quarta-feira, dezembro 27, 2023

A fé, o fuzil, os traficantes evangélicos, o crime e os bandidos de Deus no Brasil contemporâneo

Nessa virada de ano ofereço a sugestão de dois livros que merecem ser lidos, para se tentar compreender um pouco mais o fenômeno da fé e da religião evangélica - que não para crescer em todo o país - e sua relação com o crime, o tráfico e as milícias no Rio, São Paulo e em todo o Brasil.

São duas publicações editadas nesse ano de 2023. O autor do livro “A Fé e a Religião: Crime e religião no Brasil do Século XXI” é o jornalista Bruno Paes Manso que é quem indica e prefacia o segundo livro “Traficantes evangélicos: Quem são e a que servem os novos bandidos de Deus” de autoria da Viviane Costa.

Bruno Manso tem doutorado pela USP, mas se apresenta apenas como jornalista e pesquisa o assunto da violência urbana há mais de duas décadas. Ele é também o autor do livro (que ainda não li) “República das Milícias”. Já a Viviane Costa é licenciada em história, mestra em Ciências da Religião e pastora da Assembleia de Deus.

O primeiro livro, o do Manso, trata mais do fenômeno do PCC e da expansão dos evangélicos na região metropolitana de São Paulo, mas não unicamente. Já o segundo livro da Viviane trata mais do que autora chama de “narcoreligiosidade carioca” que envolve ainda a periferia da região metropolitana que inclui a Baixada Fluminense. A abrangência geográfica das duas publicações permite uma análise mais profunda, assim como suas ligações com outras regiões do país e mesmo o interior dos estados RJ e SP.

De cara digo, que os dois livros me impactaram profundamente e percebi com a visão que temos desse fenômeno é superficial, preconceituoso e quase invisível diante do todo, seja da política, da economia e/ou da vida em sociedade no Brasil contemporâneo.

A religião evangélica está por meses ou anos para se tornar a religião hegemônica no Brasil, embora a estimativa tenha sido feita até o ano do 2030.

O livro “A fé e o fuzil” de 301 páginas do Manso vai além da análise das milícias do seu livro anterior, tratando também do tráfico, mas foca nas razões que podem explicar o crescimento da igreja evangélica pentecostal, a partir da rede de proteção material e de solidariedade humana oferecida por essas organizações entranhadas nas comunidades, em especial, as periféricas e de sua a relação, quase automática, com os grupos criminosos com os quais seguem ambiguamente convivendo e se retroalimentando.

Como bom jornalista e pesquisador, Bruno Manso ouviu muitos assassinos, pastores e gente convertida. Muitas vezes, exatamente os mesmos personagens, apenas em lapsos de tempo distintos. Com texto perfeito, direto, contextualizado e que fui facilmente, o relato descortina um mar de questões e indagações sobre a sociedade brasileira e periférica contemporânea. Penso que se trata do relato de uma pesquisa com forte poder de contribuir com explicações para a questão do peso dos evangélicos na ascensão da extrema-direita no Brasil.

Manso descreve também como se dá a montagem dos “exércitos da fé” e sua preparação para o que chama de “batalhas espirituais” da salvação do apocalipse. A guerra do bem contra o mal aliada à teologia da prosperidade (empreendedorismo de si próprio) que, de certa forma, ajuda na explicação (para muitos, contraditória) sobre as razões da defesa pelos evangélicos para o uso das armas para sua “guerra santa”.

Assim, a periferia está cada vez mergulhada nessa alternativa, desacreditada daqueles que defendem a política, as políticas públicas e o aperfeiçoamento do Estado que muitas dessas organizações enxergam como problema e inimigos do seu bem-estar e da sua forma de ver o mundo.

O segundo livro “Traficantes Evangélicos: Quem são os novos bandidos de Deus” da Viviane Costa é outro relato de pesquisa que nos auxilia na compreensão sobre o fenômeno ligado às relações do narcotráfico com o pentecostalismo que compõe o que autora chama de “narcoreligiosidade carioca”. Um fenômeno que se integra à dimensão da política e da disputa pelo poder no Rio ligado ao surgimento da facção bolsonarista e da guerra urbana dos territórios pentecostalizados (a autora não separa a fração do neopetencostalismo).

Viviane em sua publicação de densas 170 páginas, expõe um pentecostalismo fluido do “espírito santo” que protege a todos que se associam contra o mal, seja quem for: o Estado, ou os grupos rivais na disputa pelo território que tem levado a um “Jesus dono desse lugar” a partir da narcoreligiosidade.

É importante registrar que a autora não apenas dá crédito, mas utiliza de uma forma inteligente, resgatando e contextualizando, em ótima síntese, fontes anteriores que pesquisara e trataram do tema como Marcos Alvito, Cristina Vital da Cunha, Patrícia Birman, o próprio Bruno Manso e dezenas de outros autores citados nas referências), indo bem além, numa pesquisa empírica de quem vê e vem de dentro do fenômeno e no território onde o mesmo se desenvolve.

Viviane Costa explica em boa parte essa guerra do bem (guerra das divindades ou guerra santa) que envolve as disputas pelo domínio do território. Em que pastor pode ser também chefe do tráfico (TCP), frequenta cultos e se mistura nessa ambiguidade (para nós estranha), mas que dá direção ao seu grupo, ao território, constitui novas lideranças, define estratégias, etc. tudo (ou quase) sob “a orientação de Deus”.

Viviane atualiza dados sobre a colossal expansão da religião evangélica que se sustenta numa potente rede de proteção material e espiritual onde o Estado é ausente. Assim, falam de manuais, dão orientações de táticas de guerra, de expansão do credo e informam sobre novas batalhas santas (“proibidões”) quando e onde formam novos ídolos e personalidades (gospel e influenciadores), estilos culturais, etc.

Ambos os relatos permitem ver, por boas frestas, como a religião evangélica se torna uma chave interpretativa das dinâmicas de violências facciosas no Rio de Janeiro para domínio do território, visto como espécie de “reconstrução dos muros da Cidade Santa” que obedeceria a ordens divinas em territórios em que “Jesus passa a ser o dono do lugar”, como o Complexo de Israel (Parada de Lucas e Vigário Geral), da mesma forma que se entende a hegemonia política da extrema-direita na periferia do Rio de Janeiro.

Fica claro com o livro, as identificações econômicas e neoliberais comuns às teologias pentecostais que aparecem não por acaso nas estruturas dessas organizações narcoreligiosas.

Trata-se de um fenômeno complexo, amplo, mais que ambíguo, multifacetado e para nós (outros, quase em minoria), ainda quase que invisível. Um fenômeno que, segundo a autora “se entrelaça em nome de Deus, por disputas espirituais e por território, nas fronteiras de uma guerra que não tem fim no horizonte”.

Penso que é preciso sair da superficialidade das leituras preconceituosas e da ideia apenas das diferenças entre pentecostais e neopentecostais como base da extrema-direita nas periferias de nossas metrópoles. Há que se oferecer alternativas e isso não é simples, porque se enfrenta uma enorme base instalada de organizações que fazem a mistura do divino com o material e a junção da concepção de mundo que junta o neoliberalismo e a divindade.

Vale muito a leitura de ambos os livros. Peço desculpas pela extensa e humilde resenha, mas ela tem a finalidade de não apenas sugerir, mas insistir que vale a pena a leitura de ambos os livros.

Mesmo que as perspectivas nas fronteiras dessa guerra (dissimulada) pareça não ter fim, haveremos de prosseguir tentando entendê-la como parte de uma disputa de classes e interesses no ambiente do capitalismo hegemonicamente financeiro e neoliberal.

Não haverá saídas sem a participação direta da população periférica e marginalizada que foi capturada pela esperança vendida com enorme rede de proteção que ofereceu solidariedade e novos horizontes. São essas crenças e ações que seguem em disputa.

domingo, novembro 19, 2023

BlackRock: estratégias e ampliação da participação em negócios financeiros e corporações no Brasil

O fundo financeiro americano BlackRock é a maior gestora de fundos do mundo, controlando um patrimônio líquido que não para de aumentar e chega, hoje, a cerca de US$ 10 trilhões ou R$ 50 trilhões no mundo. No Brasil, a BlackRock atua tanto na capitalização para seus fundos, quanto nos investimentos em valorização de ativos da economia real.

Esse valor de patrimônio sob gestão do BlackRock no mundo de US$ 10 trilhões é equivalente a 6X o PIB de todo o Brasil, embora essa comparação seja para ter ideia dos volumes de capital, mas um se trata do valor de patrimônio em valor de mercado - incluindo capital fictício - e outro estoque de riqueza real do país. No Brasil, não se tem o número exato do volume de patrimônio e participações da BlackRock entre investimentos em inovações financeiras (ações, outros fundos, etc.) e nas participações de corporações da economia real.

Porém, é vasta e impressiona a quantidade os investimentos e participações do fundo financeiro BlackRock em grandes corporações no Brasil. Em geral, são participações que oscilam entre 1% e 10%. Ex: Petrobras, Eletrobras, Bradesco, Light, Equatoral Energia, Embraer, JBS, Suzano Celulose, BRF, Marfrig, Minerva, Klabin, Fibria, Vale, Itaú, Bradesco, BTG, PRio, 3R Petroleum, Gerdau, Usiminas, Energisa, Cemig, Copasa, Via Varejo (Casas Bahia), Renner, Ambev, WEG, Grupo Soma (Hering, Animale e Farm), Arezo, Drogasil, Localiza, Assaí, Iguatemi, Cyrela, Qualicorp, etc. Vale observar que essas participações são muito dinâmicas e se alteram muito rapidamente no tempo conforme busca de maior rentabilidade.


Fonte: Quadro e-investidor publicado em matéria 30 maio 2023.

Como se sabe, os negócios e participações da BlackRock vão bem para além do quadro acima que mostra alguns dos principais movimentos no final de 2022 e início de 2023. A gestora de fundo de investimentos BlackRock está presente em negócios de diversos setores no Brasil como energia (eletricidade e petróleo), bancos, agronegócio, alimentos, mineração, siderurgia, indústria, comércio e varejo, construção e imobiliáio, etc. e também utiliza o discurso de privilegiar a visão ESG (Environmental, Social and Governance ou investimentos em Meio Ambiente, Social e Governança) com foco na sustentabilidade e da transição energética. 

No Brasil, mais recentemente, chama a atenção o avanço dos investimentos em negócios privatizados e em termos espaciais há agora um grande interesse em Minas Gerais que está em vias de privatização de empresas estatais com o governo Zema. 

No mundo, e em especial nos EUA, a BlackRock também tem ampla e diversificada participação em grandes corporações do setor de energia (Esso), tecnologia (Big Techs: Apple, Google, Microsoft, Tesla), indústria, alimentação, varejo (Wallmart) e investimentos cruzados com outros grandes fundos globais como o Vanguard, Fidelity, Morgan Staley, etc. que fazem o mesmo com outras companhias mundo afora. Como se observa, muitas dessas corporações possuem ramificações no Brasil com filiais e/ou subsidiárias.

Quem controla, mesmo que de forma minoritária, tão ampla participação em diferentes setores e territórios, sempre atuará tanto politicamente em defesa dos seus interesses, quanto geoeconomicamente, para garantir ganhos em escala e não necessariamente localizados em ativos por país. O que muitas vezes explica negócios, aparentemente inexplicáveis, de entrada e saída na participação de companhias, que individualmente não teriam razões para isso.

Vale observar com atenção os movimentos de entrada e saída dessas participações acionárias da gestora BlackRock no Brasil. Em especial no setor elétrico, lembrando que na Eletrobras privatizada por Bolsonaro, o BlackRock tem posição expressiva superior a R$ 6 bilhões. Na América Latina, a BlackRock tem investimentos e patrimônio da ordem de quase US$ 100 bilhões.

Tenho insistido desde o lançamento do livro "A ´indústria´ dos fundos financeiros: potência, mobilidade e estratégias no capitalismo contemporâneo" (Ed. Consequência, 2019) sobre a necessidade de melhor se observar o papel que as gestoras de fundos globais realizam no âmbito da configuração da atual hegemonia financeira no Brasil e no mundo.

São movimentos que mostram ainda o enlace do BlackRock com o setor bancário, fundos financeiros nacionais, controle das inovações financeiras (e papeis), captura de excedentes nacionais em seus diferentes tipos de capitalização e ainda dos ativos da economia real, em controle de ativos que vai lhe garantir valorização, alta rentabilidade e capacidade de interferência nas políticas e nas economias nacionais.

Essa denominação de ativos explica como as gestoras dos fundos financeiros lidam de forma simultânea com negócios financeiros (aplicação em renda fixa, titulo, ações e mercado de capitais, câmbio, etc.) e as aplicações em companhias da economia real, onde apostam na sua valorização e nos rendimentos a serem capturados das economias nacionais. A denominação de ativos facilita a comparação destes diferentes tipos de investimentos que passam a ser considerados pelo valor de mercado, incluindo especulação e expectativa de valorização futura e não pela capacidade produtiva de riqueza.

Um dos instrumentos do BlackRock nesses movimentos é sua plataforma Aladdin muito voltada para os fundos tipo ETF e/ou iShares(fundo de índices ou fundos coletivos negociados em bolsas) em que sua capacidade oligopólica de atuação permite simular movimentos e rentabilidades de entrada e saídas em prazos mais curtos que engolem estimativas de investidores e corretoras menores.

A plataforma Aladdin, é um sistema operacional potente que faz uso de fortíssimo aparato computacional, baseado em nuvens (centro de dados ou datacentes), que disponibilizam dados em grandes painéis de vídeo, espécie de central de operação, com capacidade de monitorar online (ou diariamente) milhares de fatores de risco, levando em conta milhares de cenários para dezena de milhares de carteiras. 

Com uso de pessoal qualificado em TIC e finanças, essa plataforma (sistema) pode submeter seus investimentos a testes de stress com centenas de milhões de cálculos e algoritmos que são atualizados e ajustados para opções de seus interesses. Outro forte instrumento de capitalização é a atração do capital de grandes famílias para seus investimentos no Brasil e fora, através das careteiras do tipo family office.

Trata-se de uma forma mais agressiva de financeirização que substitui o crédito e o endividamento bancário pelo controle direto dos ativos escolhidos em prateleira, onde através dos seus representantes, CEOs e diretores com mandatos temporários e fixados e ganhos conforme resultados pré-definidos que acabam impondo perversos mecanismos de enxugamento, exigem "reengenharia", pressões sobre os vários stakeholders e precarização sobre o trabalho no território.

É essencial entender e debater esse fenômeno sobre as cadeias de valor global, a atuação transversal e transfronteiriça dos fundos, sobre a geoeconomia, a geopolítica, a disputa pelo poder político nos países e a formulação das estratégias dos projetos nacionais de desenvolvimento.

segunda-feira, novembro 06, 2023

O Brasil precisa de mais - e eficiente - Estado social

Muitos na sociedade falam da necessidade de reduzir o Estado e perdem a noção do peso da previdência social e dos direitos sociais na vida das pessoas e também dos municípios. Nesse sentido, a nossa Previdência Social e o INSS prestam um serviço e cumprem um papel nem sempre reconhecido.

No Brasil todo, 37,6 milhões de pessoas recebem algum benefício (aposentadoria, pensão e/ou auxílios) do INSS. Em 2022 o INSS pagou a extraordinária quantia de R$ 734 bilhões. Uma quantia espantosa.

Só para se ter uma ideia na escala local. Em Campos dos Goytacazes, município de médio porte com 474 mil habitantes, o INSS pagou no ano passado (2022) cerca de R$ 1 bilhão a 87 mil beneficiários. Ou seja, 18,5% da população recebe algum benefício, seja aposentadoria (a maioria), pensão e auxílio de diversas naturezas. Valor equivalente a mais de 1/3 do orçamento previsto para o município em 2023.

Uma potente rede de proteção social que alimenta o circuito da economia local e que acaba por garantir emprego e renda em setores como comércio e os serviços, hoje, o maior empregador no município de Campos dos Goytacazes. Esse dinheiro pago pelo INSS é fonte de emprego, geração de renda, salário e proteção social.

Essa conversa de menos Estado é um engodo. 

O Estado social pode ser aperfeiçoado para ser mais eficiente. Necessitamos de um Estado Social com boas políticas públicas de saúde, educação, transportes. Digitalização para facilitar a vida de todos e não dirigir dados e rendas para os oligopólios das Big Techs.

Um Estado que regule o trabalho (em suas diferentes formas) e nos garanta direitos para superar a atual e enorme precarização, onde sofre aqueles que não possuem esses direitos. 

O Estado Social é também base da economia e só reduzindo a desigualdade se pode pensar e falar em democracia.

segunda-feira, outubro 23, 2023

Nº de matrículas no ensino superior presencial se estabiliza em cerca de 17 mil, em 2022 em Campos, RJ. Somado à EaD chega a 27 mil graduandos.

Este blog, há quase duas décadas, publica a evolução das matrículas nas instituições de ensino superior no município de Campos dos Goytacazes, RJ e demais municípios fluminenses. Os números têm sido extraídos e tabulados da complexa "base de microdados" do Censo do Inep/MEC, em trabalho dedicado, feito exclusivamente para o blog (e pesquisadores que aqui colhem informações), pelo professor José Carlos Salomão Ferreira (IFF). Esses indicadores são do Censo do Ensino Superior 2022. 

Na semana passada publicamos aqui os números do Ensino à distância (EaD) em Campos dos Goytacazes cresceu mais que o dobro do Brasil. Agora apresentamos a evolução dos dados das matrículas do ensino presencial entre os anos 2003 e 2023 no município, classificados por instituição e com uma tabulação comparativa do número de matrículas nas instituições públicas e privadas. 

A redução do total de matrículas presenciais no município de Campos dos Goytacazes entre 2022 e 2021 é pequena, de pouco mais de 1%, saindo de 17,4 mil para 17,1 mil, caracterizando uma estabilidade, embora com algumas variações no nº de universitários entre as onze instituições ofertantes no município. 

O pico do nº de matrículas no ensino superior presencial em Campos foi de 21.244 matrículas em 2008, quando o número de bolsas universitárias das prefeituras era grande (com a fartura dos royalties) e o percentual de matrículas nas instituições privadas era de 78% do total. Abaixo a tabela com os números extraídos do Censo do Ensino Superior 2022 do Finep-MEC.


Desde 2021, as instituições públicas somam mais matrículas que as instituições privadas: 8.708 matrículas (8.708 matrículas: 50,7% x 8.455 matrículas: 49,3%. A instituição pública com maior número de graduandos é o Instituto Federal Fluminense (IFF) com 3.791 matrículas, seguido da UFF com 2.333 matrículas, depois Uenf com 2.088 matrículas. 

Entre as instituições privadas no município, a que possui o maior nº de graduandos é a Estácio com 2.292 matrículas, seguido do Isecensa com 1.648 matrículas e depois a Universo com 1.574 matrículas. A maior perda de matrículas entre as instituições públicas é da Uenf com menos 216 graduandos e nas instituições provadas da Ucam com menos 286 matrículas. A Ucam chegou a ter 2.442 universitários em 2018 e em 2022 tinha regredido para 913 graduandos.

Observa-se, como já temos comentado nos levantamentos nos anos anteriores, que o ensino universitário deve ser sustentado no tripé: ensino, pesquisa e extensão, que deveriam funcionar de forma integrada, em que cada uma alimenta a outra. E neste caso, a pesquisa e extensão nas instituições privadas são irrisórias ou não existem. Em especial, a pesquisa, já que a extensão, existe com alguns esforços nesse sentido, em algumas das sete instituições privadas que funcionam em Campos, RJ. No caso de EaD a ausência da extensão e pesquisa é ainda pior.
 
Vale ainda observar que as variações entre 2020 e 2022 decorrentes da pandemia acabaram não sendo tão grande como se imaginou num primeiro momento no ensino presencial, embora o crescimento do número de matrículas no ensino superior à distância (EaD), em todo o Brasil e também em Campos seja expressivo.


Referências:
[1] Postagem do blog em 1 de novembro de 2202. Nº de matrículas no ensino superior presencial cai 4% em Campos, RJ, mas com ligeiro aumento nas instituições públicas. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2020/11/n-de-matriculas-no-ensino-superior.html

[2] Postagem do blog em 18 de abril de 2202. Nº de matrículas no ensino superior presencial cai 5% em 2020, em Campos, RJ. Porém, somado à EaD chegam a 25 mil graduandos.
 Disponível em: https://www.robertomoraes.com.br/2022/04/n-de-matriculas-no-ensino-superior.html

[3] Postagem do blog em 22 de setembro de 2019. Nº de matrículas no ensino superior presencial se estabiliza em Campos nos últimos 4 anos: percentual aumenta nas públicas. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2019/09/n-de-matriculas-no-ensino-superior.html

[4] Postagem do blog em 23 de setembro de 2018. Apesar da crise, as matrículas no ensino superior em Campos se estabilizam em 20 mil graduandos. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2018/09/apesar-da-crise-as-matriculas-no-ensino.html

[5] Postagem do blog em 11 de novembro de 2017. Censo do Ensino Superior 2016: Campos com 19,8 mil universitários. E a qualidade? Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2017/11/censo-do-ensino-superior-2016-campos.html

[6] Postagem do blog em 8 de dezembro de 2017. Entre 2003 e 2016, as matrículas no ensino superior no ERJ cresceram 36%. Nas instituições públicas cresceram (82%). Mais de três vezes que (25%) o crescimento nas instituições privadas. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2017/12/entre-2003-e-2016-as-matriculas-no.html

[7] Postagem do blog sobre o Censo no anos anteriores. Em 23 nov. 2016.
Campos aumenta nº estudantes no Ensino Superior para 19,3 mil matrículas. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2016/11/campos-aumenta-n-estudantes-no-ensino.html

[8] Postagem do blog em 1 de mar. 2016. Campos possui 18 mil alunos no Ensino Superior. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2016/03/campos-possui-18-mil-alunos-no-ensino.html

[9] Postagem do blog em 18 de ago. de 2015. Ensino superior em Campos perde 4 mil matrículas em 5 anos. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2015/08/ensino-superior-em-campos-perde-4-mil.html?m=1

[10] Postagem do blog em 31 jul 2015. Campos tem 17,1 mil alunos matriculados no Ensino Superior. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2015/07/campos-tem-171-mil-alunos-matriculados.html

quinta-feira, outubro 19, 2023

Ensino à distância (EaD) em Campos dos Goytacazes cresceu mais que o dobro do Brasil

No município de Campos dos Goytacazes, RJ, em 2009 eram 886 matrículas em EaD ofertadas por 8 instituições. Já no ano passado, em 2022, eram 9.864 matrículas, ofertadas por 38 instituições, instaladas pelo país. 

Em 13 anos, um crescimento de mais de 11 vezes no número de matrículas no município, enquanto em todo o Brasil, eram 837.431 matrículas em 2009, tendo passado para 4.321.934 matrículas em 2022, com um crescimento de 5 vezes.

Já as matrículas no ensino superior presencial no município de Campos dos Goytacazes tem se mantido relativamente estável na última década, em torno de 17 mil estudantes, embora com variação do n.º de universitários por instituição. Porém, esses dados publicaremos adiante no blog, como fazemos há muito tempo. Não há o que comemorar, mas muito a ser analisado e em várias dimensões.

Essas informações foram estratificadas dos microdados do Censo do Ensino Superior Inep/Mec e foi divulgado há poucos dias. A tabulação é do professor do IFF, Jose Carlos Salomão, que realiza esse levantamento há quase duas décadas.




quinta-feira, setembro 07, 2023

Kopenhagen & Nestlé: um negócio entre fundos financeiros

Muitos não se deram conta que entre os donos da antiga e inovadora empresa Konpehagen e a Nestlé, a empresa passou pelas mãos do fundo americano Advent International, que ganhou um bom dinheiro nessa intermediação.

Entre processos de capitalização e valorização, essencialmente a gestora de fundos serviu de intermediadora.
 
Na ocasião informou que teria comprado a Kopenhagen para abrir capital em IPO, mas era jogo de cena, para entregar o mercado à gigante Nestlé.

Como destinatário final dos negócios, a Nestlé objetivou manter o controle sobre mercado de chocolates no Brasil, numa estratégia que se segue à compra de outra fabricante brasileira tradicional, a Garoto.

Antes de terminar uma parte dos bastidores que não aparece na mídia financeira e corporativa, vale dizer que a Nestlé, há algum tempo deixou de ser apenas aquela grande corporação suíça e hoje é um ativo controlado por grandes fundos, entre eles o também americano, Vanguard Group.

As indústrias são de chocolate (alimento) na economia real, mas os negócios são de natureza financeira e oligopólica. Por isso, nossa referência, aos negócios quase simultâneos que misturam capitalização, valorização e oligopolização que são atualmente sustentados pela hipermobilidade dos fundos financeiros globais.

sexta-feira, agosto 25, 2023

Empresas do Porto do Açu querem reduzir ainda mais a alíquota de ISS paga à PMSJB

Há cerca de dez dias, eu escrevi um texto (aqui no meu blog e no FB), que é uma síntese de uma análise mais ampla e aprofundada, sustentando com alguns dados e argumentos, que o Porto do Açu, quinze anos depois do início de sua construção e quase dez do início de sua operação, se estabelece muito mais como um negócio de base - em especial - extrativista, de enclave e como um território de passagem do que como um projeto de desenvolvimento.

Não vou repetir o texto e nem os argumentos. Quem desejar volte ao mesmo. Porém, o mesmo suscitou algumas conversas, debates e informações, mas a maioria fora do ambiente da internet.

Algumas pessoas (nem muito e nem poucas) me procuraram para concordar no todo, ou em parte, ou com o desejo de aprofundar o diálogo sobre o tema e tudo que o mesmo acabava por provocar, na medida em que o assunto tende quase sempre a suscitar mais discursos vagos e difusos sobre progresso, do que análises, pelo menos, um pouco mais profundas.

Terminal Onshore T2 do Porto do Açu. Fonte: Petróleo Hoje.
Para mim, o desejo de conversas mostra e justifica, porque ainda mantenho o blog e algumas postagens nas redes sociais.

Uma das informações que me chegaram é que representantes de empresas instaladas no Porto do Açu, estão "sugerindo" à Prefeitura de São João da Barra, reduzir ainda mais a alíquota do Imposto sobre Serviços (ISSQN) de 2,5% para 2% que pagam ao município.

A informação/intenção não pública, mas confirmada por outra fonte, corrobora boa parte dos argumentos apresentados no texto anterior, e merece alguns outros comentários.

A infraestrutura de circulação do projeto portuário, visa atender o fluxo de minerais extraídos do que a projetos de desenvolvimento locais e/ou regionais. Como já disse antes, o Porto quer fluidez de suas cargas, custos reduzidos na movimentação de cargas, maior produtividade e pouco, ou nenhum enlace, ou integração com a região.

O ISS é - e tem sido - uma das poucas rendas que fica no município, entre todos os fluxos que pelo Porto do Açu passam e que, no ano passado, superou o valor de R$ 12 bilhões e deve chegar esse a próximo de R$ 20 bilhões.

Vale lembrar que a PMSJB, no final do ano de 2004, já sabendo dos negócios que apontavam para a implantação de um porto no Açu, apresentou à Câmara de Vereadores, o projeto de lei do ISS com mudança da alíquota do tipo de serviços portuários reduzindo-o de 5% para 2,5%. Sim, metade como "incentivo fiscal municipal".

Desde 2004 até hoje, a lei revista anualmente, vem mantendo essa alíquota de 2,5%, mesmo que em outros municípios também com bases portuárias, essa alíquota esteja sendo corrigida para valores até 5%. 

Evidente que com as construções do Porto do Açu a receita municipal de ISS em SJB foi se ampliando: R$37 milhões em 2012; R$ 63 milhões em 2014, ano do início das operações do porto com exportações de minério de ferro; R$ 81 milhões em 2019 e R$ 119 milhões em 2022.

É uma boa receita para o município, ainda mais que é própria, embora ainda inferior às receitas petrorrentistas municipais com os royalties do petróleo que, em 2022, chegou a R$ 174 milhões.

Porém, é absurda a sugestão dos vários negócios instalados junto do Porto do Açu, desejarem outro incentivo fiscal dessa ordem de 0,5%.

Em termos percentuais é uma redução que parece mínima, mas em valores absolutos e referentes ao ano de 2022 equivaleriam a uma perda de receita de R$ 24 milhões, em apenas um ano.

Imagina se a alíquota tivesse sido mantida em 5%. Em 2022, o município de SJB teria tido uma receita de ISS de cerca de R$ 240 milhões.

O porto não é uma dádiva para o município ou região. É um negócio que se utiliza e produz o território segundo seus interesses, e nesse caso com quase nenhum enlace e com desejo de fluidez na movimentação das cargas e pouca interação ou enlaces com a comunidade que oferece a base territorial, onde foi instalada uma enorme infraestrutura logística-portuária para corredores de exportação e num grau menor de importação.

Para fechar, a reflexão que complementa o artigo anterior, é interessante ainda perceber que desde 2013, quando os donos dos Porto do Açu mudou de mãos, saindo da LLX, subsidiária do grupo EBX do Eike Batista, para controle do fundo americano EIG Global Energy Partners (76%) e fundo soberano Mubadala de Abu Dhabi nos Emirados Árabe Unido (EAU) com 24%, os questionamentos sobre os negócios e interesses avantajados do novo controlador se reduziram.

Creio que não exista outro argumento que não seja, o quase total desconhecimento sobre as práticas (processos, modus operandi e estratégias) utilizadas pelas gestoras dos fundos financeiros em seus negócios na gestão do que chamam de ativos, para diferentes setores e lugares no mundo. 

É fácil e possível saber em que tipos de atividades, negócios e lugares as gestoras dos fundos financeiros investem, mas a grande maioria das pessoas não sabem quem investe nesses fundos, seus interesses e muito menos, a forma e o modo como eles tomam posições, no comando sobre os diretores e gerentes que atuam no território e no qual se inserem interesses como esse de reduzir o ISS pago ao município que serve de base às suas operações e negócios globais.

Penso que a região Norte Fluminense precisa compreender um pouco melhor sobre tudo isso e não e apenas aprovar ou rejeitar o destino que não é nem nunca foi inexorável.

segunda-feira, agosto 14, 2023

Porto do Açu mais enclave e território de passagem do que desenvolvimento teve R$ 12 bi de movimentação em 2022

Muitos dizem que um porto é uma porta ou janela para o mundo. É verdade e estão certos. Porém, é importante lembrar que as bases e os portos de última geração, afastados das áreas urbanas, são também e quase que apenas, territórios de passagem de corredores de exportação. 

Os grandes complexos portuários da geração mais recente dessa tipologia de portos, instalados afastados nos núcleos urbanos, são na essência bases e enclaves entre fluxos de mercadorias. Esse é o caso do complexo portuário do Porto do Açu controlado pela Prumo Logística (ex-LLX) que é de propriedade do fundo americano EIG e possui 10 diferentes terminais licenciados junto à Antaq que se utilizam dos berços offshore (T1) e onshore (T2).  

Vista de parte das instalações do Porto do Açu, a partir da
estrada de acesso à portaria principal em 12/08/2023.
 
Buscando me atualizar sobre as instalações, os movimentos dos negócios e a relação com o território, para além do acompanhamento de indicadores, informações corporativas e da gestão pública, eu fiz uma nova visita de campo no último sábado, 12/08/2023, em quase todo o entorno do Porto do Açu. A apartação entre as instalações, quase fortificadas, na área do porto, a região e a comunidade continua muito grande.

A riqueza extraída passa por esses dez terminais portuários com pouca ou nenhuma conexão (rugosidade) com a região. Passa minério de ferro pelo mineroduto, petróleo em transbordo entre navios, cobre vindo de grandes caminhões de Goiás, bauxita de Minas Gerais para serem exportados. Fertilizantes são importados e direcionados ao agronegócio, assim como subprodutos siderúrgicos atendem fornos no vizinho território mineiro. 

Nestes lucrativos movimentos, o operador portuário e os donos das cargas querem fluidez que é o que garante produtividade e alta rentabilidade que já vem sendo obtida. Porém, sem indústria e sem beneficiamento, o que se tem é basicamente, e só, enclave, sem integração com economia local, sem adensamento e encadeamento. Geração de energia com uso do gás importado (GNL) através da termelétrica da GNA, se produz a eletricidade que se torna novo um insumo.

As usinas termelétricas representam uma atividade que gera emprego, mas de forma mais efetiva, apenas na construção. Já na operação, a empregabilidade é pequena com a UTE só funcionando quando há redução do nível de água nos reservatórios das hidrelétricas do sistema nacional. O número de empregos na operação das UTEs fica entre 80 e 100 funcionários apenas.

O restante das atividades são exportações extraídas no litoral com apoio à exploração offshore ou no interior no Quadrilátero Ferrífero mineiro, e que, chega ao Açu através do mineroduto, circulando pelos territórios de passagem ou cobre vindo de Goiás.

Sim, a condição de território de circulação gera um imposto local de serviço de movimentação de cargas (ISS) que até hoje é pouco fiscalizado e pago de forma autodeclaratória pelo operador portuário.

A arrecadação de ISS em SJB, nos três últimos anos, incluídos todos os tipos de serviços - e não apenas aqueles desenvolvidos no Porto do Açu e ligado às exportações -, chegou 308 milhões, com uma média na faixa de R$ 100 milhões anuais. Desde que o porto começou a operar, no segundo semestre de 2014, o valor total arrecadado de ISS em SJB, é de cerca R$ 650 milhões, quase que a única receita paga ao "território de passagem". 


Exportações e importações em 2022 no Porto do Açu somam R$ 12 bilhões
Até julho de 2023 chega a R$ 10,8 bilhões - destaques para China, EUA e Índia

Para se ter uma ideia do volume de riquezas que tem passado pelos dez terminais portuários do Açu e que se destinam às exportações, vamos olhar os números de exportações e importações do ano passado, 2022, e nos primeiros sete meses (até 31/07) do ano de 2023.

Em 2022 o Porto do Açu movimentou US$ 2,480 bilhões (R$ 12,1 bilhões), sendo US$ 1,965 bilhão (R$ 9,6 bilhões) em exportações e US$ 515 milhões (R$ 2,5 bilhões) em importações de cargas. 

Já nos primeiros meses de 2023, entre janeiro e julho, esse valor total entre exportações e importações já foi quase superado e chega a US$ 2,215 bilhões (R$ 10,8 bilhões), sendo US$ 1,791 bilhão (US$ 8,8 bilhões) em exportações e US$ 424 milhões (R$ 2 bilhões) em importações de cargas.

As exportações são especialmente fruto do extrativismo do petróleo e minério de ferro. Em 2022, o destino das exportações, em valores FOB e em dólares, foram em especial para: 1) Índia US$ 669 milhões; 2) EUA US$ 567 milhões; 3) Espanha US$ 283 milhões; 4) China US$ 281 milhões e 5) Uruguai R$ 65 milhões.

Nos sete meses de 2023, entre janeiro a julho, os destaques nas exportações foram: 1) China 784 milhões; 2) EUA US$ 461 milhões; 3) Índia US$ 168 milhões; 4) Espanha US$ 113 milhões e 5) Holanda US$ 113 milhões. 

Nas importações em 2022 e 2023* que equivalem em valores a cerca de 1/4 das exportações, os destaques são as compras vindas do Reino Unido, Alemanha, EUA; França; China, Suécia e Noruega.

Diante de tanta riqueza que circula por esse território de passagem, o que fica no município de SJB e na região é muito pouco. Pela região circulam os fluxos em diferentes modais: nas rodovias mais de duas centenas diárias de enormes carretas, fluxo de minério pelo mineroduto, E.E. pelas linhas de transmissão, gás pelos gasodutos e adiante em oleodutos e ferrovia que ligará portos do ES aos terminais do ERJ. Tudo exigindo fluidez e pouquíssimo (ou nenhum) enlace com as economias locais. ´

Esses fatos mostram que não é possível compreender os grandes projetos de investimentos (GPI) nos quais se incluem os complexos portuários, o desenvolvimento regional, sem analisar as relações transescalares e as articulações das cadeias globais de valor e financiamento. 

Esse breve comentário da postagem, é parte um texto com uma análise mais aprofundada sobre as questões macro e estruturais e em várias dimensões sobre o assunto. O texto com essa análise se destina a um capítulo de um livro-coletânea resultado de um fórum de que participei na Uenf em setembro de 2022, organizado pelo INCT, Observvatório das Metrópoles, Núcleo NF, que teve como título: "Governo e desenvolvimento urbano: características da economia extrativista e desafios para o Norte Fluminense".

Na apresentação e debates da mesa-redonda, realizada em setembro de 2002 e no texto para o livro, eu comento sobre o longo percurso do NF, entre continuidades e descontinuidades, desde agroindústria canavieira, o extrativismo, enclaves, a logística portuária visto como Grande Projeto de Investimento (GPI), as gestoras de fundos de investimentos e a hegemonia financeira no capitalismo contemporâneo no qual a região se insere de forma subordinada como uma espécie de rota da internacionalização.

Nesse processo e diante das estratégias de um capitalismo sob a hegemonia financeira e com a lógica da gestão de ativos, o Estado (em seus diferentes níveis) tem atuado mais como despachante de luxo do capital. Ao contrário do que se diz, não se trata de um Estado mínimo e sim um Estado potente, só que para fortalecer o mercado, e não um Estado-social que pudesse levar ao desenvolvimento da economia real em suas condições materiais, mas para atender à maioria da população do NF e do ERJ. 

Em síntese, a economia do Norte Fluminense oscila entre o petrorrentismo da economia dos royalties, o enclave da base de apoio operacional do extrativismo do petróleo e do gás - que está se deslocando para a Bacia de Santos - e um território de passagem de um circuito global exportador e importador. O tema merece um debate mais amplo e esforços para "desenclavar" esse circuito econômico.

quinta-feira, agosto 10, 2023

19 anos de blog!

É muito tempo. Das várias e até dezenas postagens num dia, desde o 10 de agosto de 2004, hoje restam duas, três, no máximo quatro, mensais (com raro mês sem nenhum texto), alternadas com outras notas mais curtas, em um dos meus perfis nas redes sociais, onde a interação é maior. Ainda assim, o blog seguiu seu caminho.

Confesso algum cansaço e muito incômodo quando lembro que as postagens podem - e devem estar servindo mais à captura de dados, treinamento e aprendizado de máquinas para algoritmos - do que para a troca crítica de informação e opiniões. 

Porém, há algum tempo já dava para perceber que as plataformas digitais são efetivamente isso, simultaneamente: atratividade e sociabilidade como vantagens e repulsa, isolamento, individualismo e ódio, entre muitas outras desvantagens.

Quando iniciei em 2004 nem de longe imaginava que as plataformas digitais caminhassem para onde hoje estão e o que representam em termos de extrativismo e colonialismo de dados e máquina do ódio. O que demonstra como erramos em muitas de nossas estimativas de cenário. Assim, já observando o que estava vindo e o tempo retirado de outros afazeres, eu fugi das sugestões de montar canal no YouTube e mantive apenas no texto estendido aos perfis das redes sociais.

Porém, até para uma avaliação crítica desse ambiente, a manutenção do blog vai servindo, porque sempre é útil e importante se manter ligado ao objeto que se investiga.

A contagem do número de postagens e visitas que são feitas ao blog, foram se alterando com o tempo e com os robôs de acesso. Assim, eu não sei se são confiáveis, porém me espanta que mesmo com muito menos atualizações, as visitas diárias ainda oscilem na média entre 2 mil e 2,5 mil. Nos 19 anos, o Google me informa que foram 9,5 milhões de visitantes em 19.304 postagens, incluindo essa.

Interessante ainda observar, vez por outra, que várias postagens antigas ainda geram interesse e acessos, certamente, após serem localizadas em buscas, mesmo que estes mecanismos e sua programação algorítmica, tenham se alterado tanto ao longo desse tempo e tornando algumas postagens mais difíceis de serem localizadas no Google que é a Big Tech (sic) que guarda (e extrai, sic) esse arquivo de 19 mil postagens e 46,3 mil comentários.

Lembro que um dos motivos de ainda manter o blog, é que o mesmo me serviria de arquivo de informações levantadas e de leituras conjunturais, aos quais recorro com alguma frequência. Pelos números de visitas a postagens antigas, vejo que esse arquivo deve estar também servindo ainda a um amplo público expressivo e que só o Google pode saber quem são (sic, e seguem as contradições, sic).

Por tudo isso é evidente que o blog já passou e muito do que seria um tempo de vida útil razoável, estando assim muito perto do fim, mas enquanto ainda pensamos criticamente e tendo alguma disposição para escrever, seguimos no caminho, lembrando do grande poeta espanhol que afirmou que o caminho se faz ao caminhar...

Agradeço por esse trabalho aos amigos colaboradores, incentivadores e críticos do blog, que se estenderam também aos nossos perfis do FB, Instagram e Twitter. Eles também fazem o caminho. Os seus e o nosso. Valeu e sigamos em frente!

quarta-feira, julho 26, 2023

Relação entre tecnologia e finanças segue ampliando lucros dos bancos no Brasil

O quadro (tabela) abaixo permite fazer uma série de leituras e análises. Vamos brevemente apenas alguns pontos. A motivação para a produção da tabela abaixo com dados atuais decorreu de várias matérias na mídia corporativa e financeira informando o fato do banco digital Nubank ter ultrapassado o Banco do Brasil (BB), em número de clientes no Brasil, mesmo sem ter uma única agência física.

Sem nenhuma agência e com menos de 10% do total de funcionários do Banco do Brasil, o Nubank já tem valor de mercado que é quase 30% maior que esse, o primeiro banco surgido no Brasil.

A CEF foi colocada no final dessa lista feita por ranking de valor de mercado, mas se trata de um banco estatal que não opera na Bolsa, não tendo um valor de mercado, embora seja um dos principais bancos que operam no varejo no Brasil.

A Caixa Econômica Federal (CEF) lidera no país o número de clientes que chega a 150,4 milhões; o Itaú vem em segundo com cerca de 100 (99,9) milhões de clientes. A CEF que tem 86 mil funcionários, mesmo n.º do BB. A CEF é em boa parte o banco dos pobres do Brasil, atendendo aos diversos programas de proteção social e políticas de habitação e saneamento.

No extremo contrário da CEF está o BTG, um banco que é mais um banco de investimentos, mas que há algum tempo passou a também a atender no varejo como banco digital (via aplicativo) e muito voltado para aplicações no mercado financeiro e de capitais. Já o Itaú, é atualmente, no Brasil, o banco com o maior valor de mercado, chegando a US$ 58,7 bilhões.

Um valor bem expressivo, mesmo no mundo, sendo que no Brasil perde apenas para a gigante Petrobras que tem US$ 94,6 bilhões de valor de mercado e está na 169º lugar no ranking mundial, sendo a 9ª entre as petroleiras com ações em bolsa.  

Vale dizer que além da presença majoritária do setor financeiro entre as corporações com maior valor de mercado no Brasil, esse é o setor que, ano após ano, vem batendo recordes em lucro líquido. Em 2022 no Brasil, o lucro líquido médio dos bancos somou R$ 138 bilhões (a maioria dos quatro maiores bancos: BB, Itaú, Santander e Bradesco), mais que o dobro do lucro de R$ 59 bilhões registrados há uma década em 2021.

Somando os seis bancos do quadro acima mais a CEF eles chegam ao número de 424,8 mil funcionários. Só CEF junto com o BB chega a 172 mil funcionários, cerca de 40% do total dessa lista. O número de clientes destes seis bancos junto com a CEF chega a 580 milhões, o que permite interpretar que entre a população bancarizada no Brasil, a maioria tem pelo menos três a quatro contas em bacos diferentes.

Esses dados e indicadores permitem ainda compreender outros processos, entre eles a digitalização (plataformização) do setor bancário, com efeito sobre o emprego e também em termos de relação com os clientes. Esses dados mostram o avanço do esquema da relação entre finanças e tecnologia, de onde sai a expressão “fintech”, usada para se referir a esses bancos digitais sem agências e com relação via aplicativos e telefone.

As diferenças na relação entre n.º de clientes e n.º de funcionários que nos extremos variam de 10.000 no Nubank, a 235 no BTG (poucos e ricos correntistas), ou de um valor entre 867 no BB, 999 no Itaú e cerca de 1.200 no Bradesco e Santander parecem indicar uma tendência de ampliação da bancarização em n.º de clientes com menor número de bancários fruto da expressiva digitalização.

A relação recorde n.º de clientes por n.º de funcionários é identificada na CEF chegando a 1.748, o que evidencia não apenas a capilaridade de um banco popular e com presença forte em todo o país, mas a ótima relação entre nº de clientes por funcionário, o que também demonstra produtividade, como já foi dito, em especial nos programas de proteção social.

O valor de mercado do Nubank, 30% acima do tradicional Banco do Brasil e praticamente empatado com o Bradesco, confirma outra evidência, no processo que vem alterando a forma como as pessoas se relacionam com o setor financeiro (bancos). A abertura de contas, depósito e transferências (com e sem Pix), aplicações e investimentos, resgates, contratação de seguros, etc. foi e continua sendo completamente transformado.

Trata-se em boa parte do mesmo processo que vem atingindo outros setores da economia: a plataformização. O fato também reforça a compreensão sobre a hegemonia financeira no capitalismo contemporâneo. Como tenho insistido, tanto o setor de tecnologia como o de finanças têm atuação transversal com ação sobre todos os demais setores de atividade humana na sociedade. Assim, juntos e misturados, tecnologia e finanças avançam, ampliando o controle, participação acionária e a captura de valor sobre os demais setores da economia.

Outra transformação em curso é sobre a forma de intermediação financeira na atualidade. Os bancos tradicionais atuavam de forma exclusiva nesse setor, captando investidores e ofertando créditos. Hoje, isso continua a ser feita tanto pelos bancos tradicionais da forma já conhecida, como pelas suas plataformas e aplicativos digitais como fazem as fintechs.

A intermediação financeira deixa de ser apenas via créditos (empréstimos), mas os negócios, em especial os grandes projetos de investimentos (GPIs) e aqueles que são intensivos em capital como os de infraestruturas são cada vez mais viabilizados e controlados por gestoras de fundos financeiros que passam a gerir a aplicação em capital fixo no território para implantação de negócios na economia real, como na aplicação e inovação em papéis, títulos e certificados e lançamento de ações no mercado de capitais.

Há várias outras análises possíveis de serem feitas para se analisar o movimento do setor bancário e financeiro no Brasil. Há bons pesquisadores que acompanham em detalhes esse setor, comparando ao movi mento global e também a relação deste setor com o mercado de capitais e a hegemonia financeira no capitalismo contemporâneo.

quinta-feira, julho 20, 2023

Varejista chinesa Shein é um caso típico do Plataformismo

Esse caso da Shein detalhada na matéria do Valor (20/07/23, p. B1) embute uma questão que venho tentando discutir e apresentar. 
["Shein desembarca no sertão e movimenta oficinas de costura: Moda - Região do Seridó, que abriga24 municípios no Rio Grande do Norte, trabalha com capacidade ociosa, de até 50% em algumas confecções"]
Valor, 19/07/2023, p. B1. Clique sobre a imagem para ver em tamanho maior.

Chama a atenção como os chineses da Shein foram tão rápidos no gatilho e incorporaram o Fordismo da confecção feita no sertão ao seu forte esquema de plataformização de atuação global. Vale lembrar que o Brasil responde por pouco mais de 4% do total comercialização em site e app da Shein, segundo estimativas do BTG. [FSP, 09/06/2023 - Shein no Brasil já vende mais que a Marisa]

Essas empresas-plataformas possuem maior agilidade do que a rede de lojas de varejo. Veja como a Shein rapidamente se adaptou às novas tributações, negociações com governo, articulação com a Coteminas, as facções e algumas cooperativas de confecção do Nordeste.

Analisaram qualidade da produção, observaram tecido comprado no Brasil e vindo da China e iniciam um esquema de produção vinculado à sua plataforma digital de e-commerce.

Por isso, em dois anos, a Shein (sem nenhuma loja física no Brasil, contra cerca de 400 da Renner e outras tantas da Riachuelo) já é a 2ª maior receita (em 2022 chegou a um valor entre R$ 7 e R$ 8 bilhões) entre as varejistas de roupas no Brasil, só atrás da Renner, por pouco da Riachuelo e na frente da C&A. 

Para mim, isso se explica pelo que venho chamando de Plataformismo, como nova etapa do Modo de Produção Capitalista. Ela não substitui as etapas anteriores. Uma etapa que convive bem com as estas anteriores do Taylorismo/Fordismo (veja esse caso da produção no Nordeste) e o Toyotismo que foram ressignificados com o uso das plataformas digitais. As Plataformas Digitais atuam como infraestruturas de mediação e servem, ao mesmo tempo, como meio de comunicação e meio de produção para diferentes negócios da produção aos serviços.

Fonte: FSP, 09/06/23.
Os negócios e o e-commerce das empresas-aplicativos são mais ágeis e misturam a produção no território, digitalização das plataformas, startupização, financeirização em negócios de escala global a uma infraestrutura logística material de distribuição e entrega controlada administrada por softwares e algoritmos.

O caso reforça ainda a observação de que a precarização do trabalho não se dá apenas na entrega (circulação) das mercadorias, mas também na produção, na medida em que o trabalho humano é o diferencial do custo da mercadoria.

terça-feira, julho 11, 2023

Plataformização da Educação: um debate necessário!

 Plataformização da Educação: um debate necessário!

APP Sindicato-PR, Curitiba, 1 de Julho de 2023

 

Roberto Moraes Pessanha [1]

Download do artigo em PDF (Clique aqui

 1 - Introdução (Tecnologia e Sociedade)

Atendendo a um convite da diretoria do APP Sindicato-PR (Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná) voltei a tratar do tema “Plataformização da Educação”, no último dia 1 de julho de 2023, em Curitiba, num seminário (título também deste ensaio) com a participação de representantes da categoria de todo o estado do Paraná. Na ocasião, tive o prazer de dividir a mesa com as professoras Vanda Santana, secretária Educacional da APP-Sindicato e Carolina Batista Israel, do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Paraná.

Foto APP Sindicato-PR 01-07-23

Em maio de 2021, já havia participado de uma mesa-redonda online, sobre o mesmo assunto, organizada pela Pró Reitoria de Graduação e Laboratório Formação em Docências no Ensino Superior da UFMG (GIZ-PROGRAD-UFMG), que foi parte do encontro temático “Tempos Digitais". [1] [2]

Não sou pesquisador da área da Educação e nem do tema específico sobre Plataformização da Educação. Estudo as transformações do Modo de Produção Capitalista (MPC), nessa etapa que estou chamando de Plataformismo, em que várias infraestruturas digitais atuam na intermediação executada pelas Plataformas Digitais (PDs), cada vez mais presentes na sociedade contemporânea. Assim, tenho me dedicado a investigar o capitalismo de plataformas e identificado essas as plataformas digitais, como sendo “infraestruturas de intermediação” que surgiram com a finalidade de atender a diferentes setores da sociedade e/ou grupos econômicos no mundo contemporâneo que na gênese tinham usavam o discurso do compartilhamento (caronas, etc.) e foram se transformando em potentes ferramentas de exploração.

Nesse processo, as transformações digitais têm avançado como meios de comunicação (mídias digitais), interligadas com a produção material, o comércio e os serviços online. Aí estão incluídas as Plataformas Digitais Educacionais (PDE) e/ou os Aplicativos (APPs) Educacionais que se vinculam ao surgimento das startups tipo Ed Techs, em processo muito acelerado com a Pandemia num campo que de forma genérica, passou a ser denominado como Plataformização da Educação. Entre 2019 e 2022, as Ed Techs cresceram 80%, saindo de 449 para 813 empresas startups ligadas à educação.

A Plataformização da Educação é parte de um fenômeno mais geral das relações entre tecnologia e sociedade. Tecnologia e finanças. Tecnologia e trabalho. E no âmbito cruzado destas relações, foram entrando em nosso cotidiano no final da década passada - e de forma mais intensa na Pandemia e no Pós-Pandemia -, misturando uma necessidade emergencial com um difuso discurso de modernidade tecnológica presente na atual sociedade capitalista.

As fábricas, o comércio, os consultórios e as escolas entraram e seguem adentrando as nossas casas e ao nosso cotidiano. O público e o privado vão se misturando cada vez mais e de forma mais intensa e densa, não apenas nas redes sociais ou mídias digitais. Um processo que vem tornando o setor de tecnologia e suas corporações em gigantes e globais companhias, se transformando nas chamadas Big Techs, os maiores oligopólios da história da humanidade.

Portanto, entendo que não se deve olhar para o processo de Plataformização da Educação, sem deixar de observar todo esse contexto em que estamos vivendo no mundo contemporâneo. O fenômeno mais geral da plataformização deve ser visto como um fenômeno que se desenvolve e deve ser observado de forma multidimensional e transescalar nas dimensões: econômica, inovação tecnológica (C&T); trabalho; espacial (geoeconômica e geopolítica); política, cultural, das redes social-comunitárias onde se inclui o setor da educação, etc.

Figura 1: A multidimensionalidade do processo de plataformização


Elaboração do Autor. PESSANHA, 2020. [3]

Não é possível dar conta e analisar a repercussão do fenômeno de plataformização em todas essas dimensões, mesmo que busque uma leitura mais totalizante. Porém, com o aceite desse convite para dialogar com um coletivo de professores da rede pública do Paraná (laboratório de experiências neoliberais, empresarias e digitais no Ensino Básico) e como professor com atuação por mais de três décadas, me dediquei, num agradável esforço, a retomar o olhar em leituras e interpretações voltadas para a plataformização no campo da educação.


2 - A lógica da plataformização como etapa da circulação e meio de comunicação e meio de produção

A plataformização e a economia de plataformas, já eram processos crescentes e derivados, em especial, do incremento da internet móvel e do uso ampliado de aplicativos, a que chamo de Appficação. Quando me refiro ao Plataformismo como nova etapa do Modo de Produção Capitalista (MPC), em outras palavras, estou dizendo que as Plataformas Digitais funcionam hoje, como uma espécie denova” Linha de Montagem que, no passado, usando os princípios do Taylorismo, fez surgir o Fordismo. Porém, as novas transformações têm uma forma ainda mais preocupante, porque essa “nova linha de montagem” está agora ligada aos meios de comunicação e às pontas que ligam as demandas de consumo à produção de coisas materiais e serviços. Mais ainda, num ritmo 24/7 (24 horas e em 7 dias da semana), online, com o universo técnico-digital onipresente em nossas vidas através da internet móvel dos dias atuais.

A passagem da internet fixa para a possibilidade real e quase total da internet móvel dos smarphones (celulares) altera a escala do fenômeno sobre a sociedade. Hoje, 2/3 do planeta está conectado nas redes sociais e quase 6 bilhões de pessoas, de um total de 8 bilhões, estão na internet, mesmo que tenha seguido e ampliado as desigualdades sociais e a exclusão digital no mundo. As Plataformas Digitais (PDs) foram se tornando não apenas um instrumento técnico, mas um tipo de negócio na sociedade contemporânea.

Desta forma, é possível interpretar esse fenômeno com o que tenho também chamado de dominação tecnológica. A “digitalização de quase tudo” avança nessa atual etapa da reestruturação produtiva e da Divisão Internacional do Trabalho (DIT). No início, na última década do século passado, o professor espanhol Manuel Castells [4] já enxergava a inovação técnico-digital como base de um “sistema informacional”, mas isso ainda era visto como um fenômeno com características muito abstratas e como um exercício de leitura de cenários.  

No início da segunda década deste século, a relação entre tecnologia (digital) e sociedade já tinha se tornado mais intensa. O setor de tecnologia é transversal a todos os demais setores da economia e da vida em sociedade e isso tem enorme poder de arrasto. É um setor que está presente em tudo. Assim como as finanças que também é transversal aos demais setores. E são dois setores que sempre caminham juntos. Um setor potencializa o outro e juntos passam a controlar as demais atividades, permitindo entender melhor as razões das Big Techs serem alimentadas pelos fundos financeiros (capitais de risco de investidores) no processo de extração de renda e valor, sobre todos os processos de trabalho, exercendo assim, o que tenho também denominado com o uma espécie de “vampirismo digital”. [5]

Repito, as PDs atuam como infraestrutura e meio de comunicação e, simultaneamente, como meio de produção. A lógica de toda plataformização é a intermediação. É ligar as pontas entre produção e o consumo de coisas e serviços, entre eles a Educação.

Figura 2 e 3: A lógica da plataformização e produção de valor


Elaboração PESSANHA, 2020. [3] [6]

As PDs surgem do desenvolvimento da tecnologia digital e do sistema informacional, comentado por Castels [4], na virada do século em sua trilogia, mas de forma especial no livro “A sociedade em redes”. O desenvolvimento da tecnologia e sua implantação tem se enraizado na sociedade e nos territórios. Ao falar sobre dominação tecnológica vale observar que da mesma forma que o trabalho é inerente ao ser humano, a desenvolvimento das tecnologias não existiriam sem o trabalho humano, as forças produtivas e as relações de produção. Tudo misturado. [7]

Assim, é sempre importante destacar que a tecnologia (incluindo a digital) é feita de trabalho humano. Marx já dizia que as tecnologias são recheadas de trabalho humano. Tecnologia e Trabalho são historicamente entrelaçados. O desenvolvimento tecnológico refere-se às forças produtivas e às relações de trabalho [7]. Daí derivam as tecnologias, plataformas e aplicativos (APPs), tipo Aprendizado de Máquinas (Machine Learning, ML) e Inteligência Artificial (IA) que podem melhorar a capacidade dos processos e ainda a organização do trabalho, mas não substituem o homem. A lógica poderia ser a de unir o conhecimento e as habilidades humanas às máquinas criadas pelo homem, para articular o que se deseja otimizar, usando o que os algoritmos resumem e processam diante de tantos dados para as escolhas humanas, mas o objetivo central dos donos dessas tecnologias tem sido a do progressivo descarte humano.


3 - A Plataformização entra em todos os setores e espaços

Segundo o dicionário Aurélio, plataforma é uma “superfície plana e horizontal, mais alta que área ao redor”. Outra definição é a de que se trata de “um programa político, ideológico, administrativo de um candidato a cargo eletivo”. Numa ou noutra definição de plataforma ela é apresentada como um instrumento de intermediação entre as partes de um sistema de produção, planejamento e de escolhas. A partir desta leitura semântica de plataforma, como uma forma de mediação se pode avançar para se ter mais claro a lógica da Plataformização (ou do Capitalismo de Plataformas), onde na essência acontecem, em especial, a extração de três tipos renda: renda de publicidade, propriedade intelectual e renda de infraestrutura. [8]

Concretamente, as plataformas digitais atuam como instrumentos; a plataformização e plataformismo como processos; e as plataformas-raiz e as Big Techs como agentes. APPs e APPficação, Startups e Startupização (parques tecnológicos, incubadoras, investimentos de riscos, lógica neoliberal, individualismo) também são processos que possuem intensa relação com a financeirização, num sistema que atua sob o domínio e a égide neoliberal que assim amplia o controle do mercado sobre toda a sociedade.

A extração de dados dos usuários (usuários similar ao vício das drogas, mobilizado pela produção de dopamina) é a base desse processo, assim como o uso de vários outros recursos, entre eles o Aprendizado de Máquinas (Machine Learning (ML), Inteligência Artificial (IA), etc.  São processos integrados em o uso dos dados através das PDs permitem que as fábricas, lojas, consultórios e escolas entrem em nossas casas, via mídias digitais. Apesar da velocidade destes processos é importante reconhecer que as PDs, a digitalização e a plataformização não são os problemas por si, mas sim o uso e o controle dessas transformações feitas pelos donos dos dinheiros dos investidores e fundos financeiros que estabelecem uma lógica nefasta.

Assim, as plataformas digitais e a plataformização estão hoje presentes, em quase todos os setores econômicos e atividades da vida humana. Da produção material, agrícola, pecuária, beneficiamento e indústria, nos serviços e aplicativos de transportes, saúde (consultas e exames), educação (aulas, seminários, gestão e apoio, etc.), lazer, música, filmes (streamings), interação social (mídias sociais), comércio online (e-commerce), etc. Todas essas atividades estão hoje, num grau maior ou menor, intermediadas pelas PDs. Elas entraram em tudo. Não apenas na educação. Em todos esses processos as empresas-plataformas extraem dados, mas o objetivo é, em especial, extrair valor e recolher os excedentes das economias regionais/locais.

Figura 4: A Plataformização e APPficação dos negócios (marcas):

Elaboração PESSANHA, 2023.

Com o advento da crise sanitária e da pandemia, esse processo foi enormemente acelerado. Aceleração do tempo como dizia Thompson. [9] Ou, como sempre nos lembra o geógrafo David Harvey que se referiu à “compressão do espaço-tempo” a partir dos mecanismos da Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) [10]. O que era estimado para acontecer em uma década foi trazido para um ano, um semestre, ou um mês. E no Pós-Pandemia estamos ainda vivenciando o estímulo ao hibridismo, com o avanço da plataformização sobre os mais variados níveis e tipos de ensino no Brasil: do maternal à pós-graduação.


4- Contextualizando a inserção da Plataformização na área de Educação, no Ensino Fundamental e Ensino Médio

Antes ainda de falar sobre a Plataformização da Educação e dos aplicativos, plataformas digitais e startups educacionais (Ed Techs), é importante registrar, mesmo que brevemente, alguns aspectos e contextos da educação pública nos últimos anos no Brasil, exatamente, quando se ampliou o uso da digitalização na educação através do uso de diferentes plataformas e aplicativos vários estados, níveis e sistemas de ensino público e privado.

Trata-se de um contexto Pós-Pandemia em que as deficiências de aprendizagem se aguçaram, em especial no Ensino Fundamental e no Ensino Médio, ampliando a assimetria entre alunos de escolas públicas e privadas diante das dificuldades de acessos à internet e aos equipamentos cibernéticos. Vazios e empilhamentos fragmentados de conteúdos foram se multiplicando num esforço de ensino de aprendizagem por parte de professores e alunos. Usos de plataformas digitais de forma apressada e naquele momento de medo e que se desejava qualquer forma de romper o isolamento. Vivemos uma fragmentação absurda. Nesse mesmo período, os sistemas de ensino viveram a redução no orçamento de custeio e salários dos educadores; aumento da carga horária e do nº de alunos por professor e, praticamente, nenhum investimento na infraestrutura e nas instalações das escolas públicas. Ao final do isolamento completo, também assistimos ao crescimento da violência nas escolas, propiciada por um ambiente tóxico de ódio em toda a sociedade. 

As alterações no Ensino Médio em 2016 reforçaram ainda mais a fragmentação e a precariedade que vieram junto de processos de terceirizações, privatizações, sociabilidades estremecidas em termos familiares, geracionais e comunitários. A estranheza cresceu no interior da juventude sobre a compreensão do lugar deles no mundo, surgida do aumento da complexidade derivada da virtualidade das relações sociais intermediadas pelas plataformas, quase a todo tempo e em todo lugar e situações (ritmo 24/7). [11] [12] [13] Tudo isso não parece algo solto no tempo e no espaço. Qualquer análise mais aprofundada sobre esse processo, sugere que nesse contexto se perceba em que condições, se tem efetivado a enorme interconexão entre causas e efeitos decorrentes do avanço da Plataformização da Educação.

Gestores e donos das PDEs (Ed Techs) vendem a ideia difusa do progresso e da modernização, a partir da oferta de novas ferramentas de ensino e de uma certa autonomia, em que o trabalho poderia ser feito online (de casa, através do chamado home office), com maior alcance geográfico para dar aulas para outros bairros, municípios e regiões. Junto acompanhava a ainda a vaga sugestão de que esse modelo poderia possibilitar também maiores ganhos financeiros para professores, etc. Esse discurso de vantagens também foi vendido aos alunos, a partir da possibilidade da flexibilidade de horários com o online das PDE e APPs; oferta de cursos mais rápidos, cumprimento de etapas com certificação; oferta ainda de cursos técnicos e superiores com valores acessíveis às famílias de rendas mais baixas, enquanto os donos das PDEs ampliavam seus faturamentos com a massificação das matrículas.

Enquanto isso, se assistia a mistura intensa e perigosa entre a vida profissional com a vida pessoal dos trabalhadores da Educação. O ambiente “fidigital” obrigando a esforços para superação de dificuldades com manejo da tecnologia para além da necessidade de domínio dos conteúdos. Professores sendo substituídos por mentores e tutores com diminuição dos postos de trabalho que eram cativos dos docentes; e um controle quase total sobre o trabalho dos professores na forma, conteúdo (neotaylorismo que nesses tempos são exercidos de forma conjunta ao plataformismo) executados pelos donos das PDEs e Ed Techs contratados pelos gestores de sistemas estaduais de ensino. Observa-se assim, um uso indiscriminado e crescente de plataformas digitais educacionais que se alicerçam no velho esquema da “instrução programada”, skinnerização, uso de games e ofertas de conteúdos ligados à ideologia, modos de vida e costumes como educação financeira, escola sem partido, etc. Em síntese esse foi o contexto que as plataformas digitais entraram ou avançaram no ambiente e nos sistemas de ensino no Brasil.

 

5 - Plataformas-raiz (Big Techs) - Plataformização – Startupização da Educação

Para entendermos a lógica da plataformização e sua função na área da educação é importante entendermos o papel de um de seus principais agentes: as gigantes corporações do setor de tecnologia, as Big Techs que devem ser vistas como “plataformas-raiz”, em especial as cinco companhias americanas: Google, Facebook, Apple, Microsoft e Amazon. [14] Num nível mais abaixo, estão outras como a Nvidia, Tesla, TSMC, Tencent e Samsung. Sobre suas estruturas se penduram - gerando dependência - as demais plataformas, softwares e aplicativos que sabem que a educação é um filão extraordinário para ganhos e acumulação ampliada. Daí se derivou um processo extremamente potente que ampliou o uso e tornou as Plataformas Digitais ainda mais atrativas já contanto com o avanço da infraestrutura de comunicação digital e o peso da internet móvel e celulares que tornaram ainda mais fácil, o esquema de uso das mídias sociais e aplicativos no ritmo 24/7 em qualquer lugar e horário.

Figura 5 - Plataformas-raiz – Big Techs.

     Elaboração autor, PESSANHA, 2020. [3] [5] [6].


Estima-se que 70% das universidades e sistemas de ensino no Brasil usem as Big Techs, em especial Microsoft, Google e Amazon, como plataformas e APPs de tecnologia que fazem as “pontes” até os estudantes, capturando e guardando dados nas nuvens ao mesmo tempo que interligava pessoas e negócios de todo o tipo. Em termos de armazenamento nas nuvens (datacenters) destas três Big Techs são líderes: Amazon AWS-49%; Google Cloud (28%); e Azzure da Microsoft (16%). As Big Techs há algum tempo disponibilizam dezenas de softwares /aplicativos que são amplamente utilizados na educação: Windows, Office 365 (Word, PPT, etc); Gmail; YouTube; WhatsApp, FB, Instagram, Tik Tok, Meet, Team, Productivity Score (ferramenta de vigilância e comportamental de alunos); Reflect (soft para enviar questionários para avaliação de aprendizagem), etc.

A Microsoft possivelmente é a Big Tech mais próxima das universidades e dos sistemas de ensino seguido do Google no Brasil. O soft ClassRoom da Google é também usado para gerenciar turmas, enquanto, o soft Cuppertino (Apple) tem soluções de apoio e capturam inovações pedagógicas e educacionais. Novas soluções seguem buscando transformar o ambiente educacional mimetizando-o para uso digital que em seguida é compartilhado com venda para um público mais amplo. APPs como Power APP, Dynamics 365, Power Virtual, etc., são também muito utilizados. Outras empresas de tecnologia e Ed techs usam softwares e aplicativos que funcionam como acessos às artérias ou avenidas das plataformas-raiz das Big Techs que assim exercem um poder meio que imperial de captura de dados, rendas e valor de educadores e dos estudantes usuários.

O uso intenso e a dependência das plataformas-digitais foram constituindo o oligopólio das corporações gigantes do setor de tecnologia. As Big Techs estão no topo da estrutura dessa transformação digital que envolve os diferentes setores da economia e da vida em sociedade. O processo de oligopolização está diretamente relacionado à plataformização e à criação do modelo de negócio vinculado à tecnologia, conhecido como startups que avançam e dependem do financiamento dos capitais de riscos dos fundos de investimentos. O setor de finanças alimenta o setor de tecnologia e acaba sendo também retroalimentado numa “espiral de acumulação infindável” que explica a maior oligopolização da história da humanidade. Desde a Pandemia as gigantes empresas do setor de tecnologia não param de bater recordes em termos de valor de mercado entre os diferentes tipos de corporações em todo o mundo conforme pode ser visto no quadro 1 abaixo.

Quadro 1: Valor de mercado comparativo das 10 maiores corporações de tecnologia e óleo/gás

As quatro maiores corporações do setor de tecnologia tinham, em maio de 2023, valor de mercado acima de U$ 1 trilhão cada. Juntas, as dez maiores empresas de tecnologia somavam US$ 11,6 trilhões e puxaram muito a valorização das bolsas de valores no mundo, enquanto a economia em geral seguia com pouco dinamismo. Já a soma do valor de mercado das dez maiores corporações de petróleo no mundo somavam apenas U$ 3,7 bi, cerca de três vezes menor. A Pandemia da Covid contribuiu para os dois fenômenos, o freio da economia no geral e a expansão expressiva do valor de mercado das empresas de tecnologia (Big Techs) que na condição de “Plataformas-raiz” se mostraram ainda mais importantes com o isolamento forçado.

A ampliação da digitalização em todos os setores da economia, como etapa atual da reestruturação produtiva global, através do processo de plataformização foi levando a transformações dos negócios e ao surgimento de empresas ligadas ao setor de tecnologia que ficaram conhecidas como startups. A parir da ideia de empreendedorismo, do apoio às incubadoras de empresas e parques tecnológicos, vinculados às universidades e aos centros de pesquisas de grandes corporações, com aportes progressivos e seletivos de capitais viabilizaram esse tipo de empresa-plataformas, na condição de startup (empresa de tecnologia de rápido crescimento) no mercado. Assim, é espantoso ver a rápida evolução do número de startups no mundo e no Brasil.

Segundo a AbStartups, em 2011 no Brasil haviam 600 startups. Uma década depois elas tinham se multiplicado por mais de 20 vezes, chegando a 13.700 startups em funcionamento em 2021. A grande maioria vinculada a negócios tipo plataformas digitais com atuação em diferentes ramos de atividades e negócios. [15] [16]

A evolução deste tipo de negócio de inovação tecnológica, vinculada à tecnologia e ao processo de startupização no Brasil, se deu um pouco antes e foi rapidamente intensificado com o surgimento da Pandemia. Um movimento que veio também acompanhado de um aumento colossal de aportes de capitais de riscos de fundos financeiros, a partir do lançamento de inúmeros editais e rodadas de investimentos para negócios de empresas surgidas na condição startups, com foco em tecnologia e em negócios tipo plataformas.

A evolução desse movimento no Brasil foi muito expressivo e pode ser melhor percebido com os dados da evolução do nº de startups na última década. Outro indicador expressivo e que indica a relação com a financeirização é a dos valores e investimentos, em US$ bilhões de dólares, feitas por investidores nestas startups como pode ser visualizado nos quadros abaixo. Startups de diversos tipos se multiplicando, captando investimentos cada vez maiores, ganhando valor de mercado e se tornando rapidamente unicórnios (startup com calor de mercado superior a US$ 1 bilhão). Entre 2018 e 2022 mais de US$ 20 bilhões foram identificados como investimentos em startups no Brasil.

Quadro 2: Evolução do nº de startups no Brasil; Quadro 3: Investimentos em startups no Brasil entre 2018 e 2022:


Elaboração do autor. Fonte dos Dados: AbStartups e Consultoria Distrito. [15] [16]

São números colossais e que explicam o processo que tenho chamado de startupização que possui lógica própria vinculada diretamente à financeirização. As Startups no setor de tecnologia são vinculadas a diferentes setores e assim são denominadas com uso de expressões em inglês mais o sufixo tech de tecnologia: Finanças (Fintechs); Educação (EdTerch); Saúde e Bem-estar (HealthTech ou MedTech); Agronegócios (AgroTech ou AgTech); Tecnologia da Informação (TiTech); Alimentação (FoodTech); Imóveis (PropTech); Transporte e mobilidade (AutoTetch) ou Logística (LogTech); Direito e legislação (Lawtech ou Legaltech); Energia (EnergyTech); Esportes (SportTech); Gestão de pessoas (HRtech ou RHtech); Construção (ConstruTech); Seguros (InsurTech); Governo (GovTech); Varejo (RetailTech); Publicidade, marketing e anúncios (AdTech ou MarTech); Sustentabilidade (CleanTech); Nanotecnologia (NanoTech); Entretenimento e lazer (FunTech); Moda (FashionTech); Biotecnologia (BioTech); etc.

A diversidade de áreas demonstra como a tecnologia é na prática um setor transversal que atravessa todos os ramos de atividade e por isso, através de inovações e plataformas digitais elas desenvolvem inovações e capturam valor no interior destas cadeias produtivas. Assim, é possível identificar que os processos de plataformização leva a outros processos, num efeito em cadeia, diretamente imbricados à financeirização e oligopolização, estes vinculados a processos de fusões e aquisições entre as empresas-plataformas e startups. Para confirmar essa direção, no Brasil já se observa um número crescente de fusões e aquisições de startups que assim se transformam em unicórnios, com valor de mercado superior a US$ 1 bilhão.

Entre as várias startups estão as Plataformas Digitais Educacionais (PDEs) e Startups Educacionais, as Ed Techs. O papel das PDEs e Ed techs é o de fazer a intermediação entre grupos com demanda por formação e/ou certificação com donos e grupos de produtores de conteúdos (PDEs e Ed Techs) que não param de crescer no Brasil, captando investimentos de diversas fontes, mas em especial de fundos financeiros com atuação no Brasil.

Desta forma, o Plataformismo como modo de produção capitalista chega também ao setor de Educação. Lá atrás, o Taylorismo/Fordismo já tinha influenciado na organização da escola com a adoção da ideia do seriado (séries), grades curriculares e disciplinas, repetindo a conhecida divisão internacional do trabalho (DIT). A flexibilidade do Toyotismo trouxe a acumulação flexível e a ideia da produção sob demanda (Just In Time). Assim, o Plataformismo pode representar uma nova etapa do MPC que não significa a superação do Taylorismo/Fordismo e nem do Toyotismo, mas, o convívio simultâneo com elas a partir das Plataformas Digitais como novo tipo de negócio financeirizado e digitalizado com eficiência ampliada em relação à antiga linha de montagem, a partir das capacidades simultâneas das PDs como meio de comunicação e meios produção, como uma espécie de nova linha montagem do ambiente digital.

Figura 6: Plataformismo – Transformações no Modo de Produção Capitalista


Elaboração do autor. PESSANHA, 2020. [3]

Agora, com o início dessa espécie de “sociedade das plataformas” é possível que essa nova etapa do modo de produção capitalista (MPC) também influencie – de uma forma a ser ainda avaliada e conforme as resistências dos trabalhadores – em novas formas de reorganização da sociedade contemporânea e também do ambiente da escola. Uma observação inicial do que pode estar em curso é a hipótese já pode estar havendo uma certa adaptação, com uso “quase natural” das PDs também no ambiente da Educação, de forma similar ao que já acontece no e-commerce, no uso de aplicativos (APPS) para diferentes tipos de serviços, que seria parte desse fenômeno a que está sendo chamando de Plataformização da Educação.

Trata-se de um esquema ou negócio (tipo plataforma) que tende a fortalecer as bases e as condições para uma maior terceirização e privatização, através da contratação de empresas (com tutores), menos professores surgido junto do discurso único neoliberal da redução de custos nos sistemas públicos de educação. Nesse percurso as escolas podem, de forma paulatina e majoritária, saírem da condição de ambientes de aprendizagem para centros de certificação de títulos e cursos. O início desse processo pode já ter se dado através dos cursos livres e extras de línguas estrangeiras, depois matemática básica, redação, robótica, cursos profissionalizantes quase sem laboratórios e sem experiências reais e materiais que garanta uma formação de qualidade, mas passa a ideia difusa do moderno ligado à computação e ao digital. Esse processo segue avançando de forma acelerada para os conteúdos de outras disciplinas e às contratações de empresas-plataformas (Edtechs) pelos sistemas estaduais de ensino.

Porém, há que se ter clareza que o que se justificou na Pandemia, não se sustenta mais. Não estamos mais em situação de emergência, em que qualquer medida era melhor que a paralisia e o isolamento entre alunos, professores e a falta de mediação da escola no processo ensino-aprendizagem. Educação é muito mais que que um recurso didático isolado como infraestrutura de intermediação facilitadora da circulação de informações. O conhecimento é algo maior e exige sociabilidade, interação que pode ser auxiliada pelas técnicas digitais e pelas plataformas para melhorar e enriquecer o processo de aprendizagem. A construção do conhecimento é o inverso da fragmentação com acúmulo isolado de fatos e informações. Assim, há que se frear esse ímpeto irresponsável da plataformização a todo custo, no menor tempo possível e implantado à revelia dos educadores.

A construção do conhecimento exige o desenvolvimento de capacidades de articulação de saberes, em que a sociabilidade é base indispensável. Assim, é inaceitável que esse processo de intensificação do uso das Plataformas Digitais Educacionais (PDEs) seja guiado pela redução de custos, pela ideia difusa do descarte do papel do professor e pelo ideário neoliberal da produtividade a todo o tempo e em todos os processos.

 

6. As PDEs e Ed Techs no Brasil

O Brasil tem hoje quase meia centena de milhões de estudantes nos diversos níveis. Um pouco mais da metade disso (27 milhões) no Ensino Fundamental; 8 milhões no Ensino Médio e cerca também de 8 milhões em graduação. Em 2019, antes da Pandemia, pouco mais de 10% (até 14%) das escolas públicas utilizavam algum tipo de plataforma de ensino à distância ou via aplicativos. Durante a Pandemia, cerca de 80% das escolas iniciaram esse processo. Cerca de 90% dos professores começaram nesse ambiente, sem nenhuma experiência em ensino remoto; 50% tinham uma regular habilidade com técnicas digitais e 42% nenhuma habilidade e/ou conhecimento. Cerca de 70% declararam ter medo e insegurança, mas diante da situação de emergência e pressões exerceram atividades em PDs e PDEs (GIZ-PROGRAD-UFMG, 2021) [17].

Hoje, no Pós-Pandemia no âmbito da Educação, em seus diversos níveis, há ainda muitos e complexos desafios. Em especial na Educação Pública e no Ensino Básico. A digitalização quase que obriga a pensar em ampliar e reformular a forma de ensinar. O hibridismo é cantado em versos e prosa como alternativa. A sala de aula que deveria ter mais espaços de investigação, integração, sociabilidades e debates sobre aprendizados coletivos e interativos, está sendo pressionada para um uso maior das PDEs como alternativa quase única. É inaceitável que isso seja feito sem debates e qualquer iniciativa precisa ser um processo paulatino com avaliações periódicas e ampla participação das comunidades escolares. Os percursos não precisam ser iguais, mas não podem ser obrigatórios.

Essa geração de crianças, adolescentes e jovens não pode ser penalizada duplamente. Além de viverem o período difícil da Pandemia, é inaceitável e criminoso, ver novamente essa mesma geração de adolescentes e jovens, obrigados também a conviver com experimentações skinnerizadas [18], sem reflexão sobre essas mudanças. Com mais essa fragmentação entre o online e o presencial num mundo em que a transdisciplinaridade é uma necessidade para a qual ainda não tínhamos sequer avançado ou mesmo iniciado.

A escola e os sistemas de educação precisam entender melhor as mudanças em curso, inclusive no mundo do trabalho. Evitar a fragmentação e buscar maior integração, sociabilidade, mais reflexão e diálogo entre dirigentes, professores e alunos. Assim, pensar criticamente nos caminhos para essas mudanças.

As mudanças com a digitalização do ensino são partes das transformações do MPC em diferentes setores e na sociedade com efeitos econômicos sociais e políticos, entre eles a mais preocupante é a fragmentação do sujeito, a individualização e uma tendência reforçada e ampliada à meritocracia.

“A digitalização, as plataformas e o teletrabalho atomizam o mundo do trabalho e fazem de cada trabalhador(a) uma unidade produtiva, um sujeito desagregado e pressionado pelo assédio e pelas ameaças da meritocracia para alcançar produtividade” (GROHMAN, 2020) [7] através das chamadas “entregas”.

A tecnologia digital deve ser meio para auxiliar o processo ensino-aprendizagem para assim contribuir no aperfeiçoamento e na qualificação do ensino e a da instituição Escola e não o inverso. O avanço do uso das plataformas, parecem querer mostrar e impor a ideia – mesmo negando - que os sistemas de ensino podem prescindir da da escola e do professor.

Há um desafio na sociedade que é o de fazer com que o estudante possa conseguir transitar nesse mundo em profundas transformações.  O desafio é também de ajudar os jovens para atuarem num mundo constantemente instável e de transformação permanente. Para os adolescentes e jovens entenderem melhor sua identidade no mundo, seu pertencimento e seus relacionamento com os diferentes, a Skinnerização não tem nada a contribuir naquilo que é mais essencial, apenas com o que é periférico. A construção do conhecimento e a educação é o processo inverso da fragmentação e da individualização, presentes na maioria das plataformas e aplicativos educacionais até aqui. 

A UFMG empreendeu estudos e pesquisas através de alguns núcleos de pesquisas (em especial da Faculdade de Educação e da Pró-Reitora de Graduação) sobre o tema das Plataformas Educacionais. Uma dessa pesquisas, em 2020, no auge da Pandemia, teve o apoio da CNTE [17]. O Comitê Gestor da Internet no Brasil CGI.br (LabJor da Unicamp) tem estudado e acompanhado o assunto, expondo uma enorme preocupação com o papel crescente e hegemônico das Big Techs e com a falta de estrutura nacional que oriente o uso dessas infraestruturas digitais ligadas à Educação e também ao surgimento de centenas de startups ou Ed Techs (Empresas-plataformas ou empresas-aplicativos) na área de educação. [19]

Um estudo (pesquisa) da Abstartup / Deloitte /Amazon, junto com o Centro de Inovação Educacional (CIEB) identificou o crescimento das Ed Techs (Plataformas Educacionais) no Brasil, sob a perspectiva de mercado para oferta destes serviços de PDE, através das startups que, em sua quase totalidade, têm financiamento de investidores dos chamados capitais de riscos. Segundo a Abstartup em 2019, o Brasil tinha 449 EdTechs. Em 2020 já eram 566 EdTechs (+26%); em 2022 tinha chegado a 813 Ed Techs. Ou seja, em três anos (2019-2022) cresceu 81%, conforme evolução mostrada no quadro abaixo:

Quadro nº 4: Evolução do nº de Ed Techs no Brasil no triênio 2019 e 2022:


Elaboração do autor. Fontes dos Dados AbStartup. [20]

O mapeamento das Ed Techs divulgado pela Abstartup [20] expõe que esse tipo de startup se organiza principalmente por oferta de cursos e níveis: cursos livres (não formais, qualificação e profissionalização) e cursos preparatórios e EaD (Educação à Distância). Atuam nos níveis: Infantil (inicialização e pré-escola até 5 anos); Básico (Fundamental e Médio); Superior (graduação e pós-graduação); Corporativa (gestão, treinamentos específicos e simuladores) e Idiomas (línguas estrangeiras).

As EdTechs são classificadas ainda por recursos entre softwares e hardwares. A maior parte são de softwares e plataformas que são ainda classificadas por conteúdos ou ferramentas. Por conteúdos: cursos; jogos; ODA (Objeto Digital Apoio); Sistema de Gestão da Educação (SIG e SIS); Sistema de gerenciamento de aulas; Plataformas Educacionais; Repositório Digital. Por Ferramentas: Apoio à aula; Apoio à gestão; Avaliação do estudante; Auditoria; Colaboração; Conteúdo Pedagógico; Gerenciamento currículo e Tutorial.

Do universo de mais de oito centenas de EdTechs, cerca de 70% delas tinham recebido investimentos privados financeiros; 40% recebem entre R$ 500 mil e R$ 2,5 milhão. Na média as EdTechs recebem investimentos de R$ 1,3 milhão. Em 2022 foram registradas 187 aquisições e 13 fusões entre as startups, configurando um processo ainda inicial de oligopolização também no Brasil. No Mapeamento, a consultoria Holon IQ informou que US$ 21 bilhões de investimentos nas startups no Brasil, entre os 2018 e 2022, sendo mais de um US$ 1 bi apenas nas Ed Techs. Os tipos de startups que mais crescem no Brasil estão Ed Techs (15%); Fintechs – Financeiras - HealtTechs (Saúde) com 9% e as TITechs (Desenvolvimento de Tecnologia da Informação (6,7%). A maioria das EdTechs (38%) estão concentradas em SP e no Sudeste (55%). [20]

Figura 7 – Mapa da distribuição geográfica das Ed techs no Brasil:  


Fonte. Mapeamento de Ed Techs no Brasil. Slide 16/79. [19]

 

7. Processos analisados na perspectiva de totalidade (Plataformização - Startupização - Financeirização e Oligopolização) evidenciam a lógica neoliberal:

Através de um olhar mediado com a perspectiva de totalidade para esses processos interligados de Plataformização, Appficação, Startupização (Modelo de Negócio), Financeirização e Oligopolização (Unicórnio (Oligopolização) é possível avançar um pouco mais. Como já foi comentado, os processos de plataformização levam a outros processos num efeito em cadeia, imbricados à financeirização e à oligopolização, vinculados também a processos de fusões e aquisições entre as empresas-plataformas e startups.

São vários os casos de startups ligada à educação EdTechs buscando editais e rodadas de financiamento organizada por instituições de apoio à ciência e tecnologia e bancos de fomento. Vale citar um caso divulgado pela revista Pequenas Empresas e Grandes Negócios em 5 de julho 2023: “Edtech Teachy capta R$ 8 milhões em rodada pré-seed - Investimento foi liderado pela NXTP e teve participação da Roble Ventures. Plataforma lançada neste ano tem o objetivo de facilitar o trabalho dos professores”. [21]

Ao observar esses movimentos é possível interpretar e analisar a superestrutura desse sistema, a partir de uma perspectiva de totalidade, identificando onde se situam as Plataformas Digitais Educacionais e EdTechs como ferramenta; como elas desenvolvem os processos de plataformização de forma imbricada à financeirização e como essa relação produz a tendência de oligopolização que surgem a partir de fusões e aquisições de empresas similares e concorrentes. Esses movimentos e articulações estão expostos no esquema gráfico da figura abaixo, desde as Big Techs às pontas do sistema após passar pelos processos descritos.

Figura 8: Esquema gráfico dos processos integrados a partir das Big Techs e seus financiamentos


Elaboração (em construção) do autor. PESSANHA, 2023.

Ainda numa leitura mais ampla e numa perspectiva de totalidade é possível entender esses processos como responsáveis pelo que venho denominando junto com outros pesquisadores, como o tripé do capitalismo contemporâneo. Nele, a fase atual da reestruturação produtiva pode ser vista pela intensificação da digitalização e pelo o desenvolvimento do Plataformismo como nova etapa do MPC, em movimento conjunto com a hegemonia financeira que é decorrente do modus operandi da financeirização nos negócios. Juntos, eles forma uma trilogia de movimentos sob a lógica e a égide do neoliberalismo, sustentados nos princípios da desregulação, controle do mercado e no discurso único sobre a redução de custos, terceirização e privatização da vida em sociedade. Portanto, diante dessa realidade empírica não é difícil identificar a Plataformização da Educação como parte desse processo mais amplo.

Figura 9: Tripé do capitalismo contemporâneo


Elaboração PESSANHA, 2022.

Esse tripé que vem sustentando o capitalismo contemporâneo é composto de diversas outras tríades que expõem as diferentes dimensões e escalas em que esse fenômeno vem se desenvolvendo e produzindo deslocamentos (DOWBOR, 2020) [22]. Porém, na essência observa-se que esse movimento tem contribuído para ampliar as capacidades do andar superior das finanças em aumentar seus lucros, apropriar mais renda e valor e, assim constituir regimes mais potentes de acumulação e hegemonia financeira em aliança à dominação técnico-digital que assistimos no presente e está exposta nesse ensaio. 

 

8- Tendências /Riscos com ampliação do uso das PDEs (Ed Techs) e recursos do ML, IA e ChatGPT

Dialeticamente, a tecnologia digital é muito atrativa e tentadora. Ela nos liberta e simultaneamente nos aprisiona. Os acessos à informação e à comunicação são, ao mesmo tempo, remédio e veneno, nos lembra Pierre Lévy.  Com essa perspectiva e diante da leitura de que é possível aproveitar os recursos das tecnologias, mas noutra direção, é que se apontará a seguir nesse texto, um conjunto de tendências e riscos que a ampliação desenfreada do uso das Plataformas Digitais e Aplicativos Educacionais (PDEs e APPs) da EdTechs trazem para todos. Sem os cuidados necessários, com velocidade e experimentalismos inaceitáveis e sem diálogo com os docentes e alunos (e suas representações) esses movimentos de plataformização podem estar conduzindo a Escola e os sistemas de ensino público no Brasil contemporâneo a caminhos indesejáveis. Com essa preocupação (e em síntese) lista-se abaixo um conjunto de tendências e riscos que em parte já foram abordados no presentes texto:

 

a) Nossos dados são a chave para soluções adotadas pelas PDE, Ed Techs, com uso dos BD, ML, IA e ChatGPT.

b) O Aprendizado de Máquina (ML), a Inteligência Artificial e os aplicativos tipo ChatGPT e similares tendem a avançar na linha de atender às necessidades individuais – princípio o neoliberalismo – em ritmos próprios de aprender a ler, contar (matemática) e de maior acesso a conhecimentos gerais e flexibilidade de lugar e hora para aprender.

c) Tendência de ampliação da gamificação (simuladores, jogos) como modelo para a Escola e para a vida em sociedade incorporando a lógica da competição e redução da autonomia.

d) Avanço das startups EdTechs (já são 1º em crescimento entre as startups) com transformação digital da sala de aula através da Plataformização paulatina da escola e da Educação.

e) EdTechs tendem a crescer como instrumento do discurso sobre o empreendedorismo na formação do aluno como sujeito que se faz por si próprio – fábrica do sujeito neoliberal (DARDOT e LAVAL, 2017) [23] – acompanhado de cursos e instruções de educação financeira, saúde, etc.;

f) EdTechs vão passar a entrar nos ambientes virtuais MetaversoRealidade Aumentada (RA) e Virtual (RV) com aulas em viagens ao redor do mundo; viagens especiais e setoriais coma promessa de oferta de habilidades cognitivas complementares aos alunos.

g) Tendência de ampliação da mistura entre Educação e treinamento corporativo apresentadas como qualificação para o Trabalho como já define as questionadas diretrizes do Ensino Médio; Tendência da lógica de educação mais empresarial e não do trabalho como princípio educativo;

h) Maiores pressões para o aumento das terceirizações e contratações de Ed Techs com tutorias em substituição ao professor;

i) Tendência paulatina de que algumas escolas possam se transformar, quase que apenas, em centros de certificação de títulos, cursos e níveis de ensino;

j) Ampliação do modelo de ensino híbrido, com fragmentação do ensino; tendência de guetificação de grupo de alunos; maior individualismo, competição, gamificação, skinnerização e meritocracia que seguem o ideário neoliberal. Ao inverso, tendência para uma maior dificuldade para formação coletiva, sociabilidade e organização social e comunitária.

k) Tendência de des-reponsabilização da escola a partir do ensino-aprendizagem mais centrado numa lógica do aprendizado contínuo (Lifelong Learning) também fora da sala de aula.

Estes riscos e tendências, evidentemente, não são processos inexoráveis. Os questionamentos e as resistências à lógica produtivista de uma Educação desvinculada da preocupação real pela melhoria da Educação está se ampliando, assim como a disposição para se construir uma formação cidadã que nos leve a percorrer caminhos diferentes em nossa sociedade.

 

9 - O que fazer diante dessa realidade?

O contexto em que vivemos no Brasil em 2023, após superar os momentos duros da Pandemia e de ameaças mais forte e concretas do fascismo e do desmonte das políticas públicas, executadas pela extrema-direita em todas as áreas no país, em especial da Educação e, diante das tendências, ameaças e riscos ainda presentes e, em parte listadas acima, é necessário pensar, discutir e apontar, ao menos, alguns caminhos. Não apenas para resistir, mas ir adiante, também formulando e colocando em movimento, ações críticas e contra-hegemônicas, a favor dos trabalhadores e da maioria da nossa sociedade. Assim, esse ensaio será finalizado com a indicação de algumas sugestões iniciais, para que elas possam ser discutidas no âmbito da organização dos trabalhadores da educação enquanto estratégias e mobilizações:  

a)        Acompanhamento, análise e avaliação crítica do processo de plataformização da educação com a implantação e uso crescente das Plataformas Digitais Educacionais nas escolas. O mecanismo de monitoramento pode envolver educadores, pais e alunos (em especial do Ensino Médio) e deve seguir levantando dados sobre os tipos de plataformas educacionais utilizadas no Paraná, outros sistemas de educação estaduais, escolas privadas e outros níveis e tipos de ensino (EaD, Ensino Tecnológico e Profissionalizante, etc.). Reunir depoimentos, registros e avaliação dos educadores, pais e alunos sobre a implantação e utilização das PDEs em escolas de diferentes regiões e municípios por tipos de direção, gestão da escola (período integral e parcial) e ensino: Fundamental e Médio e por vinculação às diferentes disciplinas. Constituir banco de dados sobre as empresas (e seus donos) proprietárias das PDEs (as EdTechs) por tipo e valor dos contratos, feitos junto à Secretaria Estadual de Educação. Acompanhamento dos valores efetivamente gastos pelo poder público para a contratação, licenciamento (assinatura) para uso das PDEs. Organizar banco de dados sobre problemas e soluções identificadas para o uso sistemático destas PDEs, assim como os mecanismos de by-pass adotados por professores e alunos para fugir ao controle dos sistemas e algoritmos sobre o trabalho docente e rendimento dos alunos. Identificar e registrar de forma clara os processos de precarização e espoliação do trabalho educativo decorrentes do uso das PDEs. 

b)     Constituição de um acervo gerado a partir deste levantamento permanente de dados e indicadores referentes à plataformização poderão compor uma espécie de Observatório da Plataformização da Educação, coordenado por um comitê ou, até eventualmente, por uma institucionalidade mais robusta tipo fundação ou instituto a partir de avaliação da categoria e direção do sindicato. 

c)     Ampliação do conhecimento dos educadores, pais e alunos, sobre o que representa o avanço da plataformização da educação, da forma como vem sendo conduzida, para todas as partes envolvidas. O objetivo deste trabalho poderá ser o aumento da mobilização para uma maior pressão junto à gestão do sistema de educação estadual, no sentido de garantir mecanismos de auscultação permanente e participação dos educadores, pais e alunos nas decisões sobre a implantação destas plataformas digitais educacionais na rede pública. 

d)       Definir como premissa das pesquisas, investigações e dos registros, a identificação da hipótese do crescimento da fragmentação, individualismo ou individualização, skinnerização e redução da capacidade de reflexão na avaliação do processo de plataformização. Nessa linha também ter como direção a observação do avanço dos gastos com a plataformização, a terceirizações e privatizações do trabalho (mentoria e tutoria), serviços e estruturas das escolas do sistema. 

e)       Trabalhar com a hipótese de desenvolver plataformas educacionais sustentadas em direções e perspectivas distintas da maioria dessas que estão sendo disponibilizadas. Que projetem a perspectiva alternativas de uma educação por projetos transdisciplinares e multidisciplinares e com uso de formas e fórmulas de integrar e não dispersar e fragmentar a construção do conhecimento; e também com a perspectiva de ampliar a sociabilidade consorciada (digital e presencial ou fidigital) e a organização comunitária. 

Para fechar, em síntese, uma sugestão bastante interessante feita pelo professor Cleiton Denez, secretário executivo de Formação Pública Sindical e Cultura, no curso do debate no seminário da APP Sindicato, para lema da estratégia de mobilização e de superação da realidade atual e constatada. Parodiando o geógrafo Milton Santos, num dos seus livros “Por outra globalização” [24], Denez sugeriu um excelente mote de campanha: “Outra plataformização é possível!”.

 

10 – Considerações finais: “outra plataformização é possível!”

Pelo exposto aqui nesse ensaio, é possível sustentar que o processo de Plataformização da Educação tem similaridades com aqueles que estão se desenvolvendo noutros campos de atividades entre causas e consequências diversas, mas também algumas particularidades. A análise sobre a dimensão do trabalho e sua organização diante do incremento do uso das plataformas digitais, necessita ser melhor estudada e aprofundada, em especial no que diz respeito às consequências para a classe trabalhadora que está sendo fortemente impactada com o avanço da digitalização e da financeirização no mundo contemporâneo. O trabalho e o trabalhador estão sendo deslocados e enormemente pressionados, para uma condição de extração de ainda mais valor.

O campo da Educação não pode ser investigado apenas como atividade econômica e/ou como um tipo específico de serviço que agora se utiliza das plataformas digitais como instrumento, mas como um trabalho vinculado ao processo civilizatório e ideológico de grande interesse da classe trabalhadora. Os educadores dependem do seu trabalho para sobreviver, enquanto classe, mas também enquanto trabalhadores, são aqueles que constroem o conhecimento e têm responsabilidades para a formação das novas gerações de trabalhadores.

Ao levantar e analisar os movimentos ligados às PDEs que produzem o fenômeno da Plataformização no campo da Educação, é importante que se identifique as EdTechs como negócios de tecnologia digital na área de educação que vendem o discurso da modernização, da otimização da aprendizagem e da redução de custos e do papel do Estado. Nesse sentido, a lógica da plataformização agiliza e disponibiliza os fluxos de informações, mas não garante interação e a formação dos sujeitos. Essa lógica tem levado à fragmentação que ao contrário do desejado, tem reforçado as dificuldades de aprendizagem.

Tratam-se de processos que podem servir bem aos negócios do e-commerce/marketplace, a alguns serviços, mas não servem como solução única, ao processo que exige interação social como é o caso da Educação. A fragmentação amplia as dificuldades para a reflexão e elaboração do pensamento reflexivo e crítico que exige múltiplas atenções, conexões e capacidade de formulação para interpretação e inter-relação entre os fatos. 

Conhecimento é o inverso da fragmentação. O ser humano não pode ser meio e sim o sujeito com capacidade de leitura, reflexão e interpretação. Até a etapa do Ensino Médio, como parte da Educação Básica, é difícil aceitar e imaginar o processo educacional apartada ou com reduzida sociabilidade pessoal.

Após a Pandemia, se percebe que a Educação vem sendo empurrada, diuturnamente, para o modelo híbrido, quase que como discurso único e sem alternativas. A pandemia ajudou a nos encaminhar para um modo mais individualista de ser e de viver com menos interações sociais presenciais. Porém, a Escola precisa permanecer sendo um Espaço em que se aprende mais com o convívio no ambiente de aprendizagem do que com o conteúdo e apenas através da relação professor-aluno ou aluno-máquina cibernética. É preciso enfrentar com todas as forças, a fragmentação, a dispersão e o sentimento de distopia. As PDEs podem servir de auxílio a esse processo, como complemento, mas nunca de substituição.

As máquinas cibernéticas têm mais habilidades para analisar e processar enormes volume de dados. Elas podem dar ao sujeito opções de escolhas, para os quais os educandos precisam ser preparados para decidir e escolher caminhos.

Ninguém quer ser comandado por aplicativos e algoritmos, muito menos os professores e os nossos alunos. Os donos de plataformas e startups estão em sua maioria desenhando sistemas para extrair mais valor de interfaces cibernéticas que incluem o ML, IA e ChatGPT como modelos sofisticados de linguagem.

Além de tudo isso, não é admissível a covardia em submeter os estudantes desta mesma geração, que acabou de sair de um longo período de isolamento e com diversos problemas de aprendizagem, socialização e pressões mentais e transforma-los num depositário de experimentos tecnológicos a serviço do capital. Deve-se ter a clareza que os aplicativos e as plataformas digitais não são um problema em si. Não se deve repetir os ludistas que tentaram quebrar as máquinas no início da revolução industrial, a saída agora também não é quebrar os computadores e jogar fora os celulares. O grande problema é o uso da tecnologia controlado por grupos empresariais e financeiros que sob uma lógica neoliberal, passam a querer dirigir os sistema de educação.

O papel da ESCOLA tem que ser cada vez mais, o de preparar o SUJEITO para desenvolver o pensamento crítico. Pensamento crítico significa conhecimento e habilidades para manter o protagonismo e a capacidade de escolhas do ser humano (educando). Os sujeitos podem receber e se interagir com as máquinas cibernéticas e com os algoritmos, em vez de apenas receberem ordens destes. Assim, coletivamente é possível entender que ao contrário do que se pode imaginar, o papel do ESCOLA se amplia e deve ser ainda mais essencial, ao invés dessa visão de descarte paulatino do educador e da escola, quase que apenas para certificação. Outra plataformização inclusiva, participativa e com ideário coletivo, solidário e transformador é possível, assim como um outro mundo também é possível. Sigamos na luta e em frente!

 

Notas e referências:

[1] Encontro temático “Tempos Digitais" com mesa-redonda intitulada “Plataformização na Educação”, organizado pelo Laboratório Formação em Docências no Ensino Superior (GIZ-PROGRAD-UFMG) e Pró Reitoria de Graduação da UFMG, em 21 de maio de 2021. O encontro temático teve a abertura da pró-reitora de Graduação, professora Benigna de Oliveira e a mesa-redonda foi mediada pelo educador Marcos Vinícius Tarquínio (UFMG), coordenador do LabDocências-UFMG e contou com a minha participação e dos professores-pesquisadores, Marcos Alves (UFMG) e Leonardo da Cruz (UFPA). A gravação do evento pode ser vista neste link: https://www.youtube.com/watch?v=vOYlyQWbfF4

[2] Um texto com a síntese da minha participação e título Plataformização da Educação foi publicado no meu blog e no Portal 247 no dia 25 de maio de 2021. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2021/05/plataformizacao-da-educacao.html

[3] PESSANHA, Roberto Moraes. Inovação, financeirização e startups como instrumentos e etapas do capitalismo de plataformas. In. Geografia da Inovação: territórios, redes e finanças. P.433-468. Rio de Janeiro. Consequência, 2020.

[4] CASTELLS, M. A sociedade em rede. Paz e Terra: São Paulo. 2002.

[5] A expressão “vampirismo digital” representa a substantivação de fenômenos observados em que se pretende apreender e debater os significados desses processos e fenômenos em curso e não a construção de conceitos e/ou categorias para uma análise teórica mais profunda, embora igualmente válida. A expressão “vampirismo digital” aparece no ensaio como símbolo da extração de renda e valor exercida pela tecnologia digital. O termo é mais comentado num outro texto:

PESSANHA, Roberto Moraes. Commoditificação de dados, concentração econômica e controle político como elementos da autofagia do capitalismo de plataforma. Revista ComCiência do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp e SBPC. Disponível em: <http://www.comciencia.br/commoditificacao-de-dados-concentracao-economica-e-controle-politico-como-elementos-da-autofagia-do-capitalismo-de-plataforma/>.

[6] PESSANHA, R.M. Disputa no e-commerce de varejo no Brasil: entre o intangível do digital e a materialidade da infraestrutura de logística. In: Marcas da Inovação no Território, Vol. II (P.45-71). Editora Letra Capital. Rio de Janeiro. 2020.

[7] GROHMANN, Rafael. Plataformização do trabalho: características e alternativas. In: Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. BoiTempo. São Paulo, 2020.

[8] SRNICEK, N. Valor, renda e capitalismo de plataforma. Revista Fronteiras – estudos midiáticos. Vol. 24 Nº 1. Janeiro-abril 2022. Disponível em: https://revistas.unisinos.br/index.php/fronteiras/article/view/24920

[9] THOMPSON, E. Costumes em comum: estudos sobre cultura popular tradicional. Companhia das Letras. São Paulo, 1998

[10] HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: BoiTempo, 2005.

[11] Artigo de Giuseppe Luca Scafiddi publicado em 17 fev. 2020, no portal Outras Palavras. Cronofagia: O roubo do tempo, sono e ideias. Disponível em: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/cronofagia-o-roubo-do-tempo-do-sono-e-das-ideias/

[12] CRARY, Jonathan. 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. Ubu. São Paulo, 2016.

[13] CRARY, Jonathan. Terra arrasada: Além da era digital rumo a um mundo pós-capitalista. Ubu. São Paulo, 2023.

[14] MOROZOV, Evgeny. Big Techs: A ascensão dos dados e a morte da política. Ubu Editora. São Paulo, 2018.

[15] ABSTARTUPS. Associação Brasileira de Startups. Disponível em: https://abstartups.com.br/

[16] Distrito. Consultoria em startups. Disponível em: https://distrito.me/startups

[17] Pesquisa da UFMG/CNTE sobre o trabalho docente da rede pública pela via digital aponta precariedades, intensificação e baixa participação dos estudantes. Divulgada no Portal 247, em 16 de julho de 2020 com o título: Ensino digital na pandemia: precariedades e baixa participação dos estudantes. Disponível em: https://www.brasil247.com/blog/ensino-digital-na-pandemia-precariedades-e-baixa-participacao-dos-estudantes. Em meu blog, 16 de julho de 2020, comentei alguns dados e indicadores dessa pesquisa com um texto com o título: Pesquisa da UFMG/CNTE sobre o trabalho docente da rede pública pela via digital aponta precariedades, intensificação e baixa participação dos estudantes. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2020/07/pesquisa-da-ufmgcnte-sobre-o-trabalho.html

[18] A expressão skinnerização é a leitura de um processo deriva das ideias do psicólogo behaviorista americano Burrhus Frederic Skinner. B. F. Skinner foi professor na Universidade Harvard de 1958 até sua aposentadoria, em 1974. Skinner considerava o livre arbítrio uma ilusão e ação humana dependente das consequências de ações anteriores. Para Skinner a educação devia ser planejada passo a passo, de modo a obter os resultados desejados na "modelagem" do aluno. Em síntese, Skinner acreditava na possibilidade de controlar e moldar o comportamento humano.

[19] CGI. COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL – CGI.br. Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR - NIC.br. Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação – Cetic.br. Disponível em: https://cgi.br/publicacao/pesquisa-sobre-o-uso-das-tecnologias-de-informacao-e-comunicacao-nas-escolas-brasileiras-tic-educacao-2021/

https://cgi.br/media/docs/publicacoes/1/20220929112852/educacao_em_um_cenario_de_plataformiza%25C3%25A7ao_e_de_economia_de_dados_problemas_e_conceitos.pdf

https://cgi.br/media/docs/publicacoes

 [20] Mapeamento das Ed Techs 2022: https://abstartups.com.br/wp-content/uploads/2022/11/MAPEAMENTO-EDTECH-1.pdf

[21] BRITO, Carina. Revista Pequenas Empresas e Grandes Negócios (PEGN), em 05 Julho 2023. Edtech Teachy capta R$ 8 milhões em rodada pré-seed. Investimento foi liderado pela NXTP e teve participação da Roble Ventures. Plataforma lançada neste ano tem o objetivo de facilitar o trabalho dos professores. Disponível em: https://revistapegn.globo.com/startups/noticia/2023/07/edtech-teachy-capta-r-8-milhoes-em-rodada-pre-seed.ghtml

[22] DOWBOR, L. O capitalismo se desloca: novas arquiteturas sociais. Ed. Sesc. São Paulo, 2020.

[23] DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: BoiTempo, 2017.

[24] SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Record. Rio de Jan


[1] Pesquisador e professor titular aposentado do Instituto Federal Fluminense, doutor pelo Programa de Políticas Públicas e Formação Humana, PPFH-UERJ.