quinta-feira, maio 30, 2024

Comércio online, disputa entre os players e captura das rendas locais: plataformização segue produzindo enormes transformações

Uma parte da discussão sobre a taxação das importações até U$ 50 que acontece no Brasil atual, se insere na questão mais ampla do comércio eletrônico (e-commerce) onde se trava uma enorme disputa no país.

Valor: 29 mai. 2020, P.F4. [1]
Desde o ano de 2020, o volume de vendas no e-commerce no Brasil cresceu cerca de 60% e deve superar R$ 204 bilhões, num universo que envolve quase 100 milhões de compradores online. Reflexo do que tenho chamado de Plataformização.

Nesse âmbito, apenas para citar um exemplo, uma das players do e-commerce, a Mercado Livre é a maior vendedora de peças de automóveis do Brasil.

Em 2020, no período que envolveu a Pandemia, eu realizei uma pesquisa que reduziu na publicação de um artigo na revista ComCiência da área de jornalismo da Unicamp, depois republicado com algumas alterações no Livro "Marcas da Inovação no Território" com o título: "Disputa no e-commerce de varejo no Brasil: entre o intangível digital e a materialidade da infraestrutura de logística". [2]

Muitas coisas se alteraram de lá para cá.
Na ocasião, a empresa-plataforma americana Amazon, estava acabando de entrar no país, o artigo falava da vinda da Shopee, que naquele momento, já era o aplicativo mais baixado no Brasil e a Shein se organizava para atender esse mesmo mercado. Assim, os players de e-commerce disputando espaço no Brasil cresceu para além da argentina-americana Mercado Livre, Amazon e das brasileiras Magalu, Via (Casas Bahia e Ponto Frio) e Americanas (B2W), para as chinesas AliBaba e Shein e Shopee da Singapura.

A base de logística envolve softwares para ampliar, facilitar e dar agilidade na "relação fidigital" e foram ampliados a instalação de enormes Centros de Distribuição (CD), cross-dockings (sistema de distribuição e despacho das mercadorias) com alguns hubs logísticos e a contratação de mais entregadores na última ponta do sistema.

Abaixo estão um quadro (retirado do artigo) dessas players, na disputa no Brasil em 2000 e também um mapa localizando os CDs instalados no país.
 

Fontes: 
Quadro: Empresas-plataformas digitais de e-commerce de varejo no Brasil em 2020. Elaboração: PESSANHA, 2020.
Mapa: Distribuição espacial da infraestrutura de logística das empresas de varejo e-commerce e Correio no Brasil em 2020. Elaboração: PESSANHA, 2020.

A aceleração desse processo é vertiginosa e nesses últimos 4 anos (de 2020 para 2024) muitos CDs foram instalados e/ou contratados, inclusive dos Correios. Para ficar num exemplo, a Shopee conta hoje (2024) com 11 CDs e 11 Hubs logísticos em MG, mais de 1.800 pontos de coletas de entrega, 20 mil motoristas e 250 pontos regionais de logística. Em 2020, as cinco varejistas do quadro acima somavam 69 Centros de Distribuição espalhados em 12 diferentes estados.

Nesse processo, que precisa ser mais e melhor investigado, alguns municípios se especializaram nessas bases logísticas, por conta das facilidades geradas pela localização estratégica de distribuição para onde há maior consumo. Dois destes municípios valem ser citados: Cajamar em SP e Extrema em MG. 

Além dessas duas cidades, outras próximas estão, também, recebendo enormes galpões de armazenagem e logística que são em boa parte financiados e/construídos por Fundos Imobiliários (FIIs) que faturam alto com aluguéis por capacidade de volume (cubagem) de armazenamento. No município de São Paulo (capital) ou sua região metropolitana, galpões que eram fábricas da Avon (Jardim Marajoara), Ford (São Bernardo) e outras agora são galpões de logística que reflete a potência da plataformização em curso. [3]

Ou seja, estamos falando de uma enorme cadeia de logística, atuando na etapa da circulação da mercadoria, reduzindo o tempo e os custos entre a produção e o consumo, de onde se apropriam do valor, que antes era em parte perdido com a desvalorização que se dava com o maior tempo gasto entre produção e o consumo, além de reduzir o tamanho dos comércios locais e a economia que circulava nas regiões. 

Além disso, se observam processos de reterritorialização com alteração de uso dos espaços que deixam de ser industriais e passam para o serviço de logística com mudanças também nos fluxos de pessoas e de materiais que transformam a urbanização nas metrópoles e nas cidades de médio porte, em especial.


Referências:
[1] Infográfico e algumas informações estão em matéria do Valor em 29-05-2024, p.F4: "Gigantes digitais disputam ampliam atuação e disputam rapidez".

[2] PESSANHA, Roberto Moraes. Disputa no e-commerce de varejo no Brasil: entre o intangível digital e a materialidade da infraestrutura de logística, in: EGLER, T. KRAUS, L. e COSTA, A. V. Marcas da Inovação no Território. Letra Capital. Riso de Janeiro, 2020.

[3] Matéria do Valor, em 29 mai. 2024, P.F4. CEZAR, Genilson: "Retrofit cria centros logísticos em bairros industriais". 

segunda-feira, maio 27, 2024

A enorme captura de dados e a epopeia na compra online de uma simples geladeira

Ao mesmo tempo que em minhas atuais pesquisas eu tento entender como a internet, comércio online (e-commerce), as plataformas digitais e a inteligência artificial transformam a relação entre produção e consumo na nossa sociedade, no campo pessoal, eu estou procurando na internet uma geladeira para comprar.

Assim, eu vou aqui relatar algumas passagens sobre essas mudanças em curso que imagino possam interessar a alguns amigos aqui do blog.

Já foi o tempo em que você escolhia a marca da geladeira, o tamanho dela em volume de litros para então ir para a fase de comparar preços naqueles sites de antes como o BondFaro, Zoom e outros. Nem vou falar do tempo ainda mais antigo em que a busca e a compra eram feitas nas lojas da nossa cidade.
 
Antes das comparações, o comum era você dar uma busca geral no Google para ver as ofertas colocando a palavra “promoção”, a marca e o modelo para ver o que aparecia. Depois buscava o menor preço por loja e custo do frete para então fechar a compra.
 
Hoje já não é mais assim. A captura colossal de dados feita pelo próprio Google e adquirida para sistemas de marketing e anúncios, pelas empresas-plataformas de vendas online, já hiperpersonalizou seu perfil de usuário de internet.
 
Através de suas pegadas nas buscas onlines, movimentos nas redes sociais, acessos, cliques, tempo de permanência nos sites e pelos conteúdos, filmes assistidos, músicas ouvidas, etc. eles sabem e processam os detalhes.

Eu tenho lido e ouvido que o uso intensivo da imensidão de dados que produzimos fazem alguns destes sistemas (big datas ou datacenters que alimentam os algoritmos e a Inteligência Artificial) que permitem que eles hoje conheçam cada um de nós, mais do que nós mesmos.

Assim, num primeiro momento, você imagina que poderá ser agraciado com ofertas de produtos e preços melhores diante de tanto conhecimento que possuem sobre nós, como eles dizem. Mas, a sensação que venho tendo não é essa.

Primeiro que a escolha da marca se tornou muito mais difícil diante das ofertas e da variedade de tipos, recursos ou características técnicas e também de volumes e outros.
 
Antes eram geladeiras pequenas, médias ou grandes, brancas. Agora existem geladeiras de quase todos os volumes: 410 litros, 411 l; 420 l; 430 l. 450; 451 l; 480 l; 488 l. 490 l, etc. Umas são da tecnologia "frost free" (degelo automático) outras não; "inverter" que consomem bem menos energia (kwh/mês); variadas cores: branca, prata, alumínio, inox; inox look; inox black, etc.

Muitos dirão que as coisas melhoraram e que essa variedade enorme tenha relação com desejos e demandas bem específicas que o produtor quer atender. Isso pode ser verdade, mas em parte.
Como a venda de alguns itens de eletrodomésticos hoje já são feitos majoritariamente online e pela internet, os fabricantes, passaram a ofertar volumes específicos (342 l; 347 l; 411 l; 488 l) para que a procura no buscador da internet caia exatamente num dos seus produtos. Ou seja, o online interferindo na produção ou mesmo na propaganda. Quem vai verificar se o volume é de 342 l ou 347 l?
 
A partir dessa busca de informações você passa a ser atacado pelos anúncios dirigidos, o que antes já acontecia. Ficávamos semanas, vendo ofertas ao navegar no FB, Youtube, Instagram, etc. Só que agora isso piorou, se intensificou e sofisticou. Aparece também nos e-mails que você recebe, além das buscas e navegações nas redes socais.

Com os sistemas automáticos e uso de boots mais a IA generativa que leem seu comportamento online e instantaneamente vai gerando novos anúncios mais de forma ainda mais personalizada e específica, você não encontra o mesmo tipo de oferta no site da empresa-plataforma.
 
Dessa forma, quando você não decide pela oferta ao receber esse anúncio, você não tem mais como localizar e isso se torna necessário quando você precisa checar, se aquele modelo tem as mesmas características técnicas, além de volume, cor e marca que seria item básico para sua escolha. Segundo apurei, esses resumos do tipo de oferta e características do produto já passou a ser feito por IA que escolhe a informação e a ser inserida e a ser descartada.
 
Nesse emaranhado, você se perde em termos de capacidade de comparação entre modelo, volume, marca, cor, características e tecnologia, etc. e as ofertas feitas por variadas empresas. Além disso, você precisa ver se tem a voltagem 127/220 v, o custo do frete, tempo de entrega e forma de pagamento.

Tudo isso vai tornando a decisão da escolha e da compra como algo meio paranoico e quase alucinante. Se não fosse o interesse em pesquisar, é muito provável que eu já tivesse batido o martelo para ficar livre do problema.
 
No final, você, como cliente, usuário ou sei lá, a forma como “eles” nos chamam, necessariamente não está mais interessado em fazer uma boa compra no quesito custo-benefício, mas em se livrar do problema.
 
Não duvido que nessa confusão você já esteja levando gato por lebre, tal qual acontecia com aquelas vendas de camelô que vendiam produtos que só funcionavam nas mãos hábeis dos vendedores de rua.
Nem todos os produtos comprados pela internet geram essa confusão na escolha. Geladeiras e TVs talvez sejam os piores casos pela variedade de ofertas e volume de compra.
 
Porém, a sensação que fico é que os algoritmos que já controlam nosso perfil e moldam nossa atenção e dirigem nosso consumo. Uma espécie de “algoritmização da vida” misturando nossas relações sociais com as nossas necessidades de consumo, em meio às notícias, as fotos das festas, etc.

O ato da compra, que antes era uma relação social, se transformou em mais uma decisão individual, fragmentada e de algum sofrimento. A digitalização nos remete ao niilismo (redução ao nada, nadismo, ou a não existência), ao plano da individualização e dos sujeitos, também de quase tudo, tema tratado pelo professor Nolan Gertz no livro "Niilismo e tecnologia". 

Nesses momentos não tem como não lembrar do ludismo e da vontade de quebrar as máquinas ou os computadores, mesmo sabendo que essa não é a solução. O fato é que a sociabilidade contemporânea passou a ter em grande volume e quase a todo o tempo, a mediação da tecnologia. Como nesse diálogo aqui.

Sentimos que aqueles cookies em que os sites “pedem autorização” para copiar nossos dados, alimentam uma poderosa rede de identificação e de venda de publicidade em tempo real.
 
O Google tem como sua maior receita a de publicidade orientada a partir dos nossos dados e assim é a corporação com maior receita de publicidade total do mundo. E disparada que a faz ser uma das gigantes de tecnologia (Big Techs) e está entre as maiores corporações do mundo em valor de mercado (4ª maior do mundo com US$ 2,17 trilhões).
 
Ao cabo, ganham essas grandes empresas de tecnologia (que nada produzem), perdem a loja e a economia das nossas cidades. A compra online que no início até ofertava preços e condições vantajosas, hoje, necessariamente, não mais, apesar do sentimento majoritário dos consumidores que veem a compra online como mais vantajosa na imensa maioria dos casos.

Vou ficar por aqui porque já misturei demais o caso particular com o geral e com a pesquisa, sic. Quanto à geladeira que preciso e estava comprando, informo que comprei, mas após finalizar, escolha e fechar a compra (ufa), verifiquei, logo no dia seguinte, que tinha realizado a compra errada nas características, cor, etc. Assim, eu tive que ligar para o SAC da loja do e-commerce e pedir para suspender, dentro do direito do consumidor.
 
Se tratava de uma venda em marketplace (shopping virtual) da empresa-plataforma que nesse caso fazia a venda para a própria fábrica. Enfim, quase 15 dias depois, mesmo com a garantia da empresa-plataforma que a venda estava suspensa, a fabricante tentou entregar a mercadoria em que eu, já estava orientado a recusar.
 
Até hoje não recebi o reembolso que segue sendo prometido. Sigo recebendo todo tipo de propaganda online em qualquer navegação que realizo na internet anúncio (inclusive duas notificações enquanto escrevia esse texto que era para ser breve) e ainda não realizei a nova compra.

Sabem tudo de mim, será?; há inteligência?; ela é natural ou artificial? Serve a quem e quem a controla? No meio de tudo isso muita exploração e precarização e as gigantes de tecnologia (Big Techs) seguem faturando e se tornaram, hoje, os maiores oligopólios da história da humanidade.
 
Ao final, eu sigo intuindo que a extração de renda e a captura de valor realizadas na venda de publicidade (anúncios orientados ao perfil) e na intermediação realizada pela plataforma digital online (e-commerce) devem ser maiores do que a margem de lucro da companhia que fabricou a mercadoria vendida.


PS.: A mim interessa menos o perrengue com a minha compra, mas entender esse processo que altera nossa forma de viver e se relacionar com aqueles que nos fornecem bens e serviços.