Os novos feudos pós-capitalistas e suas unidades paramilitares II
Como o tema abordado ontem é muito extenso, e nossa impaciência cognitiva em tempos de redes sociais está muito aguda para o tamanho que o tema exigia, preferi tratar de uma segunda parte em outro texto.
Vimos ontem como as periferias capitalistas estão desmanchando sues arranjos estatais e "desmonopolizando" seus poderes em favor de uma nova ordem feudal global financeira.
Eu sei que o termo parece maluco e paradoxal, e é. Explico:
Todas as formas de monopólio estatal, que antes funcionavam como esteio e mediação do sistema capitalista e das suas estruturas locais e transnacionais de acumulação hoje estão perdendo espaço, à medida que o próprio capitalismo vai sendo substituído por uma nova forma de acumulação de uma nova forma de riqueza, que não mais deriva da mais-valia, mas simplesmente da reprodução de dinheiro fictício, o que os pós-marxistas chamam de anti-valor, e por esta natureza intrínseca se destina a acabar com o capitalismo como sua contradição interna mais poderosa.
Esta nova "desordem" é unificada globalmente apenas por esta ficção (juros) e seus fluxos (mercados de capitais), enquanto que os arranjos produtivos e sociais têm seus laços rompidos, e estas comunidades acabam empurradas para atrás das novas muralhas (condomínios de luxo e/ou limites das favelas).
E o que isso tem a ver com Polícia, Forças Armadas, Narco-milícias, e outras formas paramilitares de emprego da força/violência?
Quem tem um pouco mais de idade (como eu) e gosta de cinema, com certeza pode observar e acompanhar o que vou tentar dizer.
Aqui é preciso repisar como essa máquina de produção de bens culturais influencia todo o mundo ocidental, e muito mais esse quintal estadunidense ao sul do mapa (nós), e esta poderosa indústria funciona para o capitalismo com uma relação de causa e efeito recíproca.
Lá no início, os filmes que tratavam de lei, ordem, violência eram primordialmente os faroestes (brasileirização do Far West), tratavam a imposição da Lei interna das cidades à base do confronto individual do "xerife" (Sheriff, autoridade local das menores unidades, ou condados) e seus delegados (deputys, que aqui viraram, por força da má tradução, sinônimo de "xerife") com os bandidos.
De certa forma, este é o mito fundador dos EUA, o duelo ao fim de tarde, e a forca.
Naquela mistura primitiva da formação do Estado estadunidense em meio a hostilidade colonizatória do oeste, o bem sempre vencia o mal, mesmo que os métodos do "bem" sempre parecessem muito com aqueles empregados pelo "mal".
Essa visão binária de mundo seguiu com a mistificação do Exército dos EUA, que depois de edulcorar sua missão etnocida dos nativos, pode recuperar sua "honra" quando das representações da Guerra de Secessão.
No entanto, ali houve espaço para glorificação dos "rebeldes" do Sul, e podemos, grosso modo, dizer que a bandeira confederada senão é tão popular quanto a Star and Stripes, pelo menos ganhou muito destaque.
Essa demanda atendia também às causas racistas tão populares entre o WASP dos EUA.
Com a sedimentação dos EUA com potência mundial, e claro, com todos os conflitos regionais e globais que enfrentaram para esta consolidação, a mística estadunidense e de suas FFAA passaram aos épicos de guerra.
No plano interno explodiram as produções com a polícia e o FBI como "estrelas" centrais, inaugurando o que seria o popular gênero de ação.
Os elementos básicos (binários, bem contra o mal, hegemonia dos EUA, etc) ainda podiam ser percebidos, mesmo que soterrados em montes e montes de explosões, sangue, mortes e efeitos especiais.
Foi só com os anos 60 e os movimentos de contracultura e de rejeição das ações geopolíticas dos EUA e dos outros países imperialistas, simultaneamente ao surgimento de outros eixos de produção cultural, que este modelo pareceu ameaçado.
Foram os anos dos filmes onde os EUA e suas FFAA começaram a ter seu heroísmo questionado, os filmes de cunho antirracista questionavam a ação policial e os conflitos étnicos internos.
A reação aconteceu juntamente com a ascensão dos ícones do mercado e do chamado neoliberalismo, Reagan e Tatcher.
Parece uma irônica coincidência, e não é, que a ideia de terceirização dos assuntos de Estado, incluindo aí as FFAA e os contratos secundários de prestações de serviços dentro dos inúmeros conflitos, se avolumou ao mesmo tempo que o cinema começou a criar (ou realçar) o mito das Forças Especiais, dos mercenários heroicos e rebeldes, dispostos a fazer o que ninguém, queria fazer, mesmo nas guerras, ou no campo interno.
A criação da figura do anti-herói, encarnados em Bruce Willys (Duro de Matar), Stallone (Rambo), Arnold Schwarzenegger (Exterminador), dentre outros tantos que me falha a memória aqui, não é uma opção estética ingênua, ou do mercado cinematográfico.
É a elaboração sofisticada de um consenso dedicado a aceitar que entes terceiros agem melhor e mais rápido que a Justiça, a Polícia e/ou as FFAA.
Para quem como eu gosta de cinema, e de política e geopolítica sugiro as seguintes tramas:
- American Made (com Tom Cruise);
- Vice (com Christian Bale);
- War Machine (com Brad Pitty) e no campo policial estadunidense, Os Olhos que Condenam.
No campo da literatura eu sugiro: Blackwater, do jornalista Jeremy Scahill, Gomorra, de Roberto Salviano, The New Jim Crow e etc, da advogada militante Michelle Alexander, e aqui no Brasil, Polícia da Cidade do Rio de Janeiro, seus dilemas e paradoxos, de Roberto Kant de Lima.
Estes instrumentos aí em cima possibilitarão que você acompanhe cada passo da escalada dos Estados Nacionais para a total abdicação dos seus monopólios, desde a emissão de moeda (para contraírem dívidas eternas) até no emprego de força policial e/ou militar, resultando em forças armadas aparelhadas por entes privados e forças policiais sequestradas por esquemas legais e paralegais de terceirização.
Por exemplo, desde a primeira guerra do Iraque, de Bush pai, até o segundo conflito, com Bush filho, a Blackwater evoluiu de uma mera empresa de prestação se serviços que alugava espaços (estandes de tiro) para treinamento do FBI e forças policiais locais para a maior empresa de mercenários do planeta, e chegou a ter, em algum momento desde a segunda ocupação no Iraque, mais homens que as forças regulares.
O massacre de Falujah patrocinado por estas forças, ao atacarem a cidade em retaliação a morte de seus empregados é notória lenda de guerra dos EUA.
Oficiais das FFAA narram seu espanto ao serem obrigados a receber ordens de contratados em campo de batalha.
Esse modelo, por óbvio, também repercutiu no campo interno das políticas de segurança pública dos Estados Nacionais, e como sempre, o maior estrago foi nas periferias, e o Brasil, o pior de todos, quando entre os anos 80 e 2000, saltamos ao mesmo tempo de campeão de mortes por armas de fogo a cada cem mil habitantes, e pulamos para a quarta colocação na população de presos (sempre pretos e pobres).
Na esteira cultural tivemos a glorificação das elites policiais (SWAT, Comandos, etc), assim como na "vida real" os EUA saltaram de 82 equipes táticas de intervenção na década de 80 para mais de 800 nos anos 200.
Assim o Brasil, copiando este roteiro trágico de militarização das polícias, esvaziou suas unidades investigativas e dotou cada estado de BOPEs, COREs, e toda sopa mortal de letras de operações especiais.
Aliados a estes pequenos exércitos, outro exército ainda maior, pois as forças privadas de segurança (somente aquelas regularizadas junto aos órgãos de fiscalização, a PF) somam mais gente armada que as polícias.
É este gigantesco caldo de cultura, e de realidade, que se move como uma larva expelida pelo vulcão da implosão do Estado Nacional e do capitalismo que devora todas as formas de sociabilidade cria outras, naturalmente, muito mais letais.
É este o consenso que foi sedimentado, pouco a pouco, sorrateiramente, que banalizou a violência, de um lado, e a justifica como lucrativo negócio e narrativa política de outro.
Não sejamos ingênuos, o pior ainda está por vir.
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