mal,
seja quem for: o Estado, ou os grupos rivais na disputa pelo território que tem
levado a um “Jesus dono desse lugar” a partir da narcoreligiosidade.
É importante registrar que a autora não apenas dá crédito,
mas utiliza de uma forma inteligente, resgatando e contextualizando, em ótima síntese,
fontes anteriores que pesquisara e trataram do tema como Marcos Alvito, Cristina
Vital da Cunha, Patrícia Birman, o próprio Bruno Manso e dezenas de outros autores citados nas referências), indo
bem além, numa pesquisa empírica de quem vê e vem de dentro do fenômeno e no território
onde o mesmo se desenvolve.
Viviane Costa explica em boa parte essa guerra do bem (guerra
das divindades ou guerra santa) que envolve as disputas pelo domínio do território.
Em que pastor pode ser também chefe do tráfico (TCP), frequenta cultos e se
mistura nessa ambiguidade (para nós estranha), mas que dá direção ao seu grupo,
ao território, constitui novas lideranças, define estratégias, etc. tudo (ou
quase) sob “a orientação de Deus”.
Viviane atualiza dados sobre a colossal expansão da religião
evangélica que se sustenta numa potente rede de proteção material e espiritual
onde o Estado é ausente. Assim, falam de manuais, dão orientações de táticas de
guerra, de expansão do credo e informam sobre novas batalhas santas (“proibidões”)
quando e onde formam novos ídolos e personalidades (gospel e influenciadores),
estilos culturais, etc.
Ambos os relatos permitem ver, por boas frestas, como a religião
evangélica se torna uma chave interpretativa das dinâmicas de violências
facciosas no Rio de Janeiro para domínio do território, visto como espécie de “reconstrução
dos muros da Cidade Santa” que obedeceria a ordens divinas em territórios em
que “Jesus passa a ser o dono do lugar”, como o Complexo de Israel
(Parada de Lucas e Vigário Geral), da mesma forma que se entende a hegemonia
política da extrema-direita na periferia do Rio de Janeiro.
Fica claro com o livro, as identificações econômicas e
neoliberais comuns às teologias pentecostais que aparecem não por acaso nas
estruturas dessas organizações narcoreligiosas.
Trata-se de um fenômeno complexo, amplo, mais que ambíguo,
multifacetado e para nós (outros, quase em minoria), ainda quase que invisível.
Um fenômeno que, segundo a autora “se entrelaça em nome de Deus, por disputas
espirituais e por território, nas fronteiras de uma guerra que não tem fim no
horizonte”.
Penso que é preciso sair da superficialidade das leituras
preconceituosas e da ideia apenas das diferenças entre pentecostais e neopentecostais
como base da extrema-direita nas periferias de nossas metrópoles. Há que se
oferecer alternativas e isso não é simples, porque se enfrenta uma enorme base
instalada de organizações que fazem a mistura do divino com o material e a
junção da concepção de mundo que junta o neoliberalismo e a divindade.
Vale muito a leitura de ambos os livros. Peço desculpas pela
extensa e humilde resenha, mas ela tem a finalidade de não apenas sugerir, mas
insistir que vale a pena a leitura de ambos os livros.
Mesmo que as perspectivas nas fronteiras dessa guerra (dissimulada)
pareça não ter fim, haveremos de prosseguir tentando entendê-la como parte de
uma disputa de classes e interesses no ambiente do capitalismo hegemonicamente financeiro
e neoliberal.
Não haverá saídas sem a participação direta da população
periférica e marginalizada que foi capturada pela esperança vendida com
enorme rede de proteção que ofereceu solidariedade e novos horizontes. São
essas crenças e ações que seguem em disputa.