Em artigo recente eu comentei que está em curso a commodificação dos dados. [1].
Para muitos isso pareceu um exagero. Uma retórica. Porém, eu disse mais e reafirmo. A commodity dos dados tem proprietários, assim como as demais commodities possuem donos.
Propriedade que interpretada sob o modo de produção capitalista se divide em frações de classe: terra, capital e o trabalho. Os dados de cada um de nós diariamente, em quintilhões, vai sendo apropriado de forma coletiva por terceiros. Eles são os donos. Da mesma forma como existe e é registrada a propriedade da terra, do minério, do óleo, da soja e outras commodities.
Mas o que é commodity? Normalmente as commodities são
produtos de origem da extração mineral e da agropecuária. Caso do petróleo,
minério de ferro, café, açúcar, soja, arroz, trigo e outras.
Commodity é uma palavra inglesa que na origem significava todo tipo de mercadoria. Porém, com o transcurso do capitalismo, o termo passou a ser visto, como a de um produto obtido em quantidade e com características uniformes.
Hoje, tecnicamente, commodities são as mercadorias produzidas em larga escala e que não podem ser diferenciadas de acordo com quem as produziu ou de sua origem, sendo seu preço uniformemente determinado pela oferta e procura internacional.
Porém, sabemos que nem todo o minério de ferro é igual.
Dependendo da origem há uns mais puros, assim como o petróleo, uns mais pesados
e parafinados que outros, conforme o campo e a área de sua extração. Ainda
assim, essas mercadorias não deixam de ser commodities com preços variando em
torno da referência do que é o geral.
No caso dos dados também há especificidades, conforme a origem
de quem a disponibiliza. Pois então, aí reside uma singularidade dos dados
enquanto commodity. O dado é extraído, mas não é vendido. E portanto, nem comprado. Os dados na prática, são fornecidos “voluntariamente” por todos nós que usamos as plataformas
digitais, em especial, as redes sociais, praticamente, metade da população
mundial. No ocidente, esse percentual supera 80% da população.
Cada vez mais sabemos que quem extrai nossos dados como
commodity (assim de forma massificada), também armazena em Big Datas (BD). A seguir processa com uso
da ferramenta dos algoritmos e da chamada Inteligência Artificial. E ganham muito, muito, muito dinheiro com essa
propriedade que confisca das pessoas e instituições.
Os donos dessas commodities conseguiram uma proeza. Ganham com
essa mercadoria muito mais do que ganhou até aqui os magnatas do petróleo, os
oligopólios do setor siderúrgico, das montadoras de automóveis ou qualquer
outro da história considerada como de muito sucesso no capitalismo global.
Além de tudo, se já não fosse suficiente, a commodity
dos dados confere um poder ainda maior aos seus proprietários, do que aos donos das demais
mercadorias que são transportadas por navios gigantes entre os maiores portos
dos mundo.
Commodity digital, mas que exige enorme infraestrutura material
As commodities são consideradas como uma informação digital e
como tal seria um bem intangível. Porém, essa informação (dados) para ser extraída depende
que alguém a ofereça (nós), mas necessita de uma potente infraestrutura de
comunicação, como mais de 2 milhões de cabos ópticos que fazem a ligação entre
bases de milhões de equipamentos.
Hoje, chamam de nuvem (cloud) [2], toda essa infraestrutura que nunca esteve no ar (éter) com memória física para guardar essas informações (dados) que são coletados na ordem de 2,5 quintilhões gerados diariamente, entre os emails, mensagens do whatsapp, twittes, horas de uso de streaming (NetFlix e outros), pesquisas no Google, etc.
Nem os cabos e nem essas máquinas de
armazenagem de dados estão no ar, mas passaram a ser chamados de nuvem [2], o que ajuda na ideia de que seria algo natural, embora as nuvens sejam reflexos do clima e vinculadas também a tempestades e tragédias inesperadas como a digital, que nos ameaça.
Portanto, além de commodity, essa propriedade extraída das
pessoas, considerada de uma forma geral como imaterial e digital, exige uma
colossal infraestrutura de logística para ser transportada e armazenada, como commodities digitais, em não menos gigantes, armazéns chamados de big datas,
sob a guarda de seus novos donos.
Esses proprietários, assim como o dono de uma tonelada de
minério de ferro comprado do dono de alguma mina, em seguida amplia o valor
dessa mercadoria com processamentos e beneficiamentos que agregam valor à
mercadoria, os dados das pessoas, empresas e instituições e nações.
No caso dos dados, esses beneficiamentos incluem a identificação
e apuração de quem são as personas, os sujeitos que os geraram. Suas
características, seus movimentos geolocalizados pelo mundo, seus interesses,
suas idiossincrasias, seus comportamentos individuais e/ou, em interação social
com diferentes grupos, suas ideologias, fé, capacidade de liderança, etc.
Isso é feito em proporção cada vez maior com uso dos chamados
algoritmos e da Inteligência Artificial que é assim chamada porque é
inteligência de máquina, computadores. Quanto maior a quantidade de dados, mais
rápido e exponencial é o aprendizado das máquinas (Machine Learning).
O processo da valorização da commodity dos dados que não desaparece quando consumido
Quando saem dos sujeitos, que são seus donos originais, os dados entram num processo de valorização. Os dados após processados ganham muito mais valor. Assim
acontece também com a commodity petróleo. Sem ser processado o petróleo não tem
nenhuma utilidade. Porém, depois de beneficiado se transforma em gasolina,
diesel, plásticos e mais de 3 mil outros produtos.
Os dados como commodities, após processados em bateladas, mas
com a busca dos sujeitos que os geraram, ganham mais valor e são utilizados em
dois principais campos ou atividades: econômico-comercial e o político-disputa de poder.
As Big Techs (grandes corporações do setor de tecnologia), o Facebook e o Google, em especial, sabem o valor destes dados já tratados, “beneficiados” e prontos para usos vários e cada vez mais intensos. E com a vantagem, os dados não desaparecem quando são consumidos.
Assim, eles geram valor todo o tempo, sendo uma outra vantagem em relação às demais commodities. Assim, a commodity dos dados geram bilhões de dólares que começa com a propaganda
direcionada. O que é isso? É dirigir a você informações sobre o que você deixou a internet saber que você precisa ou aprecia.
A empresa-plataforma que extraiu os seus dados, agora lhe conhece porque são os novos proprietários dessa commodity. Essa commodity foi extraída de você, no momento quem que fazia uso das plataformas digitais (redes sociais e outras) - que você imagina (ou imaginava) gratuito. Você não sabia que tinha se transformado em produto, só que com o nome de usuário. Assim, já na condição de produto, você permite que “voluntariamente” esses dados sejam extraídos, para serem despois processados e vendidos para quem produz algo que você pode vir a necessitar pelos
rastros que deixou na internet.
Esse mecanismo vem aumentando vertiginosamente os lucros
destas empresas-plataformas que não criam valor, não criam riquezas. Elas apenas
extraem valor que os seus dados oferecem pela lei do mercado e - até aqui - sem regulação. Essas empresas-plataformas ganham por esta intermediação digital que é vinculada à infraestrutura
material e logística para a entrega do que foi adquirido.
Assim, a plataforma de intermediação não fica apenas com a
comissão deste negócio, mas também com a renda que ficava antes com o comerciante
local. Além disso, também força a produção (a indústria) a produzir por mais
baixo custo, para não perder competitividade, na medida em que os mercados
estão todos ligados, o que tornam os preços e os custos de produção de todos mais conhecidos. Assim o produtor de
preços mais elevados não se sustenta e parte para redução de custos sobre o trabalho.
O resultado disso é a já conhecida precarização na entrega e
na produção. É por isso que o mercado exige as “reformas trabalhistas” para desregular
o trabalho, que como mercadoria passa a ser negociado em condições piores, na
medida que sobra mão de obra, levando à redução dos salários, cortes de
direitos sociais, trabalho por demanda (GIG Econony), numa espécie de
neoescravidão.
A tecnologia como instrumento da commodificação dos dados se torna o mais importante fator de produção na economia contemporânea
A extração dos dados (commodity) é a base deste processo. Essa
commodity tem cada vez maior valor, porque cada vez se deseja mais esses dados
e os seus resultados. É uma lógica de mercado. A maior busca pela mercadoria aumenta
o seu valor. E por ser fundamental para também garantir mais valor sobre todas
os outros setores econômicos (frações do capital), mesmo aqueles que não são
commoditificados, o seu valor potencialmente cresce ainda mais.
É no percurso de valorização desta commodity que a tecnologia que extrai, transporta, armazena e processa esses dados, deixa de ser um simples fator de produção e passa a ser, no capitalismo contemporâneo, o mais importante fator na economia, porque atua não apenas na produção com a automação (e a robótica), mas também na distribuição para o consumo e, de forma especial, na etapa de circulação das mercadoria que passa por uma “quase revolução”. E como plataforma de intermediação age sobre todos os demais setores da sociedade.
Não é por outra razão que neste período de um semestre de
pandemia, as empresas de tecnologia foram as que mais cresceram em receitas,
lucros e, de forma especial, em valor de mercado, segundo a publicação Top 100
do Financial Times. [3] Assim, as empresas-plataformas ganham mais e cada vez mais.
A Apple sozinha chegou a US$ 2 trilhões de valor de mercado, uma vez e meia o
PIB do Brasil, a oitava economia do mundo. [4]
A dimensão tecnopolítica da utilização dos dados como mercadoria (commodity)
A breve descrição acima é uma parte do resultado da
commoditificação dos dados na dimensão econômica que favorece ao violento esquema
do e-commerce, em especial do varejo. Em breve publicarei um texto sobre a
disputa do e-commerce do varejo no Brasil.
Porém, para fechar, é no campo político e da disputa de
poder que o desdobramento do uso dos dados é ainda mais preocupante. Ao conhecer
cada um em detalhes, a manipulação deixa de ser risco e se transforma em fato.
Cerca de 70% dos brasileiros, 140 milhões, utilizam redes sociais e a aplicativos
de mensagens, de forma mais expressiva no Brasil, o whatsapp.
O resultado de tudo isso tem sido a guetificação, memificação e a perda da capacidade de interlocução da política, como forma de mediar os diferentes interesses na sociedade. Na prática, o meio que é a plataforma digital, por onde a informação trafega, se tornou um instrumento inverso à intermediação política.
Tenho dificuldades de identificar que a ocupação dos espaços nas redes socais com a disputa dos tamanhos das bolhas possam superar a lógica deste mecanismo que é centralizado pelo próprio poder econômico que também comanda o poder judiciário. Não é por outra razão que a regulação das plataformas digitais - até o momento - não tem passado de intenções.
Os Estados se mostram impotentes para controlar esse processo, seja em termos de uma obrigação de divisão das empresas e oligopólios, seja em termos de tributação, ou controle da sociedade no direito à privacidade que deveria proibir essa commoditificação dos nossos dados, tanto para uso comercial e/ou político. Os nossos dados podem e devem estar à disposição daquilo que seja bem comum, do interesse coletivo e de toda sociedade não de grupos e empresas privadas.
Ainda assim, penso que é preciso explicar à sociedade o fenômeno que está diante de nós. O Estado que sempre serviu ao capitalismo, mas evitava alguns excessos está sendo abolido. Nesta fase, o capitalismo deixou de usar o mercado. O mercado e os oligopólios assumiram de forma quase total o controle da sociedade. Uma espécie de autocontrole do hipercapitalismo do presente. Não sei se isso interessa aos capitalistas, porque uma sociedade sem Estado está muito mais próxima de um outro regime pós-capitalista.
Por tudo isso, é preciso lutar contra o risco da barbárie. Conhecer mais a fundo esse fenômeno é o primeiro passo e exige muitas cabeças e braços. Mesmo que com limitações, é oportuno insistir em esforços contra hegemônicos que tentam usar e ocupar as próprias redes e plataformas digitais para exigir o que não se consegue na sociedade.
É necessário ainda lutar com toda a força para responsabilizar os donos das plataformas digitais gigantes (FB, Google, Amazon, Apple, Microosoft) e exigir o controle e a privacidade dos dados pela sociedade. Nossos dados não podem ser uma simples mercadoria, uma commodity. Eles são nossos e estão sendo confiscados.
Só a pressão da sociedade modifica esse processo. Só a Política pode mudar (ou não) o que está em curso com o gigantismo e a dominação que o setor tecnologia exerce através do processo de plataformização.
Referências e/ou notas:
[1] PESSANHA, Roberto Moraes. Commoditificação de dados, concentração econômica e controle político como elementos da autofagia do capitalismo de plataforma. Revista ComCiência do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp e SBPC. Disponível em: http://www.comciencia.br/commoditificacao-de-dados-concentracao-economica-e-controle-politico-como-elementos-da-autofagia-do-capitalismo-de-plataforma/
[3] Financial Times. FT Series. 19 junho de 2020. P.1-11. Coronavirus economic impact Prospering in the pandemic: the top 100 companies. https://www.ft.com/content/844ed28c-8074-4856-bde0-20f3bf4cd8f0
2 comentários:
Hehehe.
A transformação dos dados em commodity data de 2008/2009, ou quem sabe, bem antes, e justamente este processo permitiu, e também foi transformando, ao mesmo tempo, esta instância da acumulação rentista.
Nosso desconhecimento só tornou tudo mais fácil.
Se já foi impossível alterar as estruturas de concentração capitalista, é muita ingenuidade imaginar que vamos alterar o pós capitalismo que já se instalou.
É deprimente.
Mas perdemos feio e agora só nos resta contemplar o fim do gênero humano como nos acostumamos a (auto) considerar.
Bom era o tempo que achávamos que existia divisão entre inteligência e IA.
Não haverá inteligência que não seja gerada pelos algoritmos.
Nós seremos meros replicantes(Blade Runner).
Ainda bem que nos falta pouco tempo.
Hahhaha
De pensar que, para saber quem consultou meu CPF no Serasa eu tenho que pagar. O banco pagar pra ter acesso ao meu histórico tudo bem, mas eu pagar pra ter acesso a informações sobre mim mesmo, aí é complicado.
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