Minneapolis não é aqui. O Haiti também não
Passamos o final da semana passada meio que assombrados e extasiados com as notícias vindas da cidade estadunidense, onde infelizmente um homem negro foi brutalizado até a morte por um policial branco.
Após o crime, milhares de pessoas passaram às ruas em protesto, incendiando (literal e metaforicamente) o já conturbado ambiente político de lá.
Em resposta, o Bozo de lá acenou com o acirramento do clima, vociferando impropérios e ameaças, que se não fossem ditas por um presidente, e por óbvio, portadoras de mensagens políticas de violência, pareceria coisa de uma criança mimada de seis anos.
Lá como cá, os representantes da banca que ocupam as presidências de seus respectivos países agem no sentido de incitar mais ódio, para quem sabe imporem sua agenda totalitária.
É a única saída deles, porque o resultado das políticas econômicas exigidas pelos seus donos (quem segura as coleiras), somadas aos estragos da pandemia Covid 19 serão combustíveis para a explosão social.
Muita gente boa na imprensa, e nos blogs chamados progressistas anda se perguntando por que os negros daqui não reagem como os de lá.
Ora, a pergunta meio que se responde: os de lá agem como os de lá, e os daqui como os daqui.
O processo de discriminação racial estadunidense, construído nas bases da economia escravocrata, embora sugira alguns pontos em comum, trilhou caminhos bem diferentes.
Talvez o evento chave destas diferenças seja o momento pós Secessão (1865), quando as terras, bens e valores dos confederados sulistas (escravocratas) foram entregues aos negros libertos, que passaram a poder votar e serem eleitos.
Este processo incluiu parcelas significativas dos negros de lá, mas ao mesmo tempo fomentou um ódio racial estrondoso, um movimento político calcado no ressentimento da derrota militar e na frustração econômica e de classes.
Para se ter uma ideia clara, basta ilustrar com o assassinato de Lincoln, e a assunção de seu vice, que não era um entusiasta de suas teses de redistribuição de renda, como boa parte da elite política dos EUA.
No início do século XX, com a crise monumental do capitalismo, a inclusão racial sofreu um sério baque, a partir da bem engendrada manipulação política que inferia que a pobreza branca era resultado direto da ascensão dos negros.
Veio a "Restauração", e os negros voltaram para seus "lugares": Pendurados pelos pescoços em árvores, nas cozinhas, nas cadeias, nos cemitérios, sem direito a voto, segregados oficialmente com a Lei Jim Crow.
Tudo isso dá um contorno totalmente distinto ao conflito racial e de classes dos EUA em relação ao Brasil, que nunca experimentou qualquer traço de inclusão dos seus negros libertos, ao mesmo tempo que nunca se deu ao trabalho de formalizar (legalmente) o racismo.
Aqui as coisas eram tidas como sempre foram, e não se falava no assunto.
Éramos portadores da mensagem da "democracia racial", e ainda somos.
Somos um povo misturado, dizem os apologistas da "democracia racial", como se as relações que derivaram em mestiçagem não fossem desde sempre um reflexo das relações de poder entre a Casa Grande e Senzala, ou seja, estupros históricos e étnicos.
Nos EUA atuais, seja em Minneapolis, seja em NYC, LA, Boston, ou Memphis, não há nenhuma chance de abalo ao sistema racial e classista que mantém negros como alvo predileto de policiais e outras forças e coerção.
Infelizmente, desde a grande luta pelos direitos civis em 1962-68, toda a luta étnica do movimento negro estadunidense se resumiu a tentativa de inclusão do negro no sistema econômico de lá, com raras reflexões que fossem além deste patamar.
Quando é justamente este sistema (capitalista) que proporciona as bases de segregação permanente, mesmo que, de tempos em tempos, respondendo a pressão popular (como agora), haja alguma brecha para absorver algumas reivindicações.
Foi o que houve no pós Martin Luther King, para depois de algum tempo, a reação branca ressurgir com políticas de criminalização da pobreza negra, com "war on drugs", "sistema three strikes" (terceira ofensa a lei, independente da gravidade dos dois primeiros crimes, leva a penas severíssimas), instituição de penas mandatórias mínimas (que retiram do juiz o poder de decidir o mínimo penal de acordo com cada caso, como já acontece no Brasil).
Bastou o sistema de direitos civis permitir maior escolaridade e acesso a classe média para que os brancos de lá, ao sinal da primeira crise econômica (fim da década de 70, início de 80) para democratas e republicanos recrudescerem cada conquista.
Essa gangorra racial que explica, em parte, os constantes conflitos de rua nos EUA, e sugere que as elites de lá "permitem" estas manifestações como válvulas para a pressão.
Raramente bairros da elite são atingidos, e nunca houve, para além das punições de policiais, cerimônias e rituais, nenhuma mudança estrutural no motor da desigualdade que atinge muito mais negros que brancos.
Por aqui, a coisa é bem pior.
É bem pouca (ou nenhuma) a visibilidade dos grupos que combatem o racismo, ou melhor, o racismo estrutural.
Só ficam as "tragédias griffes", tipo Marielles e outros casos escolhidos a dedo pela mídia, que nada mais são que instrumentos de "anestesia sentimental" da sociedade.
Assim que acontece um caso destes, a mídia e a elite correm para subtrair a voz das vítimas, controlando a narrativa para evitar interpretações desfavoráveis ao estamento vigente.
Como nunca experimentamos uma luta formal e institucional contra este racismo, já que nossas elites tentam nos convencer (e conseguem) que racismo não existe, sequer alcançamos o nível de mobilização dos negros de lá, e muito menos do Haiti.
Toda desgraça e maldição desta pequena ilha caribenha se deu desde sua audácia em se tornar a primeira nação liberta dos seus colonizadores a ter como primeiros governantes os negros dos movimentos abolicionistas, e não as elites locais.
A presença militar multinacional e constante na ilha é resultado da intensa atividade política daquele povo.
Um castigo histórico!
Nossos generais e soldados que lá estiveram foram parte deste esforço histórico de aniquilação política dos negros haitianos, e deixaram para trás uma história de abusos e violência, que tem a sua face mais terrível os filhos de mães solteiras gerados pela "miscigenação" com nossos "gloriosos combatentes".
Cruel ironia que parte dos haitianos, em busca de melhores condições de vida, tenha escolhido o Brasil como destino.
Outro detalhe pitoresco é que na Guerra de Secessão, o então Imperador do Brasil, D. Pedro II, enviou um navio com provisões aos sulistas rebeldes, para auxiliar na causa escravocrata internacional.
Minneapolis, Cité Soleil, São Gonçalo...
Às vezes a História parece um cachorro correndo atrás do próprio rabo, não é mesmo?
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