Universalização é apenas mais uma palavra...*.
Assim como “sustentabilidade” e outras palavras que foram apropriadas pelo capital, a garantia da universalização se tornou um marketing muito fácil de ser vendido, acatado e incorporado pelo senso comum; empresas privadas não só se apropriaram desse discurso, como o garantiram em Lei. O processo de discussão e aprovação do Novo Marco Legal (Lei 14.026/20) mostra exatamente para quem esses novos arranjos do setor estão sendo construídos. Não é para a população.
A
Lei institucionaliza a tão sonhada segurança jurídica do setor privado,
funcionando como um espelho que reflete as contradições que existem no discurso
do acesso aos serviços por parte desse grupo. O mesmo já não precisa mais gastar
a mesma energia para tentar convencer que o setor privado é mais eficiente que o
público, uma vez que sua participação já está sendo viabilizada e facilitada
sem a necessidade de elaboração e apresentação estudos e planejamentos que a
justifique.
As
regionalizações impostas pela Lei já estão ocorrendo em diversos estados, e de
maneiras bem controversas. Estamos vendo uma progressiva participação de
entidades privadas nesse processo, enquanto os municípios e a população têm
ficado de fora ou apresentam um baixo grau de relevância nessas decisões. Um
exemplo disso é o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)
que tomou as rédeas junto ao governo estadual para regionalizar a CEDAE e está
à frente de outros projetos em outros estados.
O
bloco 3, incialmente composto de 22 bairros da Zona Oeste do Rio e mais 6
municípios, foi abertamente negligenciado por não ter se mostrado atrativo ao
capital. Esse caso já é o suficiente para comprovar que a realização do lucro é
a contrapartida para compra dos blocos. Mas onde estava a preocupação e a pressa
em ofertar os serviços para as milhares de pessoas que carecem dos mesmo?
Em
2010, o acesso a água e ao esgotamento sanitário foram reconhecidos enquanto
Direitos Humanos, mas pouco tem sido feito para o avanço de políticas
direcionadas a esse fim. O que temos visto nos últimos anos é o aprofundamento
da financeirização do setor e a transferência da responsabilidade para a
iniciativa privada. Para o capital, essa mudança que já vinha acontecendo
anteriormente mas de forma lenta é interessante, pois o setor é em sua natureza
um monopólio natural, ou seja, não demanda competição na oferta dos serviços.
Essa
característica gera vantagem não apenas para as empresas, por eliminar a
competitividade no território, mas também para os fundos de investimento. A
população é dependente das tarifas para ter os serviços, e esse pagamento regular
securitizado pode transformado em títulos a serem multiplicados. Dessa forma,
cria-se um grande mercado do saneamento.
O
capital financeiro e o início de uma nova Era
A
partir do momento em que a privatização se torna meta no setor, as
oportunidades se abrem para as concessionárias privadas e o arranjo
político-institucional é alinhado com os projetos neoliberais, inicia-se uma
nova era do saneamento. De acordo com a pesquisa realizada em 2018 [1], cinco
grandes empresas dominam o setor no Brasil. Todas elas são controladas por
bancos e/ou fundos de investimento internacionais (Singapura, Japão, Coreia,
Canadá e Espanha).
A
Aegea Saneamento e Participações, GS Inima Brasil, Iguá saneamento, BRK
Ambiental e o Grupo Águas do Brasil controlavam juntos, até então, cerca de
85,3% dos contratos em municípios com presença do prestador privado (Não há
dúvidas que essa porcentagem cresceu). Esses “proprietários do saneamento” são
apenas 5 dos 26 grupos privados que atuam no setor.
Esse modelo restringe uma
competitividade entre as maiores empresas, colocando as menores ainda mais de
escanteio no mercado. Os leilões estão sendo um bom exemplo para se verificar
como isso tem se manifestado, ainda mais quando maior valor de outorga é
estabelecido como critério, como está sendo com a maioria das Companhias e como
foi o caso da CEDAE, a qual sua legitimidade foi colocada em cheque [2]
O
setor privado chega como única resposta para alcançar a universalização, como a
solução de todos os males que a gestão pública provocou em todos esses anos. É
uma lógica tão rasa quanto suas promessas. A financeirização reestrutura a
composição do capital das empresas privadas e elas passam a responder as expectativas
de seus acionistas, e não da população. A universalização entra como um cavalo
de Troia.
O
Grupo Águas do Brasil – Saneamento Ambiental Águas do Brasil (SAAB) atua em
Campos desde 1999 ofertando os serviços de Água e Esgoto pela concessionária
Águas do Paraíba, com lucros incontestados pelo município. Além de Campos, o
SAAB atua em mais 15 municípios e conta com mais 12 concessionárias
distribuídas pelos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais
O
blog já mostrou anteriormente [3] como a Águas do Paraíba vem cobrando da
população tarifas altas (uma das maiores da América Latina) e reafirmando a
necessidade de auditoria para revisão do contrato. No dia 06 de maio deste ano,
foi protocolada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar e
questionar a conduta da prestação e gestão dos serviços da concessionária no
município, no entanto, já passamos da metade do mês de agosto e ainda não temos
notícias sobre sua procedência.
Em
2020, no contexto de crise econômica, política e sanitária, intensificada pela pandemia
do Covid-19 (é importante lembrar que Campos se encontra dentre as cidades com
maiores números de casos de contaminação e óbitos pela doença), a empresa
obteve um lucro líquido de 40,8 milhões de reais. Esse lucro corresponde cerca
de 17,5% do lucro líquido total do SAAB, de 232,598 milhões em 2020 (13% a mais
do lucro de 2019).
Esses
dados mostram que Campos contribui significantemente para a concentração de
riqueza do Grupo SAAB e de seus controladores. E quem são eles? De acordo com a
pesquisa [1], Carioca Christiani-Nielsen Engenharia controla 54% (acionista
majoritário), New Water Participações Ltda possui 17% do controle, o grupo
japonês Itochu e Queiroz Galvão Saneamento possui 12% cada um.
Enquanto
a concessionária e seus acionistas se enriquecem, a população mais vulnerável
do município permanece sem a garantia dos seus direitos. Um artigo publicado em
2020 faz uma análise crítica da política de saneamento de Campos, investigando
o monitoramento feito pelo site oficial da prefeitura no que diz respeito ao
avanço do município rumo à universalização e como o Plano Diretor vem tratando o
saneamento com base no direito humano à água potável e ao esgotamento sanitário
(DHAES) [4].
A
pesquisa aponta diversas contradições em relação ao avanço do acesso. Os
rankings divulgados são questionáveis e a diferença do atendimento dos serviços
nos bairros da sede em relação aos distritos é significante. Além disso, há uma
suposta Tarifa Residencial Social de água e esgoto, sancionada pelo DECRETO Nº
308/2017, mas que foi pouco divulgada em veículos oficiais da prefeitura e
negligenciada pela concessionária.
No
que diz respeito ao Plano Diretor (PD), instituído a
partir da Lei Complementar nº 0015 de 07 de janeiro de 2020, o texto se
encontra praticamente igual ao PD de 2007, o que mostra que a prefeitura não
tem se preocupado com as mudanças necessárias que o setor tem demandado, como por
exemplo o próprio reconhecimento do DHAES.
Em
geral, podemos perceber que o setor tem substituído a garantia do acesso (à
população) pela garantia do lucro (aos seus controladores). Depois da aprovação
do novo Marco Legal e com os leilões dos serviços das companhias estaduais,
começamos a experimentar uma reestruturação da atuação das empresas privadas
nos contratos, no entanto, reestruturar não significa garantia de
competitividade, pelo contrário, o que se mostra é uma consolidação de um
oligopólio e o aumento da concentração de riqueza.
Agora
que as empresas privadas estão expandindo seus tentáculos sobre concessões
municipais do Brasil inteiro, o Grupo Águas do Brasil, bem como seus
acionistas, não perderão a oportunidade de elevar seus lucros e patrimônio. Em
2019, o contrato da Águas do Paraíba completou 20 anos sem sequer passar por
alguma revisão, fiscalização ou auditoria. A prefeitura entregou o saneamento
de Campos nas mãos do capital privado e não tem apresentado muita preocupação
com os efeitos sobre o município.
Enquanto
isso, a universalização permanece distante, apenas como uma palavra, sem
horizonte visível.
Referências:
*Inspirado no título capítulo 1 (Liberdade é apenas mais
uma palavra...) do livro “O Neoliberalismo: histórias e implicações” de David
Harvey, traduzido por Adail Sobral e Maria Stela Gonçalves.
[1] https://www.fnucut.org.br/pesquisa-revela-quem-sao-os-proprietarios-do-saneamento-no-brasil-2/
[2] https://ondasbrasil.org/carta-denuncia-irregularidades-no-leilao-da-cedae/
[3] http://www.robertomoraes.com.br/2017/06/aguas-do-paraiba-lucro-liquido-de-r-55.html
[4] RIBEIRO, Carlos Frederico Rangel de Almeida; BARBOSA, Lucas Queiroz. O direito humano à água e ao esgotamento sanitário: análise da política de saneamento de Campos dos Goytacazes/rj. In: DA SILVEIRA, C.F.G.C.; BORSATO, L.; SALLES, S. de S.; VIDAL, T.J. (Orgs.). Direitos Humanos e Fundamentais. Vol. 1. Rio de Janeiro: Pembroke Collins, 2020. P. 501-518. Disponível em: < https://www.caedjus.com/wp-content/uploads/2020/11/direitos-humanos-e-fundamentais-Vol1.pdf>.
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