Há várias razões para se compreender a decisão regulatória tardia do governo chinês sobre a megacorporação chinesa do grupo Alibaba desde outubro, quando foi suspenso a autorização para o lançamento de ações (IPO) que seria o maior da história do mundo, estimado em quase US$ 40 bilhões. [1]
A partir desta decisão, o Ocidente de forma geral, passou a acusar
Xi-Jiping de arbitrariedade econômica do partido único chinês, que inclusive já
ganhou o apelido de Xi-nomics. Porém, o fato é que a Comissão de Regulação de
bancos e Seguros da China e mesmo o Banco Central perceberam os imensos riscos
de deixar que a dominação tecnológica avançasse para a hegemonia financeira controlada
até aqui pelos bancos estatais chineses.
Controles e regulações similares sobre as corporações tecnológicas
têm sido acenadas pela UE e pelos EUA, mas ainda se encontram circunscritos aos
debates legislativos e judiciários, sem decisões finais que acabam envoltas em
pressões e lobbies poderosos.
No meu livro sobre “A
´indústria´ dos fundos financeiros: potência, estratégias e mobilidade no
capitalismo contemporâneo” eu abordo de passagem (p.166), um relatório do
FSB (Financial Stability Board, órgão de finanças do G-20), em 2018, cujo
título é "FinTech and market
structure in financial services: Market developments and
potencial financial stability implications" que trata dos riscos
inerentes à capacidade de atuação das Big Techs sobre o setor financeiro a
nível global. [2] [3]
Outros relatórios posteriores foram divulgados pelo FSB,
ampliando as preocupações, num contexto, que já considerava a ampliação do
uso de tecnologias digitais e plataformas informacionais (Inteligência Artificial,
Big Datas, algoritmos, robôs de mineração, etc.) no sistema financeiro, que
cresciam com as fintechs, à margem do chamado sistema financeiro existente
(privado e/ou estatal). A FSB insistia para o G-20 que esses riscos seriam razões
urgentes de intervenções contra a explosão do sistema. Assim, se percebe que é
nessa linha que a China resolveu agir para proteger seu sistema econômico,
contra esse monopólio com poder de ação sobre todos os demais setores
econômicos (frações do capital).
O capitalismo de estado chinês permitiu a liberdade de ação e
de competição de mercado entre corporações dentro de seu planejamento (ou
planificação, como queiram chamar). No caso das corporações de tecnologia (suas
Big Techs) esse avanço nos últimos anos (em especial última década) foi
colossal e, de certa forma, até superior ao que se vê na dominação das cinco Big
Techs americanas com ação sobre todo o Ocidente e parte do Oriente.
Neste percurso, no final de 2019, as holdings chinesas Alibaba e a Tencent alcançaram um valor de mercado superior a US$ 700 bilhões cada uma delas que atuam em áreas distintas e complementares, desde o comércio de varejo e às redes sociais, jogos, etc. porém, ambas com atuação crescentes e ampliadas nos serviços financeiros e meios de pagamento.
As empresas AliPay da Alibaba e o We Chat Pay da Tencent oferecem
empréstimos, corretagens, vendem seguros de todos os tipos e articulam fluxos
financeiros os mais variados possíveis, a partir do uso dos meios de pagamentos
que desenvolveram e que hoje atende a mais de 700 milhões de chineses. Estes
mecanismos de pagamentos geram fluxos financeiros que superam ao usos de
cartões de crédito no ocidente. Cartões que na China não chegaram a ser usados
de forma maciça, sendo logo superados por estes meios de pagamento digitais móveis
usados até para gorjetas e esmolas nas ruas.
Assim, com a enorme capilaridade que as plataformas destas
corporações de tecnologia chinesas conquistaram junto aos seus usuários, a
partir da captura dos dados e da tecnologia dos algoritmos (IA), que se
alimentam das informações sobre os interesses e as rendas dos clientes, foi se
efetuando essa potente aliança entre a dominação tecnológica e as centenas de mecanismos
financeiros espalhados globalmente.
Tudo isso, foi potencializando os riscos, que tanto o FSB (G-20)
quanto as autoridades chinesas foram percebendo, na medida em que o setor da
finanças perpassa todos os demais setores da economia, ao exercer uma hegemonia
que cada vez é mais evidente no capitalismo contemporâneo.
É preciso compreender claramente que não há como analisar a
dominação tecnológica das plataformas digitais (plataformismo), sem observar as
relações e o processo que reforça a hegemonia financeira na dinâmica
contemporânea. Essa articulação une a reestruturação produtiva a um modo de
produção capitalista de base monopolista, que amplia a utilização do sistema
informacional e financeiro transfronteiriço e desregulado.
É disto que trata a disputa que se vê na geopolítica
cibernética atual. A disputa pelo poder tecnológico que se desenvolve em várias
dimensões. O uso exponencial e quase total das plataformas digitais traz
repercussões para além da dimensão econômica e passa pela política e
geopolítica. A dimensão economia é onde se tem a extração de valor do trabalho
que sofre enorme precarização e à captura da riqueza pelo setor dominante da
tecnologia e seus controladores. Assim, digitalização e financeirização andam
juntas.
Neste processo se vive hoje também o que chamo de “startupização”
com inúmeras empresas-plataformas criadas em incubadoras e universidades. Essas
startups são depois adquiridas e/ou controladas por fundos financeiros criados
exclusivamente para ficar com as ideias-negócios que já passaram pelo teste e
crivo do mercado. Assim, os donos dos dinheiros (investidores) reduzem os
riscos de empreender e ainda capturam a mais valia do trabalho dos jovens mais
qualificados e recém formados.
Só no Brasil em uma década (2011-2020) o número de startups
cresceu vinte vezes. No Brasil da depressão (entre 2018 a 2020), os fundos financeiros
captaram e investiram cerca de US$ 7,5 bilhões nas startups em diferentes
classes de aplicação e controle acionário. Só no desastroso 2020, ano da
pandemia, foram fechados 450 contratos de investimentos em startups com aporte
de US$ 3,1 bilhões (R$ 16 bilhões), cerca de metade destes recursos alocados,
exatamente, para criação e desenvolvimento das fintechs (startups financeiras).
[4]
Porém, a digitalização dos negócios e a plataformização vai muito
além da dimensão econômica. Hoje já é conhecida a enorme manipulação que as
plataformas digitais exercem na política, através do uso expansivo das redes
socais, que hoje já é acessível a quase metade da população do planeta, mas por
quase todas as pessoas dos países considerados desenvolvidos, embora com ainda
enorme desigualdades.
Neste cenário é natural que os Estados-nações busquem se
proteger, com todas as limitações e interesses que estão embutidos nos Estados,
sejam os controlados diretamente pelos mercados, seja pelas experiências de
modelos híbridos do capitalismo de Estado ou socialismo de mercado.
Referências:
[1] CAMPOS, José Roberto. Negócios da China. Artigo Valor, 04 jan. 2020. Disponível em: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/negocios-da-china.ghtml
[2] PESSANHA, Roberto M. A ‘indústria’ dos fundos financeiros: potência, estratégias e mobilidade
no capitalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.
[3] Relatório publicado em 14 fev. 2018 pela FSB. FinTech and market structure in financial
services: Market developments and potential financial stability implications
[FinTech e es- trutura de mercado em serviços financeiros: evolução do mercado
e possíveis implicações para a estabilidade financeira]. Disponível em:
http://www.fsb.org/wp-content/uploads/ P140219.pdf
[4] MATSUURA, Sérgio. Apetite para o risco: após captação recorde de US$ 3,1 bi em 2020, start-ups segue a mira dos investidores. Matéria em O Globo 4 jan. 2021, p. 21.
2 comentários:
Vc não acha que a China cancelou o IPO,também, para não ficar exposto à FCPA ( jurisdição criminal dos US ), já que Honk-Kong pode ter influência judicial do DoJ-US ??
Ou , pelo menos, pode haver uma sombra na legislação de Hong-Kong, que Xi-Jimping quer evitar ??
Vide o caso Petrobrás...
Assim, ao mesmo tempo, Xi trava a expansão financeira associada às plataformas digitais, e evita a jurisprudência do DoJ-US / FCPA , via Honk-Kong
Falei sobre isso na entrevista de dezembro na TV 247 que tratou do tema:
https://youtu.be/O1_pGig8P3M
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