A trilogia trata do tema da segurança pública, relações de pode e sociedade, sob o ponto de vista e dimensões, digamos, que menos usuais. Também vale conferir. Os links para acesso aos textos [1] e [2] estão nas referências ao final deste artigo:
Fechando o tema dos outros dois textos anteriores, vamos a uma análise pregressa dos fenômenos nacionais (e suas referências externas) de apropriação do monopólio estatal do uso da violência armada como dissolução de conflitos e vantagem competitiva no mundo dos negócios.
A ideia de reunião de grupos armados para proteção de ajuntamentos humanos e/ou para disputa local de interesses econômicos é tão velha quanto a descoberta do fogo.
Sabemos que a medida que algumas sociedades se tornaram mais complexas, mais complexos se tornaram os sistemas legais e judiciais, e de certa forma, podemos dizer que a medida que tais civilizações se tornavam mais "pacíficas" (estáveis), menor era o emprego de força e violência pelos aparatos estatais.
Sabemos também que com o advento do capitalismo, como propulsor jamais visto dos modos de produção e acumulação de riqueza, e ao mesmo tempo gerador de desigualdades colossais, tanto no campo geopolítico, tanto como nos conflitos de classes dentro dos países, o emprego desta força violenta se sofisticou.
Esta mudança servia para garantir a hegemonia das sociedades mais ricas sobre as mais pobres, e nas disputas entre regionais e globais entre si (que tiveram como ápice as duas grandes guerras), e no campo interno, estava representada na ação das forças policiais.
Assim podemos dizer que desde antes da unificação dos Estados Nacionais, que serviram como esteio ao avanço capitalista, e durante toda esta trajetória de expansão exponencial de acumulação de riqueza, a Humanidade sempre se reuniu em pequenos grupos armados, e estes grupos eram mais ou menos legitimados de acordo com cada contexto histórico.
Não é demais repetir: quanto mais desigual a sociedade, mais violentos os conflitos, e mais violenta a reação e a repressão a estes!
Vários exemplos:
- Na Idade Média, durante os processos de unificação dos reinos, na fase pré-capitalista, não eram raros os grupos de ladrões que desafiavam a autoridade dos senhores feudais locais, merecendo até uma versão folclórica conhecida como Robin Hood;
- Nas terras da atual Grã-Bretanha também são conhecidos os clãs escoceses, que lutavam contra o reino inglês, também mistificado no cinema com Coração Valente (Mel Gibson);
- A unificação italiana e a desigualdade entre Norte e Sul gerou na parte meridional da bota uma das maiores e mais letais organizações armadas, a Máfia, idilizada nos filmes de Coppola;
- Já no Novo Mundo, as milícias anti-colonialistas estadunidenses foram fundamentais na expulsão dos ingleses, e de certa forma integram o "mito fundador" dos EUA, servindo de argumento descontextualizado da NRA para defender uso de armas por civis;
- Há muitos outros, e quase todos estes pequenos exércitos se mobilizam e se justificam como "autodefesa" a agressão do Estado e/ou como defesa dos mais pobres.
Sabemos que, quase sempre, estes grupos e seus belos ideais passam a agredir, principalmente, estes mais indefesos, substituindo e/ou concorrendo com o Estado que diziam combater no papel de opressores locais.
No Brasil, durante o estabelecimento do Estado brasileiro, desde 1831 até o fim da República Velha, nossas milícias não nasceram de tensões de desigualdade, como resposta de "autodefesa".
Nossos grupos paramilitares funcionaram como forças locais de contenção oficiais, diante da incapacidade do Império, e depois da própria República de garantir a unidade nacional e a repressão aos grupos sociais considerados ameaçadores (principalmente os negros escravos e depois libertos).
Enquanto na maioria dos casos, os grupos armados nascem de baixo para cima, até se voltarem contra suas bases locais, no Brasil, o caminho foi de cima para baixo, como quase tudo neste país.
Estes grupos receberam o nome institucional de Guarda Nacional, e conferiram aos senhores locais e proprietários de terra (a elite) o título militar de coronel.
Mesmo com a chegada do processo de urbanização, refletida no golpe de 1930, e o fim oficial destas facções regionais, o poder e o uso da força permaneceram por longo tempo, e não será espanto se encontrarmos alguns arquétipos destas falanges pelo interior remoto deste país.
Há quem diga que as últimas dinastias dignas de reivindicarem tal poder local são os Sarney, Barbalho, Calheiros, Collor, Magalhães e os Gomes (Ciro e Cid).
No entanto, é inegável que estes arranjos político-para-militares regionais deram o contorno para a estruturação de polícias estaduais, que mesmo com o advento do novo pacto constitucional recente (1988) permaneceram sob o poder dos governos estaduais, e ligadas às FFAA.
Este arranjo não é acidental, pelo contrário.
Quase todo mundo moderno ocidental mantém uma estrutura policial que pode ser definida como "camadas", que vão desde as menores frações das cidades (como os condados nos EUA), passando às forças estaduais (que geralmente atuam em delitos que perpassam os limites territoriais intermunicipais e/ou pela relevância de determinados crimes), chegando às unidades federais e/ou nacionais, que recebem atribuição residual com o mesmo princípio, ou seja, crimes que são interestaduais ou de tamanha relevância que são considerados além das capacidades locais de apuração.
Arrisco dizer que o nosso arranjo policial é a nossa jaboticaba, e bem podre!
Não vou entrar em detalhes sobre a maluquice de se manter duas polícias com comandos diferentes, e com acesso externo aos cargos de comando (oficiais e delegados).
Este tema merece outro texto.
Voltando à vaca fria, podemos afirmar que o modelo policial estadual é herdeiro direto da Guarda Nacional, associada a uma militarização que serve apenas para que os governos estaduais possuam suas "milícias", totalmente voltadas para a garantia dos privilégios das elites locais e contenção dos efeitos da desigualdade.
Este modelo, não raro, se esgarça de tal forma que a força militar regular (FFAA) propriamente dita é chamada às ruas, confirmando a sua natureza.
Um tipo de exceção que só confirma a regra!!!!
Na outra ponta, aparecem as forças privadas, as empresas de segurança.
Já dissemos no outro texto que elas somam hoje no Brasil mais gente que as polícias.
Não se espantem.
No mundo todo, há mais mercenários contratados por empresas de segurança e guerra que forças regulares.
No Brasil essa lógica se amplia perversamente. Temos mais empregados armados de empresas privadas que policiais.
Estes empregados se somam ao esforço público de proteção das elites e seus patrimônios, sempre com a justificativa de que o Estado não é capaz da tarefa!
É uma verdade (ou meia-verdade), na medida que este Estado que promove e/ou se omite frente a geração exponencial de desigualdade capitalista, nunca será capaz de proteger sozinho às elites e seus privilégios.
Sim, para quem desconfia que esta ideia acima é um sofisma, eu confirmo, é.
É um falso dilema que gera movimentos em círculos (cão atrás do rabo), pois não se combate os efeitos da desigualdade e a própria desigualdade com ação seletiva do Estado e de empresas privadas terceirizadas, mas com políticas que visem a diminuição da desigualdade e da ação desigual do Estado!
Sendo assim, não é incorreto dizer que as atuais narco-milícias têm um potencial devastador não pelo aspecto militar em si, ou pelo menos, não só por este aspecto.
As narco-milícias são a manifestação mais dramática deste sofisma letal que apresentamos.
O que as torna tão factíveis é o fato de que elas são apenas uma derivação (ainda ilegal) de outras formas de organização milicianas que já funcionam dentro do próprio Estado (polícias) ou com autorização deste (empresas privadas).
Não é à toa que boa parte dos integrantes originais destas forças locais é ou foi ligada a alguma força estatal policial ou auxiliar (Bombeiros, Guardas Municipais).
Durante toda nossa história, e no mundo todo, houve modelos de ação criminosa que conseguiram se legitimar e se entranhar de tal modo à vida das sociedades, que foram diluídas nelas.
Exemplo?
Nos EUA, embora boa parte do país proíba o jogo, a máfia com a ajuda do Estado, criou "ilhas" de autorização, como Las Vegas e Atlanta.
O nosso Jogo do Bicho é exemplo nacional de incorporação de modalidades ilegais pelas sociedades e pelo Estado.
Desde times de futebol (Bangu de Castor de Andrade), até a indústria do entretenimento (Carnaval e LIESA), até outras atividades menos conhecidas, é correto afirmar que o Jogo do Bicho (agora atualizado pelas máquinas caça-níquel) foi "oficializado e legalizado".
Vez por outra, quando há algum dissenso violento entre os capos do jogo, ou quando a sociedade é acometida de algum surto de hipocrisia mais agudo, voltam à carga contra o Jogo do Bicho e seus patronos.
No Carnaval, tudo volta ao normal, e a Rede Globo e os governos esquecem de onde vem boa parte da grana "das escolas".
Tem até policiamento no local.
Troço louco, não?
Já o tráfico de drogas não conseguiu tanto sucesso, e eu me encorajo a dizer que é uma questão de "classe" e "cor".
Exercido no varejo por jovens favelados, pretos e pobres, com uma estética agressiva a "moralidade vigente" e sem laços culturais ou folclóricos locais (como o Jogo do Bicho fez com samba e futebol), legatários de uma desorganização própria da atividade econômica nestas zonas periféricas, o que leva a muita violência, o tráfico não conseguiu se diluir como fez o Jogo do Bicho.
Enquanto o tráfico foi eleito pela mídia e sociedade como o bicho-papão, o Jogo do Bicho foi idealizado como inofensivo, divertido, e até caricato.
Há uma manifestação cultural incipiente nas falanges do tráfico, refletida no "funk", mas que tem encontrado muita resistência, justamente por suas escolhas estéticas anti-estamento ou sexualmente agressivas.
Justamente o oposto que o samba fez pelo Jogo do Bicho, quando o espetáculo do samba na Sapucaí enaltecia a coesão nacional, os aspectos de brasilidade, "democracia racial", e outras manifestações de nossa hipocrisia.
Outro ponto crucial na análise destes processos de legitimação e deslegitimação são os contextos históricos.
O Jogo do Bicho, por exemplo, soube se associar aos porões do regime militar, e não raro fez o trabalho sujo dos policiais e militares.
Essa conexão garantiu uma boa relação futura, que persiste até hoje.
Mais ou menos como o contexto histórico atual que parece favorável às narco-milícias e suas agendas, que parecem convergir com a agenda política da direita e da extrema-direita.
As narco-milícias seguirão o caminho do Jogo do Bicho?
Pode ser, e há uma certa coesão fraternal entre estes grupos, embora ainda sejam negócios que estão separados.
Uma coisa é certa:
Nesta conjuntura, os capos do Jogo do Bicho têm um peso fundamental, se considerarmos que nenhuma favela, nenhuma facção de traficantes, ou narco-milicianos jamais enfrenou ou sequer admoestou os interesses do Jogo do Bicho.
Façam suas apostas.
Dos coronéis até os novos capi dei tutti capi, siamo tutti buonna genti.
Referências:
[1] Artigo I, publicado em 06 de julho de 2020: "Os novos feudos pós-capitalistas e suas unidades paramilitares", por Douglas da Mata". Disponível em: https://www.robertomoraes.com.br/2020/07/os-novos-feudos-pos-capitalistas-e-suas.html
[2] Artigo II, publicado em 07 de julho de 2020: "Os novos feudos pós-capitalistas e suas unidades paramilitares II", por Douglas da Mata". Disponível em: https://www.robertomoraes.com.br/2020/07/os-novos-feudos-pos-capitalistas-e-suas_7.html
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