segunda-feira, julho 06, 2020

"Os novos feudos pós-capitalistas e suas unidades paramilitares", por Douglas da Mata

O blog republica abaixo, mais um artigo da série Diários da Pandemia, do Douglas Barreto da Mata exposto inicialmente em seu perfil do FB. Douglas há tempos escreve sobre o tema que conhece a fundo. Vale conferir!


 Os novos feudos pós-capitalistas e suas unidades paramilitares

Não é novidade para ninguém, desde que se aproxime de uma análise honesta do modelo de organização de produção capitalista, que a este sistema podem ser associadas uma série de atividades empresariais ilegais paralelas, que se relacionam entre si como causa e efeito.

Independentemente da contextualização histórica dos conceitos jurídicos para CRIMES, o fato é que o sistema capitalista não só sistematizou a produção, mas também organizou e ampliou, de formas globais, as ações marginais aos sistemas legais, que vez por outra eram toleradas, e por outras vezes, coibidas com mais rigor, ou até proibidas.

Não há expansão colonial sem sequestro e escravização dos negros, seguidas das torturas e mortes destas vítimas.

Não há sistema bancário sem extorsão monetária dos mais fracos, que remonta à época da pirataria, que não por acaso deu nome aos chamados paraísos fiscais.

Aquelas pequenas faixas de terras (geralmente ilhas) que serviam aos piratas, todos a serviço das Cortes Europeias para esconderem as pilhagens.

Hoje servem para esconder os recursos pilhados dos Estados e seus orçamentos, e aqueles havidos com todos os tipos de tráficos (armas, gente, drogas, etc).

Todas as formas de lavagem (lavanderias foram os primeiros empreendimentos destinados a mascarar e legalizar ativos ilícitos) têm como objeto final transformar o dinheiro sujo em limpo, ou seja, ser aceito no sistema capitalista, e não o contrário.

Na outra ponta, não há tráfico de armas sem fábricas de armas.

As armas que circulam e matam aos milhões pelo mundo não foram fabricadas em garagens ou pequenas oficinas.

Por derradeiro, não há tráfico de drogas (e toda a violência que dele resulta) sem proibição estatal, e sem a concorrência do Estado que elege a repressão selvagem às pequenas redes de varejo, em lugar de tentar deter os enormes fluxos manipulados por grandes atacadistas, bem como os fluxos de capitais que inundam os sistemas bancários nacionais e internacional.

Conta a lenda, e eu já contei isso por várias vezes em outros textos, que em 2008, foi o narco-dinheiro que ajudou a segurar parte da retomada capitalista, quando foram "lavados", com apoios oficiais multi-estatais, montanhas destes recursos.

Nem vou mencionar que boa parte dos insumos no refino de cocaína, por exemplo, são fabricados legalmente.

Assim como nem precisamos forçar a barra para constatarmos o óbvio: para cada real, dólar, libra, euro recolhidos aos seus respectivos tesouros como tributos, uma enorme quantidade de outros tantos escorre pelo ralo da sonegação.

O crime e o capital são irmãos gêmeos, que de tão idênticos, às vezes um ocupa o lugar do outro, e não é possível para quem os olha fazer qualquer distinção.

Este é o caso do emprego da força (no sistema legal) e da violência (nos sistemas marginais).

Quando as formas de acumulação capitalista se dão em ambientes muito desiguais, quase nunca nos é possível distinguir o uso da força legítima pelo estado do uso de violência ilegítima pelos agentes estatais.

Com o tempo, parece que as forças marginais destes ambientes desiguais e excluídos (as forças para-estatais e/ou paramilitares) tomaram para si a responsabilidade de agirem conforme suas próprias regras, quebrando aquele monopólio de uso de força pelo Estado, que só se apresentava de forma injusta (classista, racista, misógina, etc).

A total fragmentação dos tecidos sociais, tanto pelas formas fragmentadas da alocação dos arranjos produtivos, mas principalmente pela ação repressiva dos estados para conterem possíveis reações da desigualdade, e dos sistemas marginais econômicos (empresas do crime e iniciativas autônomas de empreendedorismo marginal) permitiram às estas forças marginais seu "espaço de legitimação".

As sociedades periféricas, tragicamente, aceitaram e escolheram reproduzir as mesmas correias de dependência no campo das políticas públicas de segurança, tal e qual aquelas que já haviam se instalado no campo econômico e geolítico.

Na verdade, nem se tratou de uma escolha em si, mas uma consequência facilmente previsível.

Como todos os efeitos de todas as outras formas de dominações, a replicação de modelos judiciais-policiais de combate a criminalidade violenta e outras formas de crime, reproduziu a mesma estrutura hierárquica vertical, ou seja, ricos à salvo e impunes e pobres tratados com todos os rigores e excessos da Lei.

Se o modo de produção capitalista se instala na periferia com apetite ultra predatório, deteriorando direitos, precarizando a vida, por óbvio que os sistemas de contenção social vão repercutir aqui com a mesma forma desajustada e desigual.

Agora a coisa parece ter chegado a um nível bem pior.

O iminente pós-capitalismo que se anuncia, com a total hegemonia dos modos de acumulação rentista (juros), que subjugaram e reduziram os arranjos produtivos e de acumulação de valor e mais valor a meros apêndices, vai reduzir a quase zero a capacidade (e/ou a utilidade) dos Estados Nacionais e das instituições representativas (mandatos, eleições, etc) de organizarem as formas sociais de convívio.

Essa pulverização social atende às novas regras de acumulação, que prescindirão do trabalho, entendido como a venda de força produtiva a um detentor de meio de produção, trazendo de roldão todas as outras formas de sociabilidade, incluindo aí, aquelas que conhecemos pelo binômio lei e ordem.

O fenômeno já encontra um laboratório digno de nota no Estado do Rio de Janeiro, e não por mera coincidência, trouxe ao governo estadual e ao central (Brasília) personagens que melhor vocalizaram a agenda destes novos grupos que disputarão o poder e a primazia de regular as nova ordem social: as milícias, e em breve, as narco-milícias.

Pelas telas de cinema, ou pelos anedotários locais, sempre se imagina que tais sistemas se alimentem da ausência do Estado em esferas de assistência.

Não é toda a verdade.

As narco-milícias nunca atenderam a estas demandas assistenciais-humanitárias, ao contrário do que contavam as lendas acerca dos primeiros traficantes das comunidades, que por várias vezes fizeram o papel do Estado.

Naquele tempo, a partir do início da década de 70, quando o comércio de drogas dava seu primeiro passo rumo a globalização, os arranjos locais permitiam que os primeiros "donos das bocas" sustentassem (legitimassem) sua presença com pequenos favores, seus laços com a localidade, e aplicação de castigos aos infratores da rotina da localidade.

A transformação de negócios locais em franquias de uma enorme cadeia global, com autonomia local de gestão mas com adesão transnacional pelo produto comercializado, mudou a conformação das relações, com a substituição frequente dos líderes locais por mão-de-obra cada vez mais jovem e desvinculada das comunidades (muito por causa da repressão policial que extermina esta mão-de-obra), e com a selvagem disputa por territórios, quando a lucratividade do negócio chegou ao seu teto.

Isto é, um jeito tipicamente capitalista: quando o lucro não basta para todos, elimine o concorrente.

Este processo levou a tantos outros, com o aumento da militarização do policiamento, que ao invés de deter a criminalidade, aumentou a violência de sua reação, e que teve como resultado direto o incremento do tráfico de armas.

Hoje, a presença das facções (franquias) do tráfico de varejo no RJ abandonou quaisquer formas de assistencialismo e/ou de laço comunitário, e tais comunidades ficaram só com a violência das armas, que alimentam as disputas por territórios.

Como dissemos lá em cima, não é só a ausência estatal que legitima a violência nas comunidades carentes, mas também a presença do Estado do jeito mais violento.

Foi o Estado que "ensinou" às populações das comunidades que o Estado age de forma violenta e ilegal, seja para reprimir o que chamam de crime, seja para atacar estas comunidades.

Claro que os traficantes (agora narco-traficantes) entenderam a oportunidade da pedagogia estatal da violência.

Com a caminhada do Estado rumo a sua "desimportância" como mediador dos conflitos da sociabilidade, sendo certo que a Justiça nunca funcionou de fato para os mais pobres (salvo raras e honrosas exceções), e com a possível mutação dos arranjos estatais nacionais em pequenos "feudos pós capitalistas", coube (ou caberá) às narco-milícias realizarem a simbiose que há muito tempo se desenha.

Em um mundo onde as formas de vida social foram totalmente desarticuladas, são as células de auto-defesa que tomarão o lugar de forças estatais legais.

O Estado, de maneira hipócrita, sempre rejeitou o debate acerca da loucura que é manter a proibição de produção e venda de drogas, por exemplo, e parece que este debate vai ganhar corpo pelo pior jeito, justamente com a junção de organizações para-policiais e traficantes.

Não se espantem se empresas chamadas do "mundo legal" começarem a tratar com estes interlocutores para futuras associações econômicas que perpassem a mera questão de autorização de atuação nos domínios territoriais, fundindo de vez em joint-ventures os recursos legais com ativos ilegais.

Em SP este processo já começou com o PCC, e há quem diga que dada a diferença entre a organização e escala econômica de SP em relação ao RJ, tudo se encontra em estágio bem mais avançado.

Resta saber como vai ser a integração do RJ e dos seus feudos (mais horizontais e fragmentados) dentro da expansão agressiva do oligopólio paulista.

Aguardemos.

PS.: Atualizado às 07/07/20 às 11:54 para algumas correções no texto. 

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