Por conta de minhas investigações mais recentes, eu tenho comentado com frequência sobre o avanço da tecnologia sobre as nossas vidas. Refletindo um pouco mais, penso que talvez, essa leitura deixe transparecer que esse frisson de técnicas informacionais é que tenham feito surgir a hegemonia financeira no capitalismo contemporâneo, mas não é assim. Tentarei explicar.
Antes, lembro que não se deve esquecer que sempre há um razoável tempo entre o
surgimento da tecnologia e sua maturação para uso ampliado em vários setores. Entre
exposição da nova tecnologia e o seu uso expandido, o rentismo também foi se
ampliando de várias formas.
Assim como “trepadeiras” (plantas parasitas) que têm no caule
da árvore a sua fonte de sobrevivência. Por equivalência, o rentismo é também derivado
de algo que o sustenta em sua essência. As rendas derivadas da economia real:
juros, aluguel, dividendos, comissões, marcas, etc.
Há séculos há bancos, mercados de capitais e a ideia da partição
e democratização da propriedade com a figura da sociedade anônima (SA). Há um
século os fundos financeiros também já tinham surgidos, como forma similar à
ideia da poupança e como instrumento individual de atualização monetária e
juros para acumulação que já tinham a função de servir como meio coletivo, para
produzir a expansão da riqueza, acumulação e investimentos. Se houver alguma
dúvida sobre isso é só relembrar o período do entorno da crise de 29. De crise
em crise, entre sobreprodução e sobreacumulação se tem muito a aprender.
Portanto, é um equívoco não apenas falar, mas também deixar
transparecer qualquer ideia de que a expansão da tecnologia é que seja a gênese
da financeirização. E é bom que se diga a sua forma de atuação não mudou muito neste
tempo todo. O circuito do valor desde a base da pirâmide, a etapa da circulação
e vendas das mercadorias até o andar das altas finanças continua o mesmo, como
nos ensinou Giovanni Arrighi.
Assim, as novas tecnologias e suas formas organizacionais
(TIC) aceleraram o tempo da produção e das trocas até o consumo, cada vez mais
intermediado pelas infraestruturas de comunicação das plataformas digitais.
Junto estamos vendo a ampliação do setor de serviços, as terceirizações, a
precarização retomando a leitura da divisão do trabalho junto da reestruturação
produtiva mundial.
TIC e plataformas
digitais como meio de produção e de comunicação
As plataformas digitais essencialmente como meio de produção
(Appficação) e meio de comunicação (redes sociais), surgiram junto da
desregulação e flexibilização e como sucessão ao Toyotismo. A internet móvel
dos celulares expandiram e misturaram a produção e a comunicação instantânea, roubando
os tempos mortos numa cronofagia ainda pouco percebida.
Os mercados globalizados deixaram de ser retórica, num mundo
em que os produtos saem e chegam em qualquer lugar, desde que se garanta a
fluidez do dinheiro lubrificado no trânsito pelas redes informacionais e os novos
meios de pagamento.
Assim, chegamos à concentração de empresas com fusões e aquisições em processo de oligopolização e conformação de um circuito financeiro global. Desta forma, as Big Techs (EUA e China) se tornaram o maior oligopólio da história da humanidade com tentáculos sobre todos os demais setores da economia em diferentes espaços e nações.
Essa compressão do espaço e do tempo vem servindo de forma extraordinária
à ascensão do curto prazo, como objeto do desejo da acumulação ampliada de
capitais. O andar de cima dos donos dos dinheiros passou a exercer maior controle
sobre a sociedade e sobre a política.
Nesta toada vivemos no presente a dominação tecnológica que
amplia a hegemonia financeira que define o capitalismo contemporâneo. Em seu
percurso, o capitalismo que já foi hegemonicamente comercial e depois
industrial, tem hoje o predomínio financeiro, capturando cada vez mais valor,
em todas as frações do capital com suporte da tecnologia da informação e da
comunicação (TIC).
Aquilo que antes já existia se ampliou. O avanço da tecnologia,
muito para além da maquinaria inicial e mesmo da automação, com a
intensificação da TIC, foi permitindo, de forma paulatina e crescente, a
constituição de formas e condições para subtrair mais valor do trabalho, da sociedade
e do Estado.
Subtração do que eram seus atributos indispensáveis: o
monopólio da emissão de moedas e a regulação sobre todos os setores. Hoje, o
mercado define a autorregulação e o financiamento como norma das atividades em
boa parte do mundo, em especial, no lado ocidental.
Não por outro motivo, os volume dos fundos de investimentos,
imbricados às outras formas de aplicação no mercado de capitais e enlaçados ao
circuito financeiro global, são hoje quase três vezes maior ao PIB global. Não
por outros motivos, a bolsa de valores no Brasil chegou a 3 milhões de investidores
comprando e vendo ações e cotas nos fundos financeiros.
Aprofundamento da
digitalização das finanças, a falsa utopia da moeda digital e nova rodada do
neoliberalismo
O amplo mercado de derivativos e os mercados futuros entre
outros vão tecendo novos instrumentos com uso de tecnologias. Assim, surgem as
moedas digitais, blockchain, tokenização, etc. No meio deste processo, para
alguns utópicos e para outros distópicos, há quem imagine que a técnica consiga,
algum dia, separar a economia da política. Ledo engano.
Assim, as finanças digitalizadas ampliaram a potência e as
estratégias dos donos dos dinheiros, no processo de recolhimento de excedentes
das diferentes frações do capital e em todos os territórios a nível global.
Desconfio que nessa captura de excedentes – numa espécie de vampirismo
digital - caminhamos para o esgarçamento do sistema. Difícil crer em renovação
de um “novo” New Deal (desculpe pela repetição), e novo Welfare-state em que se
retoma as ideias keynesianas que deram certo há um século, no pós-29 e outros
momentos pontuais.
As transformações neste momento parecem mais estruturais.
Talvez até de padrões (in) civilizatórios. Wallerstein criador da ideia de
sistema-mundo junto com Arrighi já citado falaram em caos sistêmico que
desorganiza aquilo que parecia ajustado ao sistema do pós-guerra e do
estado-de-bem-estar. Porém, o império se sente ameaçado e parece querer
reafirmar sua hegemonia, em meio à desorganização que dá ares de mudar a
hegemonia
O mundo vem se transformando. Neste momento, o andar de cima
não cogita de um mundo do "estado de bem-estar-social". Talvez um “estar”
de renda mínima espalhada para os sobrantes, para assim, tentar segurar a
"patuleia" que fica fora da roda da vida.
O andar de cima - dos donos dos dinheiros - se tornou os donos da maioria dos ativos, como gostam de se referir a tudo que lhes dê retorno rápido, num mundo onde as pessoas, contabilmente, se transformaram em passivos e prejuízos, quando na realidade é quem ainda produz os excedentes, embora tenha suas rendas cada vez mais expropriados.
Vivemos uma nona rodada do neoliberalismo em que os grandes fundos
financeiros a nível global (reunidos em Davos) falam no tal "Great Reset"
e outras asneiras. Assim, customizam o discurso financeiro da sustentabilidade,
usando o acrônimo ESG (Environmental, Social and Corporate Governance: governança
social e ambiental), que na prática, nada mais é do que a retomada daquela
ideia dos stakeholders, em que os investidores teriam preocupações com
governança social e ambiental, quando na verdade se vê a ampliação da
dominação.
Observando os movimentos contemporâneos do capital com o
potente aporte da tecnologia, se identifica que a nova rodada - ainda mais
radical do neoliberalismo - caminha para um ciclo de acumulação ainda mais
perverso. Há um monstro a ser contido, que a despeito de tudo ganhou corpos e
mentes nos últimos anos, como tratam os franceses, Dardot & Laval no livro “A
nova razão do mundo”.
As reações à Super Liga do futebol, organizada pelo banco americano
JP Morgan, reunindo os grandes clubes e potentes fundos financeiros globais, parecem
mostrar, mesmo que apenas simbolicamente, que este mundo da "utopia
tecnocrática e financeira" para poucos, em detrimento da maioria tem
limites. A dominação tecnológica e hegemonia financeira precisam também ter
limites.
Para fechar, sabemos que as questões aqui tratadas são estruturais
e se situam no campo da economia política - para além das conjunturais -, que
se somam à crise dos modelo de representação política de quase dois séculos no
ocidente.
Foi neste percurso que chegamos a um estado capturado e sem capacidade
de regular e financiar quase nada e a cada dia entrega mais porções ao mercado.
Simultaneamente o mercado amplia o controle sobre a sociedade, a política e a
economia, se portando ainda mais distante dos interesses da maioria.
Sim, mesmo percebendo que as questões centrais que decorrem
destas transformações oriundas da relação entre finanças e tecnologia seriam mais
de ordem estrutural e civilizatória, não há como enfrentá-las sem as
intervenções dos estado-nações, para dentro e para fora - interna e
externamente. Assim, talvez, seja possível compreender que ações passariam pela
retomada do Estado, com a finalidade de atender a maioria da sociedade. Porém, não
faria nenhum sentido fazê-lo, sem amplas e profundas reformas no sistema e,
nesse linha não faz nenhum sentido querer apartar a economia da política.
O assunto merece ser aprofundado.
ARRIGHI, G. O longo Século XX.
São Paulo: Contraponto/Unesp, 1996.
ARRIGHI, G. A ilusão do
desenvolvimento. Petrópolis, Editora Vozes, 1997.
CHESNAIS, F. O capital portador de juros: acumulação,
internacionalização, efeitos econômicos e políticos. In: CHESNAIS, F.
(org.). A finança mundializada: raízes
sociais e políticas, configuração, consequências. São Paulo: Boitempo, 2005,
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DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo - Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: BoiTempo, 2017.
DOWBOR,
L. O capitalismo se desloca: novas
arquiteturas sociais. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2020.
HARVEY,
D. Condição pós-moderna. São Paulo:
BoiTempo, 2005.
HARVEY,
D. A loucura da razão econômica. São
Paulo: BoiTempo, 2018.
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