Abaixo republico o artigo do Marcelo Viana Estevão de Moraes que saiu originalmente aqui no site Nexo Política Pública.
O retrocesso da
grande estratégia geopolítica brasileira
Marcelo Viana Estevão de Moraes
A grande estratégia brasileira em termos geopolíticos abrange
projetar-se sobre seu entorno em círculos concêntricos de influência. O
primeiro círculo e o mais importante é a região platina, zona de maior
densidade econômica e populacional. O segundo círculo incorpora o resto da
América do Sul, com destaque para o arco amazônico; e o Atlântico Sul, no qual transita mais de 95% do comércio externo do
país. O terceiro círculo agrega toda a América Latina e o Caribe, bem como a
Antártica e a costa ocidental da África. Os três círculos conformam o grande
entorno geoestratégico do Brasil, onde sua presença ativa é vital para seu
desenvolvimento e sua segurança.
Na sua afirmação como ator geopolítico global nos primórdios deste
século, entre outras iniciativas, o Brasil liderou a criação da Unasul (União das Nações Sul-Americanas). A Unasul foi uma
organização internacional integrada pelos 12 estados da América do Sul, criada
com o objetivo de projetar o poder da região no redesenho da ordem global e articular
as ações dos diversos países nos vários campos das políticas públicas,
funcionando como instrumento de governança do espaço regional bioceânico, em um
contexto de mudança do pólo político e econômico mundial do Atlântico Norte
para o Pacífico Ocidental.
A destruição da Unasul significou um retrocesso para o Brasil e uma
derrota de sua grande estratégia, que ocorreu juntamente com a desarticulação
da política externa brasileira, de global player e de global trader, mediante a
desorganização do Itamaraty, que sempre funcionou como referência institucional
para a profissionalização da administração civil.
A nova ordem geopolítica mundial impõe ao Brasil o desafio de atualizar
e implementar uma grande estratégia que conjugue o seu destino com o da América
do Sul
A nova ordem geopolítica mundial impõe ao Brasil o desafio de atualizar
e implementar uma grande estratégia que conjugue o seu destino com o da América
do Sul, articulando uma plataforma regional de projeção de poder capaz de
assegurar os interesses nacionais e regionais na nova conjuntura internacional.
É preciso garantir algum controle sobre o entorno oceânico da América do Sul, a
segurança da extensa fronteira terrestre brasileira e a cooperação para o
desenvolvimento sustentável da Amazônia diante da crise ecológica global.
A integração da América do Sul dificilmente pode avançar sem o Brasil,
por suas dimensões territoriais, populacionais e econômicas. Por ser multivetor
do ponto de vista geopolítico, o país conecta as grandes bacias hidrográficas
amazônica e platina com o altiplano andino e tende a ser o principal
protagonista e beneficiário da integração continental. Primeiro, porque o
projeto regional se articula com o objetivo nacional brasileiro de consolidar
sua integração interna. Segundo, porque viabiliza potenciais sinergias entre os
sistemas econômicos nas esferas produtiva, comercial e logística, com destaque
para os corredores interoceânicos. Terceiro, porque permite a articulação de
uma doutrina estratégico-militar regional como ocorria por meio da cooperação
no Conselho de Defesa Sul-Americano.
Houve uma campanha contra a Unasul usando o fantasma de um suposto bolivarianismo. Nada é mais falso. Todo o processo recente foi
fortemente impulsionado pelo Brasil com lastro em duas tradições fundamentais
do pensamento social brasileiro: por um lado, o pensamento geopolítico com sua
marcha para o oeste, nas formulações de Mário Travassos,
do seminal Projeção Continental do Brasil, até os escritos do general Meira
Mattos, nos anos 1990; por outro, no pensamento econômico
desenvolvimentista, que sempre flertou com a cooperação regional como dimensão
estratégica do desenvolvimento nacional.
O mapa de poder global foi redesenhado nas duas primeiras décadas do
século 21. O século 20 terminou sob a supremacia dos Estados Unidos, vitoriosos
na Guerra Fria. Vinte anos depois, a China emergiu como potência terrestre
desafiante, reeditando o esquema básico do quadro mackinderiano:
uma potência terrestre que disputa o controle da Ilha-Mundo (Eurásia) como
contraponto a uma potência oceânica (visão mahânica) que controla o mundo por
meio do domínio dos mares (EUA). No século 19, essa polaridade opunha a
Grã-Bretanha à Rússia, o que inspirou a formulação original de Mackinder. Agora
a polaridade que se desenha é entre os EUA e a China. Mas há elementos novos e
complexos.
Ao contrário da Rússia e da União Soviética, a China é a maior economia
mundial, superando a economia americana (2ª), se o PIB for contabilizado no
critério de PPC (paridade de poder de compra). A China é um desafiante
tridimensional: compete com os EUA também nas dimensões estratégico-militar e
científico-tecnológica. Das oito maiores economias do mundo hoje (critério
PPC), cinco estão na Ásia e progressivamente articuladas em torno da economia
chinesa, em maior ou menor grau, por força das novas rotas da seda, terrestres
e marítima, e da área de livre comércio do Pacífico: Japão, Índia, Rússia e
Indonésia, além de outras potências de médio porte.
A aliança estratégica entre China e Rússia tem caráter complementar: o
dinamismo econômico chinês tende a se espraiar pela Rússia por meio das novas
vias terrestres de comunicação e transporte que ligam a economia chinesa ao
coração da Europa, com autonomia em relação aos meios tradicionais marítimos.
Por outro lado, a China tem na Rússia um parceiro rico em recursos naturais e
energéticos, com um sofisticado sistema industrial militar, que potencialmente
pode supri-la com matérias-primas e, em parceria, equilibrar o balanço
estratégico. Aliados, exercem um poder de atração sobre os demais países do
entorno, sobre a Europa e sobre o mundo, por meio de arranjos de geometria
variada. A União Europeia, nucleada pela Alemanha, tende a se integrar nesse
eixo por seu potencial econômico e pela dependência energética em relação à
Rússia, apesar de seus tradicionais laços com o ocidente.
Mesmo a Austrália e a Nova Zelândia que, juntos com o Canadá e o Reino
Unido, integram a comunidade anglo-saxônica cujo eixo está nos EUA, estão na
RCEP (Parceria Regional Econômica Abrangente), área de livre
comércio hegemonizada pela China.
Considerado esse panorama sintético de grandes tendências, a oitava
economia global (PPC), o Brasil, deve se organizar a partir de sua
circunstância geopolítica sul-americana para negociar com esses grandes blocos
as melhores condições para o desenvolvimento nacional e regional. O Brasil
estava estruturando a América do Sul (por meio da Unasul) como interlocutor
geopolítico desses arranjos e buscando maximizar as oportunidades eventualmente
derivadas dessas rivalidades. Parafraseando o economista Paulo Nogueira
Batista Júnior, o Brasil não cabe
no quintal de ninguém e seu desafio é liderar a retomada da
Unasul como parte de sua grande estratégia de inserção no mundo.
Marcelo Viana Estevão de Moraes é especialista em políticas
públicas e gestão governamental, doutor em ciências sociais e autor do livro “A
construção da América do Sul: o Brasil e a Unasul”, lançado em 2021 pela
Editora Appris.
Nenhum comentário:
Postar um comentário